Código Moro atribui ao MPF o poder de celebrar tratados, por Carol Proner

Os pontos cegos no que ficou conhecido como Código Moro, propostas não tão evidentes, embora igualmente graves

Por Carol Proner *

Desde que Sérgio Moro tornou público o Projeto de Lei Anticrime, no dia 04 de fevereiro, o pacote passou a ser duramente criticado por especialistas da área criminal que identificam o sentido essencialmente punitivista da proposta geral.

Dos dezenove capítulos apresentados, alguns apartados são os favoritos da crítica em razão do evidente confronto constitucional. O mais polêmico de todos trata da execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, contrapondo-se diretamente à garantia constitucional da presunção de inocência. Outras duas propostas escandalosas dizem respeito à legítima defesa – autorizando, na prática, o ataque preventivo da polícia – e à reformulação do crime de resistência, mudanças que ampliam o potencial mortífero dos agentes e que dão forma jurídica às promessas de campanha de Jair Bolsonaro.

Mas há pontos cegos no que ficou conhecido como Código Moro, propostas não tão evidentes, embora igualmente graves. Transversal ao populismo da violência penal, está a legalização de atos e medidas excepcionais sob o pretexto do combate à corrupção. Lendo o texto com atenção, nos deparamos com situações hipotéticas já praticadas pelo direito penal de Curitiba, já realizadas nas inovações arbitrárias e ilegais da Lava-jato. Nesse sentido, o pacote serve como freio de arrumação para legalizar atos pretéritos e futuros de procuradores e juízes fora-da-lei.

Quero chamar a atenção para um desses pontos cegos que passou relativamente despercebido até o momento: para combater o terrorismo e os crimes transnacionais, a proposta de Moro visa atribuir ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal, autonomia plena para firmar acordos investigativos junto a entidades congêneres, ajustes livres de formalidades especiais e de qualquer controle estatal quanto ao compartilhamento de provas e informações.

Esta proposta aparece no final do projeto, entremeando o capítulo XVIII – Medidas para aprimorar a investigação de crimes – e vem como sugestão de alteração para o artigo 3o da Lei n. o 12.850/2013, conhecida como Lei das Organizações Criminosas. Cito:

Proposta de Lei Anticrime

XVIII – Medidas para aprimorar a investigação de crimes

Mudanças na Lei n.o 12.850/2013:

“Art. 3o Em qualquer fase da investigação ou da persecução penal de infrações penais praticadas por organizações criminosas, de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou de infrações penais conexas, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:

………………………………………………………………………………………………………………….” (NR)

“Art. 3o-A. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal poderão firmar acordos ou convênios com congêneres estrangeiros para constituir equipes conjuntas de investigação para a apuração de crimes de terrorismo, crimes transnacionais ou crimes cometidos por organizações criminosas internacionais

  • 1o Respeitadas as suas atribuições e competências, outros órgãos federais e entes públicos estaduais poderão compor as equipes conjuntas de investigação.
  • 2o O compartilhamento ou a transferência de provas no âmbito das equipes conjuntas de investigação devidamente constituídas dispensam formalização ou autenticação especiais, sendo exigida apenas a demonstração da cadeia de custódia.
  • 3o Para a constituição de equipes conjuntas de investigação, não se exige a previsão em tratados.
  • 4o A constituição e o funcionamento das equipes conjuntas de investigação serão regulamentadas por meio de decreto. ” (NR)

(Grifos nossos)

Como se pode ler acima, o projeto prevê dispensa de formalizações ou autenticações especiais para o compartilhamento de provas e exclui a necessidade de tratados para regular a constituição e o funcionamento das equipes conjuntas para apuração dos crimes, sendo estas reguladas por meio de decreto.

Fazendo remissão à Lei n. o 12.850, a começar pelo próprio caput, a proposta em nada faz referência ao originalmente definido pelo artigo 3o, sendo matéria exógena que, como um Cavalo de Troia, aproveita-se do populismo anticorrupção para esgueirar-se e consolidar um poder quase ilimitado ao Ministério Público Público, associado ou não a outros entes públicos.

Quais crimes justificariam um tal nível de autonomia e independência do MPF? O Código Moro responde: terrorismo, crimes transnacionais e crimes cometidos por organizações criminosas. Ora, é bastante óbvio que tais condutas criminosas gozam de um imenso grau de indeterminação e complexidade quanto aos agentes, condutas, ativos e redes, provocando efeitos igualmente transnacionais e que podem onerar os interesses e o patrimônio nacional.

