A Desmassificação Massificada de Patrícia Moreira, por Reinaldo Melo

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Inquietas Leituras

A Desmassificação Massificada de Patrícia Moreira

por Reinaldo Melo

Uma das características do ser humano é o medo de ser tocado pelo desconhecido. 
 
Consequentemente, há o desejo de isolamento social, em que estabelece estratégias comportamentais para não haver qualquer relação com o outro, ou físico, se fechando dentro de um espaço onde o contato com o mundo não ocorra, sentindo-se amplamente protegido. A aversão a qualquer contato é inerente à natureza humana. Essa essência contrasta com a necessidade de socialização de nossa espécie. 
 
Freud dizia que o indivíduo na sociedade moderna estaria condenado à infelicidade. O ser humano não é essencialmente gentil, é agressivo. E a culpa de manter interiorizada tal agressividade o condiciona a plena insatisfação. Para a civilização moderna, esse impulso agressivo é o que ameaça a sua existência; a condição civilizada da sociedade sempre está à beira do precipício da barbárie. Para que não ocorra a queda o impulso individual muitas vezes deve ser sacrificado pelo impulso social.
 
O indivíduo na sociedade esta condenado à infelicidade
 
Tal medo e conflito são amenizados no processo de massificação do indivíduo. A massa é uma integração de indivíduos de diferentes estratificações sociais, profissionais, sexuais, etc, em torno de algo comum que os iguale por completo. Por exemplo, uma torcida de um time de futebol. Na massa, além do indivíduo perder o medo do contato com o outro e com o mundo externo, há o sentimento de proteção e integração. Tudo é o oposto da individualização. O medo se torna coragem, o que era reprimido passa a ser liberado.

 
Patrícia Moreira era apenas uma indivídua comum de nossa sociedade. Jovem, círculo social natural para a sua idade, funcionária na área de odontologia de um departamento militar, foi a um estádio para apreciar seu time do coração. E diante da derrota, fez coro à turba furiosa inconformada com a apresentação do seu time, destilando seu impulso individual agressivo a uma das figuras do time adversário, o goleiro Aranha, chamando-o de macaco.
 
Até aí, nada “incomum” do que já foi visto em diversos estádios do mundo, mas a moça não contava que a proteção que a massa poderia lhe dar, para que seus impulsos reprimidos se liberassem, fosse tão frágil diante de outra ferramenta de massificação: a TV.
 
Flagrada pelas câmeras, Patrícia Moreira massificadamente se desmassificou, ou seja, a partir dali a mídia iniciou uma construção falsa de sua individualidade alçando-a como a mulher mais nefasta do país.
 
Patrícia Moreira, desmassficada pela mídia massificadora
 
Na era do espetáculo, a mídia trata todos os fenômenos pelo viés sensacionalista. Ao mesmo tempo, faz o papel de Estado com a cumplicidade de seu público: ela testemunha o crime, abre o inquérito, estabelece o processo, opera o julgamento e condena ao seu bel prazer. É a substituição bárbara do estado democrático de direito.
 
Meses atrás, Raquel Sherazade defendeu o linchamento de um menor de idade suspeito de roubo, incitando a população, cansada de impunidade e da ausência do Estado (que ironicamente é implacável contra pobres, especialmente os negros), a tomar as rédeas do que se entende por justiça. Depois de tal declaração houve uma epidemia de linchamento no país.
 
E o linchamento não é nada mais nada menos do que um fenômeno de massificação. A turba reunida diante de um suposto criminoso, inocente ou não, libera seus impulsos agressivos e massacram o indivíduo sem chance de recorrer ao direito de defesa que a civilização teoricamente lhe garante.
 
Rachel Sherazade, apologia ao linchamento 
 
Patrícia Moreira, que em seu contexto de indivídua massificada, fazia coro com a massa que massacrava verbalmente o goleiro adversário, ironicamente foi desmassificada, mas não para ser tratada como um indivíduo único e especial, mas como um ser merecedor de um massacre, de um linchamento midiático e social, a ponto de perder o trabalho, o direito de poder sair à rua e ao mesmo tempo assistir à derrocada de sua família, que não possuía relação alguma com o crime que ela cometeu dentro do estádio.
 
