Cartas do Cárcere: o mesmo endereço para todos os 208 milhões de destinatários

por Aracy Balbani

Divulgando o Projeto Cartas do Cárcere, a reportagem de Ana Cláudia Peres para a Revista Radis, editada pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, aborda as violações de direitos, a angústia e o adoecimento de pessoas no sistema prisional do país.

O Projeto analisa a correspondência que os encarcerados e os familiares deles enviaram a órgãos do Estado. Logo, os reais destinatários dessas cartas somos todos nós, cidadãs e cidadãos brasileiros.

Uma realidade inaceitável. Um Projeto corajoso. Um texto que merece ser lido.

da Revista Radis  – Comunicação e Saúde

Prezado Sr. Estado

por Ana Cláudia Peres
 
Projeto mapeou e analisou denúncias, queixas e demandas do sistema prisional brasileiro a partir de cartas enviadas do cárcere

“Perdão por escrever aos doutores com caneta vermelha (falta de educação), porém estou no castigo e foi o material que consegui arrumar”. A observação está no p.s. de uma carta escrita à mão por um homem preso no Paraná. Para conseguir a caneta, ele conta que precisou trocar uma semana de café da manhã com outro preso. Com letra de forma segura, preencheu três páginas com denúncias. Ao final, solicitou das autoridades competentes a transferência para uma outra unidade onde pudesse ficar mais próximo da família. Selou o envelope. Endereçou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que fica na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Guardou a esperança consigo.

Essa é apenas uma das 8.818 cartas enviadas de dentro de presídios brasileiros em 2016, que estão digitalizadas, arquivadas e organizadas nos computadores da Ouvidoria Nacional de Serviços Penais. O material foi mapeado e sistematizado pelo projeto Cartas do Cárcere, que agora entra em sua etapa conclusiva. Escritas pelo próprio punho das pessoas privadas de liberdade ou por seus familiares, contêm milhares de denúncias, pedidos de indulto ou remissão de pena, demandas por advogado, saúde, educação, testemunhos da vida no cárcere. Cerca de 30% dos relatos com reivindicação específica apresentam queixas pelo não cumprimento dos direitos previstos na Lei de Execução Penal. Outras muitas, 15%, acusam falta de assistência jurídica em sentido amplo.

Como se trata de cartas enviadas às instituições públicas e não a parentes ou redes de afetos, poucas são as narrativas que apelam ao mero sentimentalismo ou questões emocionais. “São cartas que mobilizam a gramática do estado democrático de direito pra reivindicar aquilo que efetivamente lhes é devido”, explica a pesquisadora Thula Pires, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e coordenadora geral do projeto. Como a carta de um homem em um presídio do Rio de Janeiro que, estudando na unidade de ensino prisional, concluiu o segundo grau e foi aprovado no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “Fui informado pelo serviço de inclusão social que mandariam uma equipe de funcionários fazer a inscrição na instituição. Contudo, não houve a presença de nenhum funcionário”, ele escreve. “Na esperança de voltar a viver como um cidadão honesto, cumprindo o que determinou o juiz porém imbuído do desejo verdadeiro de não ser um marginal, volto todos os meus esforços no cárcere para voltar a viver com dignidade, e sou humilhado e rechaçado por juízes donos do portal do certo e do errado”.

Para Thula, as cartas revelam um descumprimento das normas que o próprio Estado determina como reguladoras da vida social, no país que tem a terceira maior população de encarcerados do mundo — 726 mil pessoas — ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. “É como se essas cartas dissessem: o mesmo direito que foi mobilizado pelo Estado para me colocar sob a sua custódia, precisa ser respeitado enquanto eu estiver sob a sua custódia”, completa a pesquisadora. O uso abusivo da prisão provisória, por exemplo, é uma dura realidade no Brasil. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) reunidos até junho de 2016, 40% das pessoas presas não possuem condenação.

De todas as solicitações, a que mais aparece é o pedido de graça/indulto, também conhecido como perdão de pena. Tal benefício é concedido pela autoridade direta do presidente da República, a depender da situação processual do preso, e é para esse direito que 45% das cartas apelam. Um detento de São Paulo assume na correspondência que roubou um mercado para colocar comida em casa — lata de leite, shampoo, creme dental e queijos. Foi julgado e condenado a dois anos e 11 meses de prisão. Com o benefício do semiaberto ganho na Vara de Execução, pedia à então presidenta Dilma Rousseff para “usufruir da graça do indulto”.

