Em busca de refúgio, ganeses chegam ao sul do Brasil

Enviado por Free Walker

Do Diário Catarinense

Usando a Copa como desculpa, ganeses desembarcam no sul do país em busca de refúgio

Humberto Trezzi, de Criciúma (SC)

O cenário é desolador. Em uma das três casas geminadas da Rua José de Olinda, 290, em Criciúma (SC), mais de 50 ganeses se espremem entre dois quartos, uma sala e uma cozinha. Todos amontoados entre cobertores, alguns escassos colchões, poltronas e sofás velhos. Roupas espalhadas pelo chão, uma TV sintonizada em português — idioma que não compreendem — e jornais antigos, os quais eles apenas folheiam. Na cozinha, cheiro de comida rançosa. Em outro ponto do imóvel, onde funcionava um mercado agora desativado, nem sofás há: os africanos dormem em acolchoados sobre o chão frio.

Esse é o endereço que dezenas de ganeses rabiscam nos questionários da Polícia Federal sobre em que local pretendem ficar no Brasil. Dos mais de 300 habitantes de Gana (pequeno país da África Ocidental) que desembarcaram no último mês na cidade do sul catarinense, pelo menos cem indicaram a Rua José de Olinda, mais especificamente a “Casa Azul da Beth”. Isso escrito num português quase incompreensível, porque só falam inglês ou algum dos 50 dialetos tribais ganeses. Vários deles saíram de Criciúma rumo a Caxias do Sul e outras cidades gaúchas, todos em busca do Eldorado brasileiro.

ZH visitou esse primeiro ponto da jornada dos ganeses no Brasil, a Casa Azul, em Criciúma. Na realidade, um conjunto de duas residências e um mercadinho desativado no bairro de classe média do Pinheirinho. Habitações modestas, transformadas em pensões informais pelos donos, dois irmãos brasileiros. Já na rua contígua é incessante o vaivém de africanos, alguns deles deitados em sofás em plena calçada. 

O islamismo é a religião professada pela maioria dos ganeses que tem migrado para o Brasil (embora apenas 11% da população de Gana seja muçulmana). E o culto está explícito nas vestes tradicionais de alguns: lenços enrolados sobre a cabeça (hatas) e camisolões até os pés (shalwar kameez). Mas a maioria prefere roupas de marcas esportivas de grife e não dispensa fones de ouvido e celulares. Como é Ramadã (mês sagrado do islamismo), os mais tradicionais passam parte do tempo rezando o Alcorão, o livro sagrado.

Todos os muçulmanos — os conservadores e os descolados — jejuam durante o dia, penitência que têm de cumprir nesse período. Saciam a fome durante a noite, cantando cânticos tribais e comendo com as mãos e sem talheres, algo comum na sua África natal, “mas que espanta a gente”, admite uma das donas da pousada, que prefere manter o anonimato. Ela viu na chegada dos africanos uma oportunidade de ganhar aluguel (R$ 300 por cada uma das três dependências), mas se mostra contrariada com a algazarra.

Albergue da prefeitura também abriga africanos

Mais de 50 ganeses fizeram desse lugar em Criciúma o seu lar provisório. As decepções são muitas, a começar que a cidade não tem clima quente nesta época do ano. Todos tremem ante o frio de 10ºC em algumas noites, algo nunca vivenciado por eles. Uns poucos ficaram doentes após as chuvaradas de inverno no início do mês. 

Falta dinheiro para carne, embora muitos ganhem ajuda da prefeitura, inclusive para se alimentar na Casa de Passagem São José (um lugar para acolher migrantes). Por último, os empregos — finalidade maior da jornada desde outro continente — começam a escassear, nesse momento de recesso nas vagas da indústria brasileira. A saída é perambular pelas ruas, atrás de “bicos” para garantir a próxima refeição.

