2017 começou mal, por Edson Teles

Do blog da Boitempo

O ano começou mal

Por Edson Teles
 
Feminicídio, transfobia e chacina no presídio.

Além da violência enquanto prática social e da pobre experiência de vida heteronormativa, binária e racista, estes tristes e graves acontecimentos remetem a um conflito em comum. Trata-se do choque entre a expectativa de instituições garantidoras do respeito à vida e o Estado como principal violador dos direitos, seja pela negligência, seja por opção pelos que dominam.

O secretário de segurança amazonense declarou que não autorizou a entrada da PM visando evitar a chacina porque poderia ocorrer uma reação e a polícia produzir outro “Carandiru”. Falseamento da história, pois a outra chacina, a do Carandiru, não foi resultado de uma reação da PM, mas ação premeditada de matança geral. A mulher vítima principal da carnificina de Campinas, por várias vezes, denunciou às instituições do Estado as ações violentas e abusivas do assassino. No caso do espancamento até a morte de Luiz Carlos Ruas, diante das câmeras do Metro de São Paulo, cabe perguntar se os dois executores tiveram, em suas escolas ou nas instituições pelas quais passaram, contato com algum conteúdo relacionado às questões de gênero.

Este parece ser o dilema dos direitos humanos na atualidade. Ao menos as duas últimas gerações nasceram e cresceram sob a expectativa de relações políticas democráticas. Isto quer dizer, nas quais o valor maior estaria na construção de uma sociedade de igualdade de condições de acesso, de investimento na justiça social e de tolerância com a diferença. Estes valores, discursivamente, estariam registrados naquilo que ficou conhecido como o “politicamente correto”.

O “correto” refere-se às normas disciplinares visando conduzir os costumes do cotidiano para o bom convívio social em torno da ideia de uma sociedade una. Seriam válidas para todos os seres humanos, ainda que se saiba que entre eles há diferenças e desentendimentos profundos. A efetivação das normas, na medida em que visa disciplinar os corpos, as vidas e as individualidades, ocorre por meio da ação das instituições. As escolas, universidades, hospitais, repartições, museus e, até mesmo, as delegacias e os quarteis atualizam a força deste discurso em suas práticas.

Também as tímidas políticas públicas reparatórias do Estado, tomando os valores da equidade e dos direitos como uma espécie de dever social, fundamentaram suas ações de inclusão e reconhecimento das injustiças passadas no vocabulário do “politicamente correto”.

Não ficaram de fora, e não poderia ser de outro modo, as ONGs e os movimentos de direitos humanos e identitários. O lugar de força das lutas e demandas feministas, dos grupos LGBTs e dos movimentos negros passaram, em larga medida, pelo reconhecimento discursivo de um modo respeitoso de lidar com as diferenças e inclusivo socialmente. As ações destes sujeitos implicaram na produção de saberes específicos e de linguagem com potencial de expressar uma outra inserção para suas subjetividades vulneráveis às violações dos direitos.

Para que o “correto”, em um Estado de Direito, pudesse realizar transformações reais em favor das chamadas minorias é necessário estruturar as demandas em direitos e criar mecanismos de controle e punição às suas violações. E é justamente neste ponto, no qual se realiza a efetivação de políticas positivas e reparatórias, que a ação em torno do Estado se torna o ponto nevrálgico e central dos direitos humanos.

Com a reorganização do Estado democrático, ao fim dos anos 80, os direitos humanos produziram um paradoxo: quanto mais eles se realizavam em torno dos direitos conquistados e através das instituições do Estado, mais se descaracterizavam os mecanismos de resistência deste instrumento de luta dos movimentos sociais.

Em um momento grave, tal como este pelo qual passa o país, seja do ponto de vista social ou político, para não dizer o econômico, acredito que seria de boa medida retomar certa tradição política dos direitos humanos enquanto potência para a luta e de abertura a outras experimentações.

Em tempos passados, quando a atual ordem democrática começou a se constituir, foi a partir dos movimentos sociais, de seus discursos e efeitos, que se tornou possível a experimentação de novos modos de organização e de ação política. Foi o caso do PT, nos anos 80, bem como de certos movimentos sociais, parte dos quais acabaram, por força das circunstâncias, em uma relação demasiada próxima da lógica de governo, praticamente anulando-os.