Em outras cartas, é possível sentir a angústia da remetente. “Meu filho preso recebeu uma carta sobre o Pedido de Indulto Coletivo. Dizem que o pedido de indulto foi encaminhado à Vara de Execuções para providência. Quais as providências que estamos até hoje sem saber?”, escreveu a mãe de uma pessoa privada de liberdade. “Meu Deus, como isso funciona? Cadeia é comprovado que é só para negro, pobre e favelado. Desculpe o desabafo, mas é uma mãe desesperada que tem o melhor filho do mundo e que me ajuda em tudo”. De todas as cartas analisadas, 71 foram escritas por mães.

“Estou doente”

De São Paulo, mais um detento solicita o perdão de pena. Na carta, ele explica que é paraplégico e paciente renal crônico em fase terminal e que se baseia no decreto presidencial de 26 de dezembro de 2015 que concede perdão de pena a deficiente físico e com doença grave. “Estou doente, preciso de cuidados médicos e o presídio não me socorre”. Também de São Paulo, um outro encarcerado, com 80% da pena cumprida, elenca uma série de arbitrariedades. Com um câncer de garganta em estágio avançado, expõe a falta de medicamentos na enfermaria e de profissionais de saúde na unidade.

“Quem medica são os mesmos funcionários que trancam o portão”, denuncia.
Dados da pesquisa apontam que em pelo menos 8% das cartas há alguma referência à ocorrência de enfermidades bem como ao fato de estas doenças terem sido desenvolvidas no período de privação de liberdade. Segundo o doutorando em Direito da Universidade de Brasília (UnB), Felipe da Silva Freitas, coordenador de pesquisa do projeto Cartas do Cárcere, os relatos dão conta de doenças que poderiam ser prevenidas ou evitadas e cujo contágio muitas vezes se deve às condições precárias das prisões. Os quadros mais recorrentes são de doenças sexualmente transmissíveis, câncer, diabetes, hipertensão, tuberculose e problemas de saúde mental — em especial, relatos de depressão.

À Radis, Felipe informa que a demanda por condições básicas de higiene e alimentação e a demanda por atendimento básico de saúde figuram como as principais solicitações verificadas na leitura das cartas. “Isso nos provoca a pensar qual é mesmo o papel e a responsabilidade do Estado ao assumir para si a prisão e a custódia destas pessoas”. Ele reconhece os esforços dos profissionais da área e as experiências exitosas dentro do sistema prisional que buscam atendimento psicológico para as pessoas privadas de liberdade. “Entretanto, a maioria dos estabelecimentos conta com serviços muito precários nesse aspecto e isso aparece nas cartas de modo muito revelador”. O pesquisador diz ter ficado bastante impactado pelas correspondências que traziam demandas de saúde, principalmente com os relatos de depressão e de surtos que mencionavam perturbação, choro constante, alucinações e pressão permanente. “Na privação de liberdade, o limite entre a vida e a morte, a sanidade e o adoecimento é muito tênue”.  

Em linhas gerais, diz Felipe, as cartas confirmam que no cárcere realizam-se sucessivas e reiteradas violações de direitos, incluindo superlotação, maus tratos e sérias precariedades nos serviços de saúde. “Mas, por outro lado, as cartas também nos apontam aspectos interessantes da ação política deste conjunto de mulheres e homens”, completa. Ele se refere às estratégias de resistência e sobrevivência desenvolvidas no cárcere. “Esta nos parece a questão mais reveladora apresentada pelas cartas: a compreensão dos grandes dilemas da vida de quem está encarcerado e a possiblidade de discussão sobre o efeito deste encarceramento no conjunto da nossa vida social”.

 

#40VozesDoCárcere

Cartas do Cárcere teve início em agosto de 2017, depois que a equipe foi selecionada em uma chamada pública do governo federal em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O objetivo era conhecer fluxos de leitura, análise e encaminhamento das cartas recebidas pela Ouvidoria Nacional cujos remetentes eram pessoas privadas de liberdade de 610 unidades prisionais do país. Formada por estudantes de graduação e pós-graduação, a equipe identificou em cada carta demandas, denúncias e histórias que pudessem depois compor um painel de análise. Desde abril, o projeto passou a usar as redes sociais para dar visibilidade às narrativas e criar uma discussão pública sobre o assunto.

“O que você faria se seu único recurso para lutar pela liberdade fosse uma caneta?”, indaga uma campanha veiculada pelo projeto na Internet e que divulga, a um só tempo, os números da pesquisa, textos de análise e uma série de vídeos com imagens, além de trechos de cartas lidos e compartilhados nas redes sociais. #40VozesDoCárcere reúne alguns dos mais impactantes testemunhos selecionados entre as 8.818 cartas. Em muitas delas, há um excessivo cuidado com a escrita e com apresentação. “As pessoas que estão postulando o cumprimento dos seus direitos, usam termos jurídicos e sabem que estão falando com autoridades públicas”, aponta a pesquisa.

O que mais chamou a atenção de Thula durante a leitura das correspondência foi o “volume de brutalidade” que as cartas evidenciam. “Ainda assim, me surpreende o fato de que, mesmo diante de um processo de desumanização tão extremo quanto à prisão, exista uma preocupação com a vida que insiste em se manter”, relata. A pesquisadora aponta ainda que, nas cartas escritas por mulheres, que correspondem a 15% do total, essa é uma característica que se destaca de forma mais marcante do que nas correspondências masculinas. “São cartas que me geram ainda mais preocupação, desconforto e inconformidade com a prisão porque, nas condições mais adversas, elas mantêm preocupações que extrapolam o individual e reivindicam pelo coletivo”.

A população carcerária feminina soma hoje 42.355 mulheres, de acordo com o Infopen. Em 2000, elas não passavam de 5.601, o que representa um aumento de 655% em menos de 20 anos, sendo o tráfico de drogas a principal razão dessa multiplicação (leia mais em Radis 172). “A gente sabe o que significa a solidão dessas mulheres dentro do cárcere, a separação dos filhos, a ausência de visitas. Então, antes de brutalizar essas mulheres, é preciso aprender com elas”, completa Thula. Em uma das cartas analisadas, uma mulher de 39 anos escreve à Ouvidoria. Tem 4 filhos, todos menores de 10 anos, o caçula nascido dentro do sistema carcerário. Com mais da metade da sentença cumprida atrás das grades, ela apela por prisão domiciliar. “Desculpe os erros e a folha, não tinha outra”, anota, no final do papel de carta de bordas cor de rosa com corações no cabeçalho.

Proibido cartas

As cartas são destinadas à Ouvidoria Nacional (48%), ao Supremo Tribunal Federal (28%) ou à Presidência da República (11%), entre outros órgãos (13%), e deixam rastros mesmo que nas entrelinhas. Além do episódio relatado na abertura desta reportagem em que um preso teve de negociar o uso da caneta, há cartas levantadas na pesquisa que demonstram que a barganha é uma prática corriqueira. Uma das cartas foi toda escrita em papel higiênico relatando uma série de abusos. Não bastasse isso, para surpresa da equipe, não era incomum encontrar correspondência com o carimbo de “censurada” ou de “liberada pela censura”. Isso demonstra que, nas unidades, existem diferentes triagens para que uma correspondência saia do pavilhão do presídio e chegue nos órgãos públicos e nas demais instâncias oficiais, diz Felipe.

Segundo Thula, esse fato revela mais uma violência do Estado uma vez que, do ponto de vista da jurisdição, não há nenhum limite ou impedimento legal que dificulte o envio de correspondências a instituições públicas. Tanto a Lei de Execução Penal no Brasil quanto tratados internacionais relacionados à gestão prisional autorizam petições endereçadas a órgãos públicos. “É muito assustador que gente tenha que conviver com um grau de aceitabilidade tão absurdo a ponto disso ser institucionalizado por um carimbo”, observa a pesquisadora. Se tem um carimbo, continua Thula, não se pode dizer que foi um desvio pessoal de um agente público irresponsável e, portanto, apesar de indevida, existe censura no envio das cartas a autoridades oficiais. Ela então pergunta: “Qual será o conteúdo daquelas que foram interceptadas de maneira criminosa pelo estado brasileiro?”