A situação dos ganeses já foi pior. Em 26 de junho, 65 deles foram encontrados pela Defesa Civil nessa mesma casa, dormindo sobre as próprias malas de viagem, quase sem comida. Desses, 41 foram recolhidos para a Casa de Passagem. Em julho, 260 chegaram em Criciúma. Outros 327 foram para Caxias do Sul atrás de vistos de permanência. Muitos não se acostumaram com o frio da Serra gaúcha e retornaram dias atrás a Criciúma, para a Casa Azul, onde desfrutam de contato com conterrâneos, apesar da precariedade.

A secretária de Defesa Social da prefeitura de Criciúma, a advogada Solange Barp, tem providenciado jaquetas, cobertas, moletons e blusões para os ganeses. Mas alerta que tem os próprios pobres da cidade para cuidar.

— São 3,2 mil pessoas que dependem do Bolsa Família e outras 6 mil que recebem algum tipo de assistência. E a Casa de Passagem é para outros migrantes também, além dos africanos — afirma.

E a perspectiva é de continuar a migração maciça. No ônibus da empresa Pluma que saiu de São Paulo e chegou às 10h30min de ontem na cidade catarinense, mais nove ganeses desembarcaram, já com carteira de trabalho na mão, após dois meses de espera na capital paulistana. Alguns vão a Campinas (fábricas de vestuário), mas a maioria fica em Chapecó (frigoríficos), Criciúma (construção civil e indústria do vestuário), meia dúzia de pequenas cidades do sul catarinense e, agora, Rio Grande do Sul. 

O Sul, com mais empregos, é uma espécie de miragem para eles, a mais nova etnia africana a buscar aquilo que imaginam ser uma espécie de paraíso tropical, o Brasil.

Passaporte de permanência
As etapas para pedir refúgio no Brasil

– Refugiados são pessoas que estão fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política, participação em grupos sociais ou violação generalizada de direitos humanos.
 
– O refúgio é regulado por lei de 1997 que criou o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

– Para solicitar refúgio, o estrangeiro deve procurar a Polícia Federal ou a autoridade migratória na fronteira para fazer o pedido.

– O estrangeiro preenche um formulário e informa meios de contato e onde está hospedado. A solicitação do refúgio é gratuita e dispensa a presença de advogado.

– Após registrar a solicitação, o estrangeiro recebe um protocolo válido por 180 dias, que poderá ser renovado até a decisão final do Conare sobre o pedido de refúgio.

– O protocolo provisório serve como documento de identidade: comprova a regularidade da situação migratória e garante que o estrangeiro não pode ser repatriado.

– Com o protocolo provisório, o estrangeiro adquire o direito de ter carteira de trabalho, CPF e de acessar os serviços públicos.

– O ingresso irregular no Brasil não impede o pedido de refúgio. 

– A solicitação de refúgio pode ser estendida para o grupo familiar.

Saiba mais sobre Gana
– Capital: Acra
– População: 25,9 milhões (2013)
– População abaixo da linha de pobreza: 28,5% (2006)
– Crescimento do PIB: 5,5% (2013)
– PIB: US$ 90,4 bilhões (2013), o 78º entre 229 países
– PIB per capita: US$ 1.760 (2013)
– Peso de cada setor no PIB:
* Serviços – 49,8%
* Indústria – 28,7%
* Agricultura – 21,5%
– Inflação anual: 13,5% (2013)
– Desemprego na faixa etária de 15 a 24 anos: 25,6% (2012)
– Exportação: petróleo, ouro, cacau e atum 
– Importação: máquinas e equipamentos, combustíveis e alimentos

Fontes: Banco Mundial, FMI e Serviço de Estatística de Gana

Redação

2 Comentários

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  1. Aos ganeses que desfilam

    Aos ganeses que desfilam diante de minha casa todos os dias ultimamente, minha honra de fiho de imigrantes.

    Pena que o  Brasil temos tão pouco recursos, recursos  que nos faltam para atender nossso próprio povo, para atender esse povo migrante do Haiti e de Gana..

    Sejam bem vindos ganeses e haitianos, é da nossa natuzera receber imigrantes, do zóio azul ou da pele preta…

     

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