A violência só será interrompida se várias vozes e corpos contarem a sua história, diz Grada Kilomba

A cada nova intervenção de Kilomba em fóruns sobre racismo, ela tem elevado o tom e a consistência de suas teses em torno da necessidade de descolonização, sobretudo do conhecimento.

A cada nova intervenção de Kilomba em fóruns sobre racismo, ela tem elevado o tom e a consistência de suas teses em torno da necessidade de descolonização, sobretudo do conhecimento.

A violência só será interrompida se várias vozes e corpos contarem a sua história, diz Grada Kilomba

por Arnaldo Cardoso

Com presença marcante no debate centrado no tema da descolonização que vem ganhando mais espaço em diferentes países, com destaque para Portugal, a artista multidisciplinar, psicanalista, professora e escritora portuguesa, Grada Kilomba, mais uma vez foi incisiva ao avaliar, em evento realizado entre os dias 5 e 7 de março em Lisboa, por ocasião dos 31 anos do jornal português Público, que “Portugal tem um desfasamento no discurso sobre outros corpos. É importante transformar as narrativas e fazer o que quer uma nova geração.” Também defendeu que é importante descodificar o mito de que o combate antirracista traz fraturas sociais: “A história colonial está presente há 500 anos na nossa biografia, se não se faz um trabalho de descolonização, a violência não é interrompida. Ela só será interrompida se várias vozes e corpos contarem a sua história.”

Na apresentação do referido evento intitulado “Olhar para o Futuro”, o jornalista Manuel Carvalho, diretor do Público, afirmou que a justificativa para a realização do evento se firma na consideração da importância de “projetar o sentido do futuro que nos espera e do futuro que podemos e queremos construir”, e por reconhecer a obrigação que a imprensa tem em ajudar o país nesse processo de projeção no futuro.

Além da participação do Presidente da República de Portugal Marcelo Rebelo de Sousa, políticos, acadêmicos e artistas do país, o evento em formato digital contou com convidados estrangeiros como o ex-Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso cuja conferência teve o título “Olhar o Mundo desde o Brasil” na qual apresentou uma reflexão sobre o mundo do pós-pandemia.

Mas foi a voz de Grada Kilomba, embora suave, que mais ecoou no evento. A cada nova intervenção de Kilomba em fóruns sobre racismo, ela tem elevado o tom e a consistência de suas teses em torno da necessidade de descolonização, sobretudo do conhecimento. Kilomba reconhece o saber e a arte como territórios de descolonização. Mesmo acumulando respeitados títulos acadêmicos, como seu doutorado em Filosofia obtido na Alemanha, país onde vive, Kilomba prefere ser apresentada como artista multidisciplinar e tece a seguinte critica “Nós temos uma noção muito patriarcal e fálica do que é o conhecimento. Fazemos muitas coisas, mas há uma hierarquia: aquilo que está ligado à academia é o verdadeiro conhecimento e a verdadeira profissão. Depois, nós nos especializamos numa coisa, depois fazemos um mestrado, um doutorado… É uma coisa bem fálica que vai crescendo, crescendo, crescendo. Eu acho a coisa é muito mais cíclica, mais circular, em que nosso conhecimento atravessa muitas diferentes disciplinas e está em diálogo com diferentes formatos” (El País, 2019).

Em sua elogiadíssima vídeo-instalação “Illusions” apresentada em 2016 na 32ª Bienal de São Paulo, Grada Kilomba rejeitava o mito da ignorância sobre a realidade do racismo: “Não é uma falta de conhecimento, é um exercício de poder, não querer saber, não precisar saber”.

Dado ao seu poder explicativo vale lembrar que Ilusions é uma performance de leitura ao vivo acompanhada de um vídeo pré-gravado, encenado por atores incluindo a própria Grada que faz uma analogia da sociedade contemporânea, e especialmente das experiências de racismo institucionalizado, a partir dos mitos de Narciso e de Eco.

Na performance trata-se da ilusão de que nós vivemos num espaço branco, como um cubo branco, que exclui e marginaliza muitas outras identidades.

Em entrevista por ocasião da Bienal, a artista fez a seguinte síntese de sua instalação: “tento fazer a ligação entre o mito de Narciso e a sociedade em que nós vivemos, que está muito centrada numa sociedade que está sempre – como vimos na eleição de Trump – a recuperar e reinventar o passado e que tem imensa dificuldade em ficar no presente e de chegar ao futuro”.

Todo o trabalho de Grada Kilomba fala sobre o dia-a-dia de milhões de pessoas excluídas e marginalizadas que vivem em sociedades que continuamente refletem imagens coloniais.

Na Flip de 2019 Grada Kilomba apresentou seu livro Memórias da Plantação (Cobogó), em que narra histórias de racismo cotidiano.

Em suas várias produções, sua voz se levanta em oposição ao discurso autoritário, narcísico da branquitude que crê que “os outros todos só podem existir se forem iguais à imagem dele próprio”.

O atual momento da luta dos coletivos e movimentos negros pelo mundo – a exemplo do que se vê nos Estados Unidos da América que, em meio ao julgamento do assassino de George Floyd, outros continuam ocorrendo, como o do jovem negro de 20 anos Daunte Wright, baleado no último dia 11 por uma policial branca, em Minneapolis – não aceita nenhum recuo.

Como tem exaltado Grada Kilomba em relação a esses corpos e vozes que historicamente foram marginalizados e silenciados “não há mais como mantê-las nesse não-lugar”.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisador e professor nas áreas de Economia Brasileira, Relações Internacionais e Sociologia.

Redação

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