Seria razoável pensar, não apenas em segurança pública, mas também em soberania e interesse nacional. Na prática, Sergio Moro propõe surrupiar competência exclusiva do Congresso Nacional em matéria de resolução sobre tratados/acordos/atos internacionais que possam acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (artigo 49, I, CF/88) para dar ao MPF o direito de fazer acordos tipo fast track (referência à modalidade de acordos internacionais que dispensam aprovação legislativa).

E isso já vem acontecendo no âmbito da Lava-jato, quando entidades americanas, com a ajuda do Ministério Público, coletaram os documentos que necessitavam para acionar as estatais brasileiras em ações bilionárias.

Recordemos que, no ano de 2015, quando o Procurador Geral da República era Rodrigo Janot, a imprensa noticiou, ainda que timidamente, a chegada de uma missão de investigadores norte-americanos, grandes fundos de pensão assessorados por mega escritórios de advocacia, com o objetivo de arrecadar provas para instruir ações bilionárias contra a Petrobras e a Eletrobras. A missão foi a Curitiba, visitou Sérgio Moro, então juiz, e alguns procuradores que, por sua vez, visitaram os Estados Unidos (Comitiva formada pelo próprio Rodrigo Janot, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando Lima, em fevereiro daquele ano), mas as idas e vindas dos servidores públicos brasileiros aos Estados Unidos, bem como das agências estrangeiras, sempre estiveram cercadas por grande sigilo para não levantar suspeitas diante da falta de formalidade no intercâmbio de provas e documentos.

No último dia 30 de janeiro, tivemos o desfecho dessa colaboração. Com o objetivo de encerrar as investigações contra a Petrobras, a estatal, por intermédio do Ministério Publico Federal, fechou um Acordo de Assunção de Compromissos no valor de US$ 682,6 milhões (2,75 bilhões de reais), tendo confessado responsabilidade por danos alegados por terceiros junto ao Departamento de Justiça (DoJ) e a Securities & Exchange Commission (SEC), dos Estados Unidos. A empresa estatal assumiu, perante entidades de direito público e privado daquele país, que falhou dolosamente ao implementar controles internos contábeis e financeiros da companhia com o fim de facilitar o pagamento de propinas a políticos e a partidos políticos brasileiros, assumindo o montante de 80% das penalidades ajustadas, mesmo com as investigações da Lava-jato ainda em curso.

E esta não foi a primeira vez que o MPF intermediou acordos bilionários com a premissa do combate à corrupção, entendido aqui como crime transnacional. Em junho de 2018, a Petrobras firmou outro acordo com acionistas norte-americanos para encerrar uma class action (espécie de ação coletiva), comprometendo-se ao pagamento de US$ 853 milhões em indenizações.

Eis aqui um exemplo eloquente do que significa “acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”. A imprensa noticia, até o momento, o prejuízo total de 10 bilhões de reais em ações indenizatórias intermediadas pelo MPF, valor seis vezes superior ao que a estatal já recebeu da Lava-jato.

Mas o mais exasperante nessa sorrateira artimanha é a naturalização/legalização de condutas de agentes públicos que deveriam receber, por parte do Estado brasileiro, fiscalização, acompanhamento e, sendo o caso, responsabilização. Ou alguém acredita que, um dia, o Brasil receberá a visita do congênere United States Attorney General, o Procurador-Geral dos Estados Unidos em pessoa, a contar segredos processuais para instruir processos bilionários contra empresas americanas?!

Um dia, quando voltar a prevalecer a legalidade democrática, a Lava-jato deverá ser objeto de escrutínio público por incontáveis motivos: pelos danos econômicos às estatais, às cadeias produtivas, aos empregos, aos nomes de políticos e partidos injustiçados em investigações seletivas, aos nomes de empresários, gerentes e funcionários públicos e privados enxovalhados e execrados antes do fim dos processos e, principalmente, por servir de exemplo punitivista que se espalha como uma praga a perseguir gestores públicos, líderes políticos e sociais, movimentos populares e todos aqueles que lutam pela democracia no país.