Todo um roteiro ideológico programado pela mídia hipócrita, que coloca negros como empregados em suas novelas, que estampa o negro nas suas manchetes policiais, que trata o negro apenas como pagodeiro, mulata carnavalesca, jogador de futebol ou protagonista de comercial de café, e que sempre se coloca contra as cotas raciais em universidades e concursos, desprezando que somos uma sociedade de maioria negra, mas que esta é marginalizada dos direitos constitucionais mais básicos.
 
Tudo se discutiu nessa história menos o racismo e suas fontes. Quando se dá mais ênfase à racista do que o processo que formula e mantém o racismo em nossa sociedade, a mídia mata dois coelhos com uma cajadada só: promove o justiçamento, se colocando como protagonista dos valores que a turba furiosa necessita e mantém intacta a estrutura ideológica do racismo que ela mesma reproduz diariamente, se isentando do crime racial que ajuda a propagar.
 
A mídia que condena Patrícia Moreira 
é protagonista do Racismo em sua programação
 
Patricia Moreira, assim como os outros torcedores, merece ser processada e julgada, mas dentro do que lhe garante o estado democrático de direito.
 
Quando tratamos um criminoso sem a humanização que lhe cobramos, em nada diferimos dele. Dentro de um processo civilizatório, a pena para um criminoso é muito mais do que lhe negar o convívio em sociedade ou lhe imputar ações (como trabalhos comunitários) contra a sua vontade. Deve se focar também a sua reeducação para se conscientizar de que fez algo errado e não reincidir em tal prática.
 
Assim como se destrói um indivíduo por meio de qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo, como estão fazendo com Patrícia Moreira. De nada vale defender a civilização, sendo tão bárbaros quanto os que a ameaçam. 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

14 Comentários

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  1. De boa…

    Que diabo de texto – e de título – é esse meu deus? Vários parágrafos para saber do que se trata; tendo que dar outro clique e tudo…

  2. Excelente
    Fruto da sociedade

    Excelente

    Fruto da sociedade frustrada, individualizada e imbecilizada.

    Da perda da reflexão à aparente segurança da turba.

  3. Racismo

    Bonito texto ! So que na vida real coisa e outra ,o ódio e despreso que ela demostrava no vidio era terrivel,dai se ela estivesse numa turba que aje como ela,linchava o aranha se pegasse ele na rua,Não adianta intelectualizar o racismo.lugar de racista e no inferno do tipo que eles constroi para suas vitimas.

  4. Muito bem!
    Muito bom o texto! Parabéns! Você tem uma mente clara e livre de paradigmas! A sociedade vive na igreja pedindo perdão por seus pecados mas anda sempre perscrutando por uma valvula de escape para suas frustrações.Na verdade os sites (os quais fomentam o ódio e a fome dos carniceiros) e as pessoas que apedrejam Patricia Moreira de forma tão desproporcional estão apedrejando o comportamento realizado por eles mesmos no âmbito do seus lares! Pessoas hipócritas e mentirosas! Cultivam o racismo; são discriminadoras e pregam a igualdade!

  5. Resumindo

    Bonito post, é de causar inveja tanta sapiência. Se fosse possível definir o comportamento humano em poucas palavras milhares de livros não teriam sido escritos. Este post (que só comecei a ler) poderia ser resumido a uma frase:A sociedade é hipócrita. 

    Pincelei( bonito, hein!?) uma definição que tem cheiro de politica partidária: “Na era do espetáculo, a mídia trata todos os fenômenos pelo viés sensacionalista”. Pueril, porque na verdade nós como um todo é que temos este viés . A mídia é apenas a fonte das nossas idiossincrasias.

  6. Fala-se tanto sobre a atitude

    Fala-se tanto sobre a atitude dessa moça e de outros torcedores do Grêmio. O mesmo sobre aqueles que (violentamente) atacaram a jovem e seu namorado pelo Facebook. Quem não se lembra daqueles estudantes e médicos, com seus jalecos brancos, berrando contra os(as) médicos(as) cubanos(as). Da jornalista que foi acusada porque comparou as mesmas médicas cubanas à empregadas domésticas. Ou ainda do jovem estudante impedido de entrar na escola porque usava um colar religioso do Candomblé…

    Mas não se pergunta por que isso acontece. Afinal, dizem, vivemos em uma “democracia racial”. Sendo assim, a culpa mais uma vez recai exclusivamente no indivíduo. A sociedade hipócrita assiste a tudo, com seu discurso mesquinho. A mesma sociedade que insiste em manter negros e negras marginalizados, favelados, com baixos salários, sub-empregados e fora das universidades.  Que não pensa duas vezes em acusar, linchar, matar… e ao mesmo tempo entoa cânticos religiosos, lota igrejas, vocivera palavras ocas e hipócritas ao seu deus, em uma massa raivosa cada vez maior de “bons cidadãos”, defensores da tradição, da “família”, da propriedade privada, contra tudo e todos que sejam diferentes.

