Retornar ao cabresto? Notas sobre o voto e a urna, por Caio Henrique Lopes Ramiro

É de bom alvitre considerar que desde o início da utilização da mediação tecnológica no procedimento eleitoral - nas eleições municipais do ano de 1997 -, não houve anulação de eleições por fraude.

Retornar ao cabresto? Notas sobre o voto e a urna

por Caio Henrique Lopes Ramiro

Nos últimos dias reapareceu no debate político um curioso argumento que defende a necessidade do retorno do voto impresso no Brasil, algo que se apresenta com o sentido de voto ou eleições auditáveis, ponto de vista que já tinha sido defendido nas eleições de 2018, contudo, naquele momento havia um interesse de vincular essa necessidade a fim de se evitar a fraude eleitoral, que seria por hipótese ocasionada pelas urnas eletrônicas.

De saída é interessante notar que não foi comprovada fraude nas eleições que utilizaram as urnas eletrônicas. É de bom alvitre considerar que desde o início da utilização da mediação tecnológica no procedimento eleitoral – nas eleições municipais do ano de 1997 -, não houve anulação de eleições por fraude. Nesse sentido, cabe perguntar: o que justifica esse argumento? Não obstante, talvez uma questão interessante seria a do valor do voto. Além disso, outra questão seria a de uma consciência da responsabilidade na escolha política, quando se pensa em um governo representativo e toda luta política travada pelo reconhecimento do direito ao voto e a livre escolha de representantes na democracia parlamentar, tendo em vista, por exemplo, o voto feminino ou o combate travado em períodos sombrios de ditadura militar.

Contudo, ao lançarmos um olhar retrospectivo para a história política brasileira é possível verificar que o voto impresso é que pode ser posto em dúvida, como o foi, por exemplo, pelas lideranças que capitanearam o movimento que se convencionou chamar de revolução de 1930. Ora, essa cognominada “revolução” tinha por bandeira central a verdade eleitoral, ou seja, falava da necessidade de renovação dos costumes políticos, com o fim das eleições fraudulentas que marcavam a primeira república (1891-1930), processos eleitorais que, longe de contar com qualquer “maquinha de votar” – previsão que só aparece no Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076), em seu artigo 57 -, eram fortemente influenciadas pelos donos do poder locais e contavam com a participação geminada de alguns eleitores e, também, com o “cidadão espectral”, que participava das eleições do além túmulo.

Oportuno mencionar que justamente nos anos de 1930, na primeira fase do governo Vargas, serão confeccionadas as primeiras legislações que tentam dar conta dos processos eleitorais, com o Código Eleitoral aparecendo em 1932 dispondo em seu artigo 5º a respeito das funções da Justiça Eleitoral e, em maio do mesmo ano, foi instalado o Tribunal Superior Eleitoral na capital da República, em uma clara tentativa de regulamentar as eleições, lembre-se, feitas até então por voto impresso.

Considerando esse tema posto em debate, um bom ponto de apoio para uma reflexão honesta acerca da eleição e das formas de participação eleitoral no Brasil pode ser encontrado no livro de Victor Nunes Leal, a saber: Coronelismo, enxada e voto.  Leal tem por objeto uma observação do município e o regime representativo no Brasil, recortando a figura do coronel como alvo mais específico de análise, o que permite uma abordagem dos pleitos municipais e o peso do coronelismo no resultado das eleições.

Victor Nunes Leal destaca a figura proeminente do coronel no meio rural. O proprietário de terras tem um claro prestígio político na municipalidade, algo bastante presente no interior brasileiro, que vai da influência política, passando pela financeira com as ligações que possui com os bancos até chegar, para parafrasear Maria Sylvia de Melo Franco, no homem livre que aparece da ordem escravocrata, ou seja, o camponês empobrecido. Segundo o diagnóstico de Victor Nunes Leal há uma massa humana que retira sua subsistência da terra que está forte e lamentavelmente empobrecida, vivendo em um estado latente de ignorância e abandono, que implica em uma ascendência do coronel-latifundiário, tendo em vista que é a esse último que o camponês recorre em momentos de dificuldade.

A partir de tais coordenadas, Leal caracteriza o trabalhador rural como alguém em dificuldade materiais, agravadas pela condição do analfabetismo, ausência de assistência médica, ou seja, sem acesso à informação e direitos fundamentais, o que o leva a acreditar que o senhor de terras é um benfeitor, pois é “dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece”. Ora, dirá Victor Nunes Leal que por consequência verificaremos no plano político o aparecimento do voto de cabresto, pois o trabalhador rural empobrecido irá lutar com e pelo coronel, inclusive, observará a sua direção política. De tal modo, os coronéis controlavam o resultado das eleições, que tinham como procedimento o voto impresso depositados em urnas, que poderiam ser auditáveis, contudo, não o eram devido a ascendência política do coronelismo.

Assim, ao considerarmos esses pontos da história política brasileira em conjunto com um cenário complexo e sombrio em que o coronel não desaparece, todavia, divide o protagonismo político com outros atores sociais do meio urbano, alguns não menos sombrios personagens de uma institucionalidade corrompida que talvez possa ter suas raízes vinculadas a capitania do mato, ou seja, aos agentes do aparato de violência do coronelismo, caberia perguntar: a quem serve o retorno do voto impresso no Brasil? Estaríamos interessados em voltar ao cabresto? 


Caio Henrique Lopes Ramiro – Professor de Filosofia do Direito no Centro Universitário Central Paulista (UNICEP). Advogado.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O problema do voto impresso não é o cabresto mas a confiança que depositamos na própria justiça eleitoral. Como saber que o código não foi comprometido? Alguém confia na justiça eleitoral dos indicados por Bolsonaro, que já manifestou que não aceitará o resultado da eleição, quando perder?

    A solução é bastante simples, o código fonte das urnas após a eleição precisa ser auditado pelos partidos, recompilado e comparado com o que está instalado nas urnas. Se o código for o mesmo, está tudo certo. Se não for, a eleição foi fraudada

    No caso do voto em papel, quer preso dentro da urna em um rolo, quer cortado e jogado dentro de um saco de lona, Bolsonaro sempre pode filmar uma Kombi com agentes dele abrindo uma urna, alterando os votos (ele já fez isso em 1994!) e postar para os apoiadores dizendo que houve fraude. E eles irão acreditar

  2. Professor, sou sua aluna. Eu considero válido o voto impresso pq ao meu ver não tem nada de mau, em ter o comprovante de quem votei e se não há ausência de transparência neste processo, não tem o porque não ser pactuante deste ato uma vez que apenas visa uma segurança jurídica como pagar uma conta por exemplo, e ter seu comprovante. Não vejo problema nisso. O que me chama atenção, é ser algo tão polêmico a possibilidade de sair com o papel do seu voto impresso na sua mão, o que entendo ser um direito ter em mãos, já que é algo seu, que vc não está solicitando de ninguém, e sim uma comprovação de atitude sua, própria e portanto, ao meu ver, totalmente lícita eu ter o comprovante. E vou mais além, ao meu ver, entendo que gera no processo, maior transparência, e maior segurança jurídica eleitoral. Pq votar não deixa também de ser é um ato além de cidadania, mas também juridico. Não entendo que por sair com o comprovante do meu voto… seja voto por cabresto.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador