Cerimônias para o assassinato de um negro, por Hamilton Bernardes Cardoso

Robson morreu numa sala de cirurgia do HC. Antes o corpo ficara marcado, o rosto desfigurado e o escroto fora arrancado na 44ª delegacia

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Cerimônias para o assassinato de um negro

(texto publicado originalmente em junho/julho de 1978, no Jornal Versus)

por Hamilton Bernardes Cardoso

Vivi está grávida. É negra, como o marido e o filho que vai nascer. Qual preço de um negro? Você sabe?

Esta é a história de um, que custou três caixas de frutas. Demorou seis horas para morrer. Não sei se tinha carteira profissional. Alguém perguntou?

Vivi tem 17 anos de idade. O documento diz que tem 21. Há três meses está grávida.

Chegou no Registro Geral do Hospital das Clínicas. Pediu o cartão de visitas de Robson Silveira da Luz. A escriturária lhe respondeu que não havia o cartão. Ai, ela disse à Vivi: “─ Sinto muito, Robson morreu.”. Vivi era esposa de Robson, desmaiou.

Dia vinte e oito de abril, Robson morreu numa sala de cirurgia do Hospital das Clínicas. Antes o corpo ficara marcado, o rosto desfigurado e o escroto fora arrancado na 44ª delegacia policial, em São Paulo.

O delegado, enquanto batia em Robson, dizia-lhe:

“─ Negro tem que morrer no pau!”.

E, mesmo antes de matar o negro magro, de 21 anos, que morava na Vila Popular, havia dito a Eron, após a invasão de uma casa, que quando prendesse Robson, haveria de matá-lo no pau.

Por isso, Mãe Tereza do Terreiro… fez uma procissão de preto velho, no dia 13 de maio. Da casa de Robson, na Vila Popular, até a porta da delegacia, ao lado de uma igreja do centro de Guaianazes. Ali, defronte ao 44º Distrito Policial, para mostrar para a polícia que negro também tem vez.

Sueli da Luz, a Vivi, e Robson, há mais de três anos frequentam o terreiro de Umbanda. Antigamente, os dois iam juntos no da mãe Tereza. Às terças e sábados. Mas ultimamente ele resolveu frequentar um candomblé do Ipiranga. Talvez para ficar mais tranquilo com seus Orixás. Agora só Vivi ainda vai à Mãe Tereza, com o filho Rogério, de três anos.

No sábado, 22 de abril, Robson foi sozinho ao baile de noivado de uns amigos, em Guaianazes. O que mais gostava era de baile e de jogar futebol. Era lateral direito.

No baile, ele e seus amigos beberam bastante. Foram a duas festas numa só noite, mas acabaram ai no noivado mesmo.

De lá saíram num grupo de umas dez pessoas (ninguém lembra ao certo) cantando e brincando pelas ruas de Vila Popular. Encontraram o caminhão de frutas do feirante Joaquim de Oliveira Marques. Roubaram três caixas: uma de laranja, uma de abacaxi e um de mexerica. Enquanto as comiam, outros carregavam as caixas. Meio bêbados. Alegres. O feirante não esperou amanhecer para dar queixa ao 44º Distrito.

Nenhum dos rapazes se preocupou com a brincadeira. De manhã, Robson não deixou de jogar no 1º de Maio. Na volta, almoçou.

Despediu-se da esposa, seguindo para o bar do pai, que aliás já tinha contratado um despachante para transferir a sua propriedade para o filho.

Na Vila Popular, Bradelvino Gonçalves, amigo de infância de Robson, também estava tranquilo. À tarde, foi à casa da namorada. Quando voltava, seis da tarde, investigadores à paisana o prenderam.

No outro dia, na delegacia, foi torturado. E Bradelvino, o Dô, conta:

“─ Levam a gente para uma sala com escrivaninha e uma mesa com máquina de escrever. Deve ser para o escrivão – não sei para quê! Ai mandam você tirar a roupa. Eu tirei e fiquei como Deus me fez. Isso depois que me esmurraram bastante. Ai enfaixaram minhas mãos, os dois punhos juntos. Depois me mandaram sentar. Enfaixaram meus dois pés juntos. Enfiaram um ferro entre os braços e as pernas. Apoiaram uma ponta do ferro na escrivaninha. Estava pendurado e fiquei à vontade deles… Ai, bateram na minha cabeça, no corpo, na sola dos pés com borracha. Além das borrachadas, esmurram a gente, chutam e batem como querem. Perguntam se a gente tem sede. Diz que sim, nesta altura, a boca está seca. E eles jogam água na nossa cara, no canto da boca, quase afogando a gente, que não consegue beber nada….”.

  “─ Eles queriam saber da casa do Robson. Disse que não sabia e que se soubesse não diria.”.

Esta cena se repetiu diariamente, até sexta-feira. Mas não só Dô que era torturado, também os outros prisioneiros da delegacia do dr. Luiz Alberto Abdala – delegado de política em Guaianazes.

Valdir era torturado todos os dias, apesar dos quinze anos, pelos policiais do 44º Distrito.

Durante o dia torturavam os prisioneiros. À noite aterrorizavam os moradores da Vila Popular. Um dia invadiram a casa da sogra de Erinton Pereira de Brito – O Eron que daqui há dois meses vai se formar investigador de polícia. Além da sogra estava Lúcia, a esposa do Eron com algumas crianças. Os policiais invadiram a casa e ameaçaram todos com as armas nas mãos. Queriam o Mutuca. Ao ver a casa invadida, Eron, que chegava do trabalho, correu para lá. Abdala ao reconhece-lo abraçou-o: “Preciso pegar o Mutuca e o Robson. Se acho este neguinho mato ele no pau. Ele está me dando muito trabalho”. Segundo Eron, Mutuca é um garoto que mora na vila, trabalha e ajuda o pai.

Vivi também teve que conversar com o delegado Abdala, na terça-feira. No carro dele, uma variant. Foi ai que se negou a dizer onde Robson estava, que encontrou o garoto Valdir algemado e descobriu que os policiais forçavam-no a dizer o endereço de Robson.

Ela acha que foi ele quem deu o endereço do seu marido. O garoto nega: “Não falei nada. Fiquei pendurado, tomei choque no peito, em cima do coração, mas não entreguei ninguém, nem meus camaradas….”.

A casa de Vivi ficou de pernas pro ar, neste dia, como a casa da sogra de Eron, revistadas pela polícia. Mãe Tereza viu sua filha de santo ser arrancada do seu terreiro: o templo de Oxalá.

Na sexta-feira, Robson ainda estava tranquilo. Foi em casa pegar roupas limpas e as chuteiras para jogar pelo Império do Samba F.C., do Ipiranga. Foi ai que o guarda Eros, o Boca Torta, chamou Abdala. O delegado e sua equipe cercou o ônibus. Prendeu Robson e levou-o à delegacia. Pela manhã, ele encontrou-se com Dô, na cela. Conversaram.

Enquanto tudo acontecia, a mãe de Dô arranjou um advogado, o dr. Darci. Já fora insultada na delegacia, quando levou marmita e cobertor para o filho: já chorara de raiva do Abdala. Vivi também.

Ainda na sexta-feira, os investigadores buscaram Robson na cela e levaram-no para a sala de torturas. Pelas descrições de Dô, presume-se que seja uma casa entre a delegacia e uma casa de família, quase defronte a uma igreja: o templo de Cristo.

Foi levado por volta de onze horas. E não demorou muito para os amigos de cela ouvirem seus gritos de misericórdia

Os gritos de Robson continuavam. Ora gritava, ora se calava. Os policiais, à vezes, paravam para descansar.

Treze horas. A cerimônia continuava, ao lado da Igreja.

Quatorze horas. Os gritos de Robson já não eram como de início; espancaram, saíam apertados pela garganta. Já não eram gritos; os sons chegavam baixo no ouvido dos companheiros.

Às 17.30 horas, os homens da lei traziam Robson de volta para cela. Ensanguentado, as juntas duras, o corpo desforme: “Abdala falou que negro tem que morrer no pau. Por isto estão te matando.”.

Os companheiros de cela ajudaram-no a ajeitar-se. Ajudaram-no depois a urinar. Mijou sangue.

Chamados, os policiais levaram-no ao Pronto Socorro de São Miguel. Dai foi levado em estado grave para o Hospital das Clínicas. Sua esposa conseguiria encontra-lo no domingo, numa maca, no corredor do Pronto Socorro, tomando soro. O investigador de plantão tentou impedi-la de entrar, mas ela invadiu o Pronto Socorro.

Lá estava Robson, semiacordado e com as marcas das torturas:

“─ Estou feio, né, Vi?”.

“─ Não está não, bobo…”.

Diariamente sua esposa ia visitá-lo. Na quinta-feira, estava morto.

No enterro, a família, revoltada, pedia justiça, ameaçava vingança. No dia 13 de maio à noite, a procissão cantou pontos de preto velho. A Associação Martin Luther King, com mais de duzentos negros, protestou em Guaianazes. O primeiro pavilhão do hospital a ser construído pela Fundação Nacional de Cultura Negra e Miscigenações de Guaianazes receberá o nome de Robson Silveira da Luz.

A família escreveu carta aberta – com as assinaturas de amigos e de gente solidária – protestando contra a opressão policial. A carta, que vai ser entregue à Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese, foi lida no lançamento do Comitê Brasileiro de Anistia, dia 12 de maio, pelo grupo Afro-Latino América.

Hoje, Dô, o amigo de infância, denuncia tudo o que sabe sobre a morte de Robson. Sua irmã, que mora em Itaquera, é obrigada a voltar diariamente de táxi para casa. Dois homens num carro, às vezes, perseguem-na quando chega em casa a pé. Um dia, quando entrou na casa de um protestante para esconder-se do carro, os dois homens saltaram do veículo e deram um tiro para cima. Dois policiais visitaram, por duas vezes, a mãe de Dô, à procura dele. Disseram que precisavam falar com seu filho.

Vivi nem sabe como anda o processo. Alguém lhe disse e ela acredita, feliz, que o juiz que vai julgar o processo aberto pela família contra a equipe de Abdala, vai ser negro. Ela acha que um juiz negro talvez garanta um julgamento justo.

Está só, com Rogério, de três anos, e o filho que vai nascer na sua casa, na Vila Popular. Tem a solidariedade dos amigos que comentam que o português pagou seis mil cruzeiros para o Abdala matar seu marido.

Vivi pagaria bem mais para deixarem-no vivo.

O futuro?

Vai ser de luta e trabalho. Preparando os caminhos do Rogério e da criança que vai nascer. Se for mulher, vai se chamar Alexandrina – nome da tia de Robson, se for homem: Robson Silveira da Luz Júnior.

Jornal Versus, texto de Hamilton Bernardes Cardoso sobre Robson Luz, p. 38-39:

http://marcosfaerman.jor.br/Versus22.pdf?fbclid=IwAR1F4VLrQpyDcyeNL4mw5CtkTVnOllOT8Kc2tu6kbe96f49p5YB7ECOcgO8

Jornal Versus, texto de Hamilton Bernardes Cardoso sobre Manifestação do MNU em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, p.32-35: http://marcosfaerman.jor.br/Versus23.pdf?fbclid=IwAR1F4VLrQpyDcyeNL4mw5CtkTVnOllOT8Kc2tu6kbe96f49p5YB7ECOcgO8

Textos recentes sobre a tortura e o assassinato de Robson Luz:

Alma Preta – Jornalismo Preto e Livre: https://almapreta.com/sessao/cotidiano/apos-43-anos-processo-do-assassinato-que-motivou-criacao-do-mnu-vem-a-publico?fbclid=IwAR1dNiJJ6T68yKLv2dK_MTMborFoz6SitLX5zd8oBobL9zlirfgmzKNq4dU

Portal Geledés: https://www.geledes.org.br/o-emblematico-caso-do-jovem-robson-morto-pela-ditadura-esta-aberto-ao-publico-o-que-isso-significa-em-tempos-de-genocidio-da-populacao-negra/

Jornalistas Livreshttps://jornalistaslivres.org/caso-robson-reaberto/

Ponte Jornalismo: https://ponte.org/video-a-morte-que-fez-nascer-o-movimento-negro-unificado-no-brasil/?fbclid=IwAR1zl44zA69HiV_tlK0EHR0U9uJTbHv4xB3C-jhQAqpt07PaXVX74y6DOEo

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Redação

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