Vender o estado do Rio ou vender São Paulo? A discussão esquenta
por Sebastião Nunes
Sentados em poltronas de nada, os pés apoiados em almofadas de nada, olhando para o interminável horizonte do nada, nossos amigos entremiravam-se, abestalhados e silentes, após o sapientíssimo Otávio Ramos formular duas questões que jogaram água fria nas cabeças quentes de Adão Ventura e Sérgio Sant’Anna.
Tais questões foram, primeiro, o valor da venda do Rio e, segundo, se não seria mais adequado vender outro estado, e não a joia-da-coroa-dos-milicianos.
– Bem lembrado – concordou Luís Gonzaga Vieira. – Quanto valerá o estado do Rio? E, por outro lado, por que não ofertar São Paulo, Minas ou Bahia?
– Precisamos balizar nosso escopo – disse Manoel Lobato, que tinha a mania de, às vezes, mostrar-se algo pedante. – Qual estado vamos vender, permutar ou arrendar? O preço pode ficar pra depois.
– São Paulo tem malandragem encoberta em excesso – aventou Sancho Pança. – Obras públicas, municipais ou estaduais, acusam superfaturamentos, propinas, trocas de favor, regalias, adiamentos, fraudes, roubos, apropriações indébitas, vistas grossas e/ou o já famoso “parecer-caneta”, na moda desde que o antiministro Salles fez circular o jargão. Dos denunciados, que foram muitos, quem além do velho Maluf foi condenado? E mesmo no caso dele sempre empurraram eternamente com a barriga.
– Puxa! – espantou-se Sérgio. – Nunca imaginei que o espanhol Pança fosse tão conhecedor de nossas mutretas.
– E olha que eu me referi às que “sofreram” algum estorvo em suas execuções – acrescentou o bom do Sancho. – Fosse elencar às que “não sofreram” fiscalização, e ninguém se deu ao trabalho de averiguar sua adequação à lei, seria um nunca acabar de eventos fraudulentos, com rima e tudo. Agradeço ao cético São Tomé, que me ensinou – quando lhe disse que meu espírito baixaria no Brasil – a só acreditar nos meus olhos e em meus ouvidos. Melhor deixar São Paulo pra depois.
(Para que os paulistanos não se entristeçam, a ilustração deste capítulo é uma bela panorâmica dupla de São Paulo, capital.)
NÃO VALE A PENA SEGUIR A PISTA
– Tá certo – concordou Adão. – Vamos deixar São Paulo e os outros estados pra depois e vender, permutar ou arrendar, por no mínimo 500 anos, a joia-da-coroa-dos-milicianos. Se alguém quiser o Rio já será um ótimo início.
– Beleza – disse Jimi Hendrix, experimentando a guitarra, da qual não se ouvia som algum. (Como na eternidade não existem tempo e espaço, lógico que também não existe som. Porque nossos amigos falam e os anjos cantam, não tenho a mínima ideia, deve ser concessão extraordinária do Altíssimo.)
– Legal! – exultou Janis Joplin. – Ando mesmo a fim de me acabar num samba. – E ensaiou uns passinhos desengonçados com um sorriso desengonçado na sua cara desengonçada. Ninguém gostou, mas com os gringos é assim mesmo.
– Tá bom – topou Otávio, satisfeito pelo fim da discussão. – Minha questão agora é a seguinte: a venda ou a permuta ou o arrendamento será pela totalidade do Rio ou devemos repartir em lotes?
– Como carioca nato, ao contrário do Vieira, que é apenas carioca honorário, escolho a negociação por lotes – disse Sérgio. – Embora tecnicamente mais simples, negociar o estado na totalidade seria complicado, por problemas geoeconômicos, pela diversidade entre as cidades e pelos quaquilhões de dólares envolvidos.
TENTANDO DESENROLAR O NÓ GORDO
– Tá bom – repetiu Otávio, preguiçoso até para falar. – E como repartiremos os lotes? Alguém sugere alguma coisa, apenas para começar?
(Não devemos esquecer que o quadrúpede ruminante Bolsonaro foi deixado no bosque El Greco, pendurado pelo rabo, de modo que não podia ouvir nem intervir. Sua carreira de malfeitor parecia encerrada: tudo o que lhe restava era mascar capim. Porém recomendo atenção máxima: nunca se deve distrair com um genocida.)
– Sugiro começar pela cidade do Rio dividida em lotes – apressou-se a palpitar o carioca honorário Vieira. – Podemos, por exemplo, começar ofertando o Pão de Açúcar, que os turistas adoram. Lembro que lotes menores podem ser comprados até mesmo por cidadãos, desde que multimilionários.
– Bem lembrado – anuiu o farmacêutico Lobato. – Quando eu tinha farmácia, o que mais vendia era Viagra a granel.
– Engraçado – disse Adão. – Sempre pensei que seus melhores clientes fossem putas do baixo meretrício.
– E eram – confirmou Lobato. – Só que elas compravam Viagra para evitar que seus clientes broxas passassem vergonha.
– Mas o que tem o cu a ver com as calças? – intrometeu-se Sancho Pança, com a sabedoria de escudeiro do maluco magricela. – A ideia é vender Viagra ou o Rio?
– Desculpem – disseram a uma voz Adão e Lobato. – Vamos de Pão de Açúcar.
(No próximo capítulo: dourando as pílulas.)
Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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Enquanto alguns relaxavam, em belas poltronas, ruminando, outros, seguindo orientações de descolados consultores, passavam a boiada. E o povo, o povo, top, top, top, como fazia o fradinho do Henfil…