Por enquanto, nos cabe denunciar aos que apoiam a Lava-jato, incluindo militares que sustentam os protagonistas dessa farsa, que o Código Moro está mexendo com a competência constitucional do Congresso Nacional e atribuindo aos Young Urban Professional de Curitiba missões que subestimam a histórica e qualificada experiência dos diplomatas do Itamaraty e dos estrategistas das mais variadas formações, inclusive das Forças Armadas, colocando em risco os interesses nacionais.

*Doutora em Direito Internacional,

Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

 

Luis Nassif

13 Comentários

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  1. Diferenças entre Moro e Gleisi Hoffman. Enquanto Moro caladinho vai implantando a sua agenda nefasta desafiando os cidadãos de bem desse país, a oposição, ou quem mais lhe atravessar à frente, Gleisi Hoffman é o oposto. Gleisi virou o símbolo do choro do PT. Suas lágrimas não servem absolutamente para nada. Sempre foi assim desde o impeachment da Dilma. Se especializou em reclamar, em alardear o óbvio pelos quatro cantos, ora pelo twiter ora pela imprensa. Já não aguento mais ver as declarações da Gleisi. Será que ela não poderia parar de chorar e de reclamar e fazer algo concreto, eficaz para por exemplo dar um novo estímulo à libertação do presidente Lula? Gleisi age como aquela pessoa que tendo seu carro atolado no charco fica criticando a lama ao invés de encontrar uma solução eficaz para tirar o carro do atoleiro.

    1. PQP! Tu queres comparar o poder de Moro ao de Gleisi? É má fé ou pouco conhecimento? Gleisi foi muito mais competente do que Rui Falcão, que ficava escondido com medo ou sei lá o que. Não a vejo choramingar, apenas denunciar o tempo todo a farsa jato. Quem foi um chorão bundão e pode ser comparado a Moro foi Eduardo Cardozo, que quando ministro recebia ordens da PF e não o contrário.

      1. Os líderes do PT são todos uns chorões. Falta alguém de pulso, para liderar, bater forte na mesa. Falta alguém para encarar frente a frente o STF lá no puxadinho deles. Os líderes do PT não despertam o mínimo temor ou respeito do governo e muito menos da justiça. Lula está preso hoje por culpa de Luis Marinho, Paulo Teixeira que entre outros, se ajoelharam perante a militância no Sindicato de SBC pedindo vergonhosamente pelo amor de Deus que o povo deixasse Lula se entregar sem resistência.Ali eles mostraram a sua covardia. O governo, a justiça e a Globo estavam morrendo de medo temendo que Lula resistisse e eles tivessem que negociar um acordo mais vantajoso para o ex-presidente que não a prisão, pois sabiam que jamais a PF iria promover um massacre naquelas circunstâncias.

    2. Aguardando sugestões, ó iconoclasta genial das grandes causas perdidas. Se você não sabe o que dizer, não venha dizer platitudes. Desça do salto e nos ilumine com alguma ideia brilhante. Faça-nos esse favor ao invés de ficar criticando a Gleisi, uma das pessoas mais aguerridas e que não tem medo de “meter a cara”, peitando essa plutocracia odienta e nojenta.

  2. Há um fato que passa batido nesse cipoal que se tornou esse pacote de maldades do Moro. Não sei se a doutora Carol Pronner atentou para o fato de que Moro aprovou semanas atrás o pacote que libera a compra de armamentos pela população e ao mesmo tempo favorece a posse e o porte. Ora, se agora ele pede que se autorize que a polícia tenha um julgamento diferenciado e muito mais brando quando se se “sentirem” ameaçados podendo atirar para matar, não há ai um tremendo contra senso? Isso é uma armadilha mortal. Arma-se uma parte e pede-se à outra que não tolere “supostas” ameaças de quem estiver armado.