De modo paradoxal, as ações de direitos humanos seguiram estes dois percursos. Por um lado, produzindo, via os conhecimentos históricos e da institucionalização, políticas públicas. Normalmente conduzidas, como vimos, pelo Estado. Concomitante, o outro percurso se constitui no chão dos conflitos sociais, animado pelas demandas locais, diversas, específicas. É acionado não pela ação dos desqualificados, dos vitimizados, de quem está em condição marginal nas políticas institucionais, aqueles que seriam seus objetos de incidência.

***

Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Redação

2 Comentários

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  1. Com Temer isso é só o começo

    Tem é que fechar cadeias e não abrir

    Janio: 40% dos presos são “provisórios”! Publicado 05/01/2017 no Conversa Afiada Kombi.jpg

    A caminho do Supremo! (Reprodução: UOL)

    O Conversa Afiada reproduz da Fel-lha antológico artigo de Janio de Freitas.

    Tambem ele, como o Kakay, deposita os corpos dos degolados na porta dos supremos ministros, sedentos de Justiça (provisória):

    A indiferença é a origem do massacre em Manaus

    O país todo está horrorizado. Discute se a culpa é do Judiciário ou dos governos, dos políticos ou da legislação penal e, claro, das garras da corrupção sobre as verbas do sistema carcerário. A discussão é fácil e aliviante: cada uma daquelas partes colaborou nos movimentos dos facões que degolaram e esquartejaram em Manaus. Mas o país deveria horrorizar-se antes, em qualquer das dezenas de anos do seu conhecimento e da sua indiferença pelas condições –criminosas tanto nas leis brasileiras como nos acordos internacionais– a que os encarcerados são aqui submetidos. Não o fez jamais.

    Aquelas quotas de responsabilidade e o massacre em Manaus provêm da mesma origem: a indiferença que faz com que reações como o horror sejam o reflexo do incômodo, pessoal e grupal, que dado acontecimento provoque, e não a revolta ativa contra o acontecimento e sua viabilidade. Desviadas as atenções para outra atração, o horror desaparece devorado pela indiferença. É a índole brasileira em atividade.

    A grande maioria das sentenças a encarceramento não leva ao que o juiz determina –privação da liberdade por tempo determinado.

    O mais importante da condenação não aparece na sentença: é o tratamento que o encarcerado receberá. A tortura da promiscuidade nojenta nos cárceres superlotados, comida e dejetos humanos unidos no odor e no ambiente, medo e alucinação. É tortura sob formas a que as instituições brasileiras são secularmente indiferentes.

    Aquelas mesmas que, originadas na escravidão aqui mantida até o último limite, transpuseram-se para as relações econômicas, sociais e culturais da classe escravagista e seus novos subjugados –os ex-escravos abandonados no tempo e no espaço, acrescidos da miséria cabocla. Qualquer cidade é um atestado vivo de que o Brasil não teve mudança essencial com o fim formal da escravidão.

    Dos 622 mil encarcerados, mais de 40%, ou cerca de assombrosos 250 mil, estão sob prisão “provisória” há meses, há anos, que deveriam durar 30 dias, se tanto. Ou nem isso, porque esses “provisórios”, se e quando afinal chegam ao julgamento, na maioria são absolvidos.

    Logo, nem sequer precisariam ou deveriam passar por prisão provisória. No Amazonas, dos 4.400 encarcerados, 2.880, ou 66%, são presos “provisórios”. Não menos expressivo da secular e perversa indiferença brasileira: cerca de metade dos sentenciados à cadeia não cometeu crime violento. Ao menos parte, portanto, e o provável é que grande parte, conforme o Direito Penal menos obsoleto, deveria cumprir penas alternativas, sem chegar ao cárcere.

    A maioria dos “especialistas”, além da superficialidade que sobrevive a todos os massacres e incidentes penitenciários, continua a reclamar por mais cárceres, considerando uma carência de 240 mil a 250 mil vagas. Melhor seria passar por um crivo os 250 mil presos “provisórios” e os passíveis de penas alternativas. O resultado provável é que o número de cárceres não é o problema nem a solução propalados.

    A oferta de incentivo, ensino e trabalho talvez lhes pareça, afinal, a melhor maneira de inverter o avanço permanente da disponibilidade de crianças e jovens para a marginalidade, vestibular do crime.

    O oposto à política econômica e social do governo Temer.

     

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