Para Felipe, a ocorrência da prática de censura é bastante preocupante em termos de garantia do direito à informação e à comunicação das pessoas privadas de liberdade. Durante a pesquisa, a equipe realizou uma oficina com os técnicos da Ouvidoria Nacional, além de entrevistas e observações de expediente para verificar os fluxos e rotinas no tratamento das demandas que chegam por meio das cartas. “Nesse processo pudemos identificar o caminho que as cartas percorrem e verificamos dois problemas principais”, indica Felipe. O primeiro se refere justamente às limitações para acesso a papel, caneta e à autorização para envio de cartas de dentro da prisão. “Não existe um levantamento oficial das regras de cada unidade prisional no Brasil, mas sabemos que as vedações a comunicação dificultam o acesso à Ouvidoria e a outros canais de denúncia e de monitoramento do sistema prisional”, ressalta.

Um segundo problema, de acordo com o pesquisador, diz respeito ao tamanho das estruturas governamentais para responder às demandas, denúncias e solicitações encaminhadas a cada Órgão. “Há na Ouvidoria por exemplo uma determinação expressa de que se encaminhe resposta ao preso quanto às medidas e providências adotadas para cada carta”, comenta. No entanto, ele enfatiza que o alto volume de demandas e o pequeno contingente de servidores são desafios concretos para esse processamento. Quando chegam à Ouvidoria, as cartas são contabilizadas, digitalizadas, separadas por localidade e distribuídas entre os analistas para leitura, identificação de demandas e denúncias, protocolo no sistema eletrônico, encaminhamento formal e resposta ao encarcerado.

Livro, relatório etc

Na reta final do projeto, o que se tem é um diagnóstico do sistema prisional brasileiro e das demandas por serviços e políticas públicas para o setor. Ao fazer uma restrospectiva da experiência como coordenadora do Cartas do Cárcere, Thula conta à Radis que o projeto foi uma maneira de dizer que aqueles sujeitos políticos estão falando e que suas vozes ecoam. “Acho que tudo isso ajuda a potencializar o direito de petição como algo que seja mobilizado para proteção de outros direitos”. Além disso, há um aspecto mais prático. Ao compartilhar a rotina de trabalho da Ouvidoria, com todos os limites e possibilidades que oferece, a equipe cumpriu ainda outra tarefa. “Foi possível perceber onde estão os gargalos e o que a gente pode fazer em um segundo momento para tentar otimizar esse fluxo”, avalia Thula. Atualmente, a Ouvidoria encaminha as denúncias e solicitações aos órgãos competentes e comunica ao detento.

A pesquisadora torce para que o projeto ajude nas discussões sobre o sistema prisional e os problemas do hiperencarceramento no Brasil. “A prisão é uma decisão política”, diz ela. “E a gente precisa ter a coragem de assumir que os limites estabelecidos para que a humanidade das pessoas não fosse completamente desconsiderada  não estão sendo respeitados”. Ela vai além ao afirmar que, sem enfrentar esse problema, “todo e qualquer cidadão brasileiro, em alguma medida, está com as mãos sujas de sangue em relação ao que acontece dentro das unidades prisionais”.

Ainda serão lançados um livro com análises de pontos que saltaram aos olhos da equipe de pesquisadores e um catálogo com as correspondências mais marcantes, além de um relatório que irá consolidar os dados e estatísticas do projeto. A página que Cartas do Cárcere mantém na Internet (www.cartasdocarcere.com.br) permanecerá como acervo e fonte de pesquisa. Felipe não tem dúvidas de que iniciativas e projetos como este são muito importantes para colaborar com o debate democrático sobre o tema e para orientar a ação de gestores públicos e atores do sistema de justiça atentos à realidade prisional. Mas, para ele, o projeto também cumpre papel decisivo ao destacar estas vozes políticas que escrevem as cartas sublinhando seus apelos, narrativas e denúncias. O pesquisador acredita que ter a própria história contada pode até não resolver o problema de cada pessoa privada de liberdade no país. “Mas possibilita uma forma muito elementar de resistência, que é o que faz a gente continuar vivo”.

Autor:  Ana Cláudia Peres
 

 

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