  3. O problema da eventual “impunidade” por demora na condenação é a lerdeza, incompetência e corrupção na PRÓPRIA JUSTIÇA, não a prisão após a segunda instância, feita sob medida para um tal de Luis Inácio.
    Por quê?
    Porque a lerdeza independe de instância. Um réu perseguido pode ser condenado em apenas 18 meses em duas instâncias (ou um pouco mais desde seu indiciamento), como no processo sem crime do triplex.
    Já outros, podem levar décadas para ser investigados, indiciados, processados e julgados, como o do tucano Azeredo, que levou mais de 11 anos do crime constatado até a prisão, que quase prescreveria em 1 ou 2 meses e só foi feita para não pegar mal em relação à de Lula.
    Portanto, o fato de haver mais instâncias implica no máximo em trazer maior rapidez nos julgamentos (como foi o “recorde olímpico” para um ex-presidente da república), não em “impunidade”.
    A propósito, os punitivistas que vendem a impunidade como causa de criminalidade deveriam entender que:
    1) As causas são sociais, pois sem escola, sem renda e sem emprego, um adolescente favelado ainda tentará a vida que “vê na TV”. Irá copiar os seu exemplos bem sucedidos no entorno (traficantes, cafetões etc.) e fará “faculdade” na primeira prisãozinha a que fôr exposto por qualquer menor delito.
    2) Depois da primeira experiência prisional (ainda que em centros de menores, formadores de marginais), a tal da punição para eles será simplesmente desprezível. eles NÃO têm medo dela, que passa a ser apenas um “acidente de percurso” a ser evitado: se não conseguiam tocar a vida antes de serem presos,imagine-se depois… Quem tem medo de punição é quem tem o que perder. Não é o caso deles.
    Sim, evidente que a prisão se faz necessária aos (infelizmente já) bandidos. Infelizmente, prisões que jamais os recuperarão, pois sequer há esse interesse ou foco. O que há é apenas sentimento de vingança e castigo por parte dos ameaçados, de benz.
    E não venham falar de exceções, pois elas são apenas isso.
    O que precisamos é de soluções para PARAR de fabricar novos bandidos.
    Que poucas opções têm de não sê-los.

  4. Moro procura blindagem para o caso do vento virar ele escapar da punição por seus muitos crimes.

    Agora é muita petulância querer dar a não eleitos poderes sobre o estado nacional…

  5. Meus caros, será que combater a corrupção é só isso? Com foco só em punição? Imagino, pois sou leigo no assunto, que sugerir-se dar ao MPF, competências que, constitucionalmente, como é nesse caso de tratados e, assim dispõe o Art. 49 da CF em seu Inciso I, isso, não se trataria de um grave desrespeito, ao princípio constitucional em vigor, ou não?
    Se sabemos, pois a imprensa não cansa de mostrar exemplos, que os sonegadores, os lobistas impatrióticos, os corruptos, os corruptores, etc, assim como a corrupção, a sonegação, o lobismo predatório ao interesse do país, a lavagem de dinheiro ilegal, etc, nascem e se criam, como resultantes da omissão, da ausência em tempo real ou da insuficiente e intempestiva prática ética de Fiscalização e Controle Interno e Externo ( Art. 70 da CF ), pelos Poderes Públicos, pelas instituições competentes e pelos agentes públicos responsáveis, que deveriam verificar proativa e periodicamente e, na conclusão do objeto, a conformidade e a correta aplicação dos recursos públicos, de interesse e do bem-estar do povo, a quem pertence o poder e, é o patrão de todos.
    Ora, se isso é um fato, a estratégia e ações de combate a esses esquemas de desvios de recursos públicos, devem ter prioridade prática, na orígem de sua negociação, passando por seu planejamento e essencialidade do objeto, na autorização orçamentária e início da execução pelo gestor responsável, no monitoramento das instituições responsáveis pela Fiscalização e Controle Interno e Externo competentes.
    Agora, nos casos de investigações de desconformidades e/ou de desvios de conduta e de recursos pelos gestores públicos, essas instâncias de Fiscalização e Controle Inter e Externo, deveriam serem as primeiras a serem ouvidas para se aferir se elas cumpriram com suas funções, como deveriam ou não.
    O que vier daí para frente, em termos de indiciação, processo com ampla defesa do acusado, julgamento justo e imparcial e, se houve culpados, após esses procedimentos, que a sua punição e prisão, após ela ser transitada em julgado, exemplar e, proporcional ao mal que causaram aos cidadãos e à sociedade.
    São essas, Nassif e Dra Carol Proner, nossa contribuição e, como cidadão e leigo no assunto, nossas sugestões ao tema, a quem interessar. Parabéns a ambos, pela sua informativa e instrutiva matéria que, muito, nos ensinou.
    Paz e bem.
    Sebastião Farias
    um brasileiro nordestinamazônida

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