“Campos de concentração” cearenses precederam aos de Hitler, por Marcelo Auler

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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“Campos de concentração” cearenses precederam aos de Hitler

por Marcelo Auler

em seu blog

A crença e a religiosidade popular no interior do Ceará não permitiram que uma triste e criminosa história caísse no esquecimento. Verdade que no restante do país quase não se sabe nada a respeito. Mas foi pela persistência dos cristãos, que jamais deixaram de encomendar missas para as Almas do Açude do Patu, que a existência de um Campo de Concentração, na cidade de Senador Pompeu (273 quilômetros de Fortaleza), não caiu no esquecimento. Nele, milhares de flagelados da seca de 1932, incluindo crianças, foram mortos e enterrados sem qualquer respeito humano, em valas coletivas.

Depois de receber o apoio da Igreja Católica, que há 36 anos realiza – tal como ocorreu na madrugada deste domingo (11/11) – a chamada “Caminhada pelas Almas” do Açude do Patu – ou Caminhada da Seca -, a população do município começa a merecer atenção do Ministério Público Estadual. Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi assinado com a prefeitura no qual ela se comprometia a providenciar o tombamento do Sítio Arqueológico da Barragem do Patu. Mas o prefeito Antônio Maurício Pinheiro Jucá não honrou seu compromisso. Em consequência, o promotor de Justiça Geraldo Nunes Laprovitera Teixeira ajuizou duas ações visando a preservação da área onde se acredita que foram enterrados milhares dos flagelados daquela seca em covas coletivas.

Estes “Campos de Concentração” eram áreas de confinamento idênticas às mundialmente famosas criadas, a partir de março de 1933, por Adolf Hitler, então chanceler da Alemanha. O Ceará, portanto, foi precursor da prática nefastas e criminosa de isolar e confinar seres humanos indesejados. Criou verdadeiras “barreiras sanitárias”, como define o promotor Teixeira, que tinham por objetivo evitar que flagelados da seca invadissem Fortaleza em busca da sobrevivência.

Milhares morreram em seis destes “currais” espalhados na região do semiárido do estado. A criação dos mesmos, segundo o promotor Teixeira constatou em matérias jornalísticas da época, foi aplaudida e elogiada pela sociedade e políticos da capital cearense. As vítimas morreram em consequência da fome, subnutrição e de doenças – fala-se em surto de cólera, peste e sarampo. Enfim, não só do descaso governamental que os amontoou e confinou para não “contaminarem” a capital que vivia seu momento de “Belle Époque”. Mas também pelo criminoso desvio de alimentos que chegavam na estação ferroviária, mas não serviram para alimentar os flagelados. Foram desviados.

Não eram considerados pessoas – Na falta de alimentos e proteínas para os famintos – inclusive muitas crianças – apelava-se para práticas pouco usuais. Torravam, por exemplo, sangue de boi para depois rasparem-no e misturarem ao café, na expectativa de aumentar a proteína. Tal como Raimunda Correa do Nascimento contou ao Blog (leia o depoimento abaixo) ter ouvido do seu esposo, Afonso Ligório do Nascimento, um dos sobreviventes do campo.

A maioria dos mortos foi enterrada em grandes valas comunitárias, sem que “ninguém tomasse nota dos nomes deles, quase não eram considerados pessoas e cristãos”, descreveu Afonso Ligório do Nascimento, um dos sobreviventes do “Campo de Concentração” de Senador Pompeu, antes de falecer em 2008.

Até hoje, porém, não houve nenhuma iniciativa para confirmar a existência de tais ossadas e providenciar seu resgate, até para estudos históricos e arqueológicos. Somente em 2017, após as diversas Caminhadas promovidas pela Diocese de Iguatu – e, desde então, com a participação do bispo dom Edson de Castro Homem, que assumiu o posto em 2016 – ocorreu a primeira movimentação do Ministério Público Estadual buscando preservar a área e a história. Deu-se com o TAC, não cumprido pelo prefeito Pinheiro Jucá.

Na visão do padre Anastácio Ferreira de Oliveira, um dos religiosos da diocese de Iguatu que se empenha em manter viva a memória do que ocorreu, o que fizeram foi “uma espécie de higienização”. Ele é um dos que, a partir da devoção dos paroquianos da região, ajudou a fazer de Senador Pompeu o único município que preservou a área onde ocorreram tais atrocidades.

Fica junto ao Açude de Patu, onde a igreja construiu um cemitério simbólico. Ali é onde, sempre aos segundos domingos de novembro, ocorre a celebração da missa e memória dos mortos, após o percurso a pé – com muitos fiéis descalços – dos cinco quilômetros que separam o local da matriz.

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Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Discordo. É pouco provável

    Discordo. É pouco provável que Hitler se desse ao trabalho de estudar a história de um país pobre cuja população ele considerava inferior racialmente. Na verdade o modelo utilizado por Hitler foram os campos de concentração criados pelos ingleses durante a Guerra dos Boeres (1880 e 1881). Como não conseguiam derrotar seus inimigos, os ingleses confinaram os familiares deles em campos improvisados. A ausência de água corrente, saneamento básico e a escassez de alimentos fez o resto. A mortandade naqueles campos de concentração foi tão horripilante que levou os boeres a negociarem uma paz desonrosa com a Inglaterra.

     

  2. Utilização retroativa e maliciosa do sentido da palavra

    Os campos de concentração cearenses eram campos de concentração, sim, tanto que era por esse nome que o governo os chamava, e era esse nome que aparecia nos jornais. Só que o termo, na época, não tinha sentido pejorativo. O significado de campo de concentração como campo de prisioneiros destinados ao extermínio só se estabeleceu após o surgimento ds campos de concentração nazistas.

    Os campos cearenses eram a assistência que se podia dar aos refugiados da seca na época, do contrário eles pereceriam vagando pelas ruas e eram até abatidos a tiros por comerciantes. Mas a atribuição maliciosa e retroativa de um sentido pejorativo que a palavra só viria a adquirir décadas depois lança a versão de que o governo teria um plano sinistro para eliminar os pobres.

    É assim que se falsifica a História.

     

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