    Pessoas que, acreditando estarem imunes a uma possível prisão (mesmo que sendo inocentes), defendem a tortura, a pena de morte aos prisioneiros deste país (maioria de negros). Sem falar na redução da maioridade penal…

    Ora, o próprio discurso dessa jovem é algo comum em nosso cenário social: “eu não sou racista!” (mas não pensa duas vezes em chamar um negro de macaco). “Eu até tenho amigos negros!”….  São frases típicas que se ouve em qualquer lugar, por pessoas de diferentes idades ou posição social, homens e mulheres…

    São pessoas como essa que acusam a  Comissão Nacional de Direitos Humanos de “acorbertar bandido”. São os mesmos que, incitados pela mídia, pelas redes sociais, por líderes fundamentalistas, ignoram a Justiça e defendem a lei das ruas…

    Nós humanos somos uma espécie muito estranha. Que o planeta Terra nos perdoe.

     

  7. Gozado que quando a Mayara

    Gozado que quando a Mayara Petruso xingou os nordestinos no facebook e ficou tão famosa, todo mundo por aqui tascou a guasca nela…

    1. Talvez seja porque…

      Talvez seja porque as pessoas mudam, aprendem, não é? Mayara deve ter aprendido algo com o que fez, e as pessoas devem ter aprendido algo com a discussão sobre o que a Mayara fez.

      Você, pelo visto, ainda não aprendeu que o homem é histórico, que ele muda.

       

  8. “Assim como se destrói um

    “Assim como se destrói um indivíduo por meio de qualquer ato de discriminação, não se humaniza alguém o destruindo”… Deus do céu, então reconhecem que a fulana que não sabe a diferença entre um ser humano e um macaco não é humana? Não sou eu quem está afirmando, é o texto! Lamentável, a mesma pessoa que acredita que o racismo é capaz de destruir um ser humano, pede clemencia ao outro ser humano que praticou tal ato porque é branco e não pode ter sua imagem maculada por ter arruinado a vida de um ser porque ele é negro… Concordo com quem disse que esse texto é muito confuso… E outra o problema das novelas é sempre debatido entre os negros, já tivemos algum avanço, muito pouco, mas houve… O assunto não tem nada a ver com algo que já é considerado um ato criminoso. Freud deve estar tremendo no túmulo. Melhor esse Rinaldo Melo, se dedicar exclusivamente aos seus contos, ao menos a gente acredita que são fictícios e ri um pouco… antes que ele se queime ao tentar escrever sobre assuntos tão sérios e que nada tem a ver com a sua formação.

  9. punição é coação


    caro reinaldo

    a pena é muito mais que ‘reeducar’ o apenado: ela seve para coagir os demais a comportarem-se; conduzirem-se de acordo com as leis de convivência.

    justificar a conduta dessa desclassificada, patrícia moreira, em função de outra conduta igualmente desclassificável de raquel sheherazade é nonsense

    qualquer ato de racismo deve ser punido com a necessária publicidade: um erro não justifica outro.

  10. Poucos entenderão a mensagem. A massa só reproduz, não raciocina
    Gostei muito do texto, mas por alguns comentários dá para ver que a massa lê pouco e discute de forma leviana e medieval o que desconhece. Infelizmente mesmo estando na era da informação, a ignorância e a intolerância impera. Isso é triste e em vez de progredir estamos regredindo enquanto nação, Estado. Parabéns pela ótima análise.

  11. A Patrícia Moreira da Silva
    A Patrícia Moreira da Silva está precisando ser salva desse linchamento moral, psicológico e até físico (ainda não ocorreu este último e espero que nem ocorra!). Hoje no Programa Encontro com Fátima Bernardes, foi a constatação da vergonha que é a Globo! Ao invés de acolher a verdadeira vítima de racismo, vejo que a saída é eu dizer, ela é quem é vítima de racismo e os culpados, os que querem ela longe da sociedade permanentemente, são a mídia sensacionalista e os que querem acabar com ela de qualquer jeito, os “Justiceiros”.

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