Zoomfeudalismo
por Fábio de Oliveira Ribeiro
No início do dia 14 de maio de 2021 topei com o convite para esse evento no Twitter https://twitter.com/ireebr/status/1393174613379764225/photo/. Era necessário fazer um cadastro prévio para participar, razão pela qual preenchi e enviei o formulário competente.
Algum tempo depois, recebi mensagem com o link por e-mail e entrei na reunião virtual. O professor Luigi Ferrajoli respondeu as perguntas de alguns participantes, resolvi fazer a minha. Meu microfone foi sumariamente desabilitado antes que eu pudesse usá-lo.
Ao que parece, a coordenadora da reunião me considerou um “penetra” ou, quem sabe, “presumivelmente culpado” de ser incapaz de fazer uma pergunta pertinente. Não sei dizer se ela foi a mesma pessoa que aceitou meu cadastro para participar da reunião no Zoom.
Fiquei na reunião, pois estava interessado no que o jurista italiano tinha a dizer acerca da deterioração dos sistemas democráticos e da necessidade de proteger a cultura jurídica. A proteção da cultura autoritária brasileira foi garantida durante o evento.
A única outra vez em que isso ocorreu comigo não era possível alguém desligar o microfone. No primeiro ano da gestão de Luiza Erundina como prefeita eu era estagiário na FNT e fui convidado a participar de uma reunião na Prefeitura de São Paulo em que o tema seria a reforma urbana. No momento apropriado fiz algumas considerações e dirigi uma pergunta à prefeita. A resposta que ela deu foi satisfatória. Pouco depois a reunião foi encerrada.
Quando a comitiva da FNT entrou no elevador para descer e sair do prédio, um membro da diretoria me olhou feio:
– Quem disse que você poderia falar com a prefeita em nome da FNT?
– Eu me apresentei como estagiário do advogado da FNT, fiz algumas considerações a pergunta que entendia pertinente. Em momento algum eu disse que estava falando em nome da entidade. – respondi.
– Você deveria ter ficado de boca calada. Ninguém queria saber sua opinião. – replicou meu interlocutor.
Sorrindo, disse a ele algo que me pareceu oportuno.
– Vocês me convidam para uma reunião com a prefeita da cidade latino-americana mais importante acreditando que eu ficaria calado? Da próxima vez não me convidem, pois eu sempre tenho algo a dizer e ninguém vai me impedir de fazer isso.
Well… aquilo que era verdade no mundo real não é necessariamente verdadeiro no Zoomfeudalismo. Quem organiza a reunião pode silenciar qualquer participante. Isso eventualmente pode ser necessário, mas após a pessoa ter se tornado inconveniente e não antes dela ter a oportunidade de dizer algo.
Não estamos diante de uma regressão, mas de uma certa tradição autoritária da esquerda brasileira. A inaptidão de algumas pessoas para a democracia é uma verdade factual pública e notória. Aqueles que não espelham as hierarquias sociais que existem à direita do espectro político nutrem um verdadeiro desprezo por qualquer demonstração de autonomia e disposição de participar em condições de igualdade.
Transcrevo o breve comentário e a pergunta que gostaria de ter feito ao jurista italiano:
“No passado, Piero Calamandrei fez críticas ácidas ao hábito de alguns advogados italianos levarem personalidades fascistas aos Tribunais para influenciar julgamentos. Na atualidade, os Tribunais foram invadidos pelo sistema pós-moderno hight-tech de transmissão de informações e alguns juízes se deixam influenciar pela dinâmica do espetáculo e pela sedução das câmeras.
Calamandrei preservou a cultura jurídica se recusando a fazer o que seus colegas faziam. Como preservar a cultura jurídica da intromissão desse (me perdoe a expressão provocadora) ‘fascismo tecnológico’ ao qual até nós os advogados fomos condenados?”
Não acredito que a pessoa que desabilitou meu microfone durante a reunião seja fascista. A tecnologia que foi empregada para a realização do evento, entretanto, não favorece o debate e a liberdade de expressão. A assimetria criada pelo Zoom (o coordenador da reunião tinha o poder de desabilitar meu microfone e eu não poderia fazer o mesmo com o dela) é uma característica dos regimes políticos rigidamente hierarquizados. Por isso chamei o incidente no Zoom de Zoomfeudalismo.
Como aprendi a nunca deixar de ser um provocador (no bom sentido é claro) decidi dar uma cutucada nos organizadores pelo Twitter https://twitter.com/FabioORibeiro/status/1393214359229407233, onde a assimetria tecnológica entre os usuários é inexistente. Lição aprendida. Nunca mais entrarei numa reunião divulgada na internet pelo IREE e pela Editora Contracorrente.
Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.
Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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