Empresários cariocas financiam operação policial contra moradores de rua

Da Agência Pública

Operação policial financiada por empresários cariocas mira moradores de rua

Por Anne Vigna

Patrulhamento é pago pela Federação do Comércio, que escolheu os bairros a serem atendidos, no Rio de Janeiro. “Você sabe, como em qualquer lugar do mundo, quem financia escolhe”, diz secretário do governo

Desde o dia 1o de dezembro de 2015, a Operação Segurança Presente garante patrulhamento policial em bairros nas zonas sul e norte do Rio de Janeiro. No Aterro do Flamengo, na lagoa Rodrigo de Freitas e no Méier, cerca de 400 agentes fazem dois turnos, até as 10 da noite. Nos coletes amarelo, verde e laranja – uma cor para cada bairro –, trazem lado a lado as logomarcas do Governo do Estado e da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ).

É a primeira vez que uma operação do tipo é totalmente financiada por uma organização privada no Rio. A Fecomércio, formada por 59 sindicatos patronais fluminenses, está pagando R$ 44 milhões por dois anos de operação policial.

A intenção é “contribuir para a busca de soluções aos problemas sociais”, segundo Marcelo Novaes, gerente de relações sindicais da Fecomércio: “A Fecomércio decidiu tomar para si o assunto da segurança porque, se o cidadão não tiver sensação de segurança, não vai sair mais. E tirar o consumidor da rua provoca perdas para o comércio”.

Segundo a Fecomércio, os três bairros foram selecionados com base em um estudo da Secretaria de Segurança Pública, que indicava as zonas que mais necessitam de atenção do poder público. Porém, em entrevista à Pública, o secretário de Governo do Estado, Paulo Melo, afirmou que foi a Fecomércio que escolheu os três locais, e não a secretaria: “Eles escolheram esses três lugares. Você sabe, como em qualquer lugar do mundo, quem financia escolhe”, disse. Após a entrevista, no dia 18/2 Paulo Melo assumiu a Secretaria de Direitos Humanos do governo fluminense.

“O Méier é uma zona onde os cariocas fazem compras. E tanto o Aterro como a Lagoa são zonas de lazer importantes para os cariocas”, assegura Maurício Novaes. Lagoa e Aterro receberão competições durante os Jogos Olímpicos deste ano. No caso do segundo, existe um polêmico plano de revitalizaçãoda Marina da Glória, que visa alavancar comércios e restaurantes.

As operações são integradas por policiais militares e ex-integrantes das Forças Armadas, que têm como missão filmar as abordagens.

Pelo trabalho, além do salário que já recebem do Estado, os PMs da ativa, que trabalham nos dias de folga, recebem de R$ 150 a 187 por dia. Os PMs reformados recebem R$ 3 mil por mês, e os ex-militares recebem R$ 2,2 mil, além da aposentadoria.

Em dois meses, eles prenderam 869 pessoas – 584 delas por posse e uso de entorpecentes e 40 por roubo – e recolheram 209 moradores de rua. Segundoo site da Fecomércio, também foram apreendidos 3,2 mil itens de vendedores ambulantes.

“A ideia é inovadora, e tanto os números como os testemunhos que recebemos mostram que a operação é bem avaliada pelos habitantes”, assegura Marcelo Novaes.

O governo do Rio de Janeiro, por sua vez, qualifica a operação como “fantástica” e “absolutamente positiva”. “Já temos vários empresários, vários setores que querem levar esse projeto para outras aéreas como a Barra da Tijuca. E agora estou conversando também com empresários do centro da cidade para tentar levar esse projeto para o centro da cidade, que hoje é o nosso Calcanhar de Aquiles”, diz o secretário Paulo Melo.

No Flamengo, moradores de rua na mira

A reportagem da Pública acompanhou a operação Aterro Presente, no Flamengo, na tarde de 1o de fevereiro.

Logo no início, o tenente da PM Gabriel Cavalcante teve de ligar para duas patrulhas até conseguir as câmeras para assegurar que “tudo, absolutamente tudo, está filmado”, conforme o prometido. As imagens são enviadas todas as noites para a Secretaria Estadual do Governo. A reportagem pediu para vê-las, mas a secretaria negou acesso aos registros.

“Abordamos todas as pessoas que têm uma atitude suspeita fundada. Por exemplo, se a pessoa foge quando chegamos, ou se tenta esconder alguma coisa”, afirma o tenente.

Ninguém fugiu da polícia naquela tarde. Mas, com o passar das horas, as atitudes suspeitas se multiplicaram. Um casal conversando em um banco foi abordado porque “poderiam estar fumando maconha”, explicou o subtenente Jannuzzi. Um homem negro, que andava de bicicleta, foi parado por “andar rápido, isso é suspeito”, disse o subtenente. Em todas as cerca de 30 abordagens, as pessoas – na sua maioria jovens negros –foram revistadas exaustivamente e depois liberadas.

No final do dia, Jannuzzi encontrou três jovens moradores de rua. Chamou reforços e logo vieram mais seis policiais, que revistaram as duas pequenas maletas que tinham todos os pertences do grupo. Não havia nada suspeito, segundo os policiais, mas os moradores foram retidos porque não tinham carteira de identidade. “Se eles não têm identificação, temos que verificar os nomes porque pode existir um mandato de busca e apreensão contra eles”, explicou o subtenente. Outro morador de rua também foi revistado.

Policias revisam três moradores de rua que estavam conversando. Todos foram levados para a delegacia

“Vamos levar todos para a delegacia”, anunciou . “Mas você me levou na semana passada para a delegacia”, protestou um deles. “Quer ir para o abrigo?”, respondeu o subtenente.

“Antes, havia muitos moradores de rua no Aterro, mas agora é muito raro encontrar. Isso é um êxito”, acrescentou o policial. Após algumas horas na 9ª Delegacia de Polícia, responsável pela área, os quatro foram liberados.

“Essa nova operação nos preocupa muito porque entra na mesma lógica da política de higienização que existe na cidade há alguns anos”, diz a defensora pública Carla Beatriz Nunes Maia, do Núcleo de Defesa de Direitos Humanos. Ela explica que uma operação policial semelhante, mas paga com dinheiro público e composta pela Guarda Municipal, é realizada no bairro da Lapa. “Já recebemos tantas denúncias dos moradores de rua pela atuação dos agentes do Lapa Presente, que sempre querem levá-los ao abrigo Paciência, escolhido pelos policiais por estar a 80 quilômetros da cidade. Essas operações estão na mesma lógica: limpar a cidade, levar os moradores o mais longe possível para dificultar o seu regresso”, explica.

Para o defensor federal Renan Vinicius Sotto Maior de Oliveira, levar um morador de rua para a delegacia porque não tem identidade é “uma prática da ditadura”. “Não ter identidade não é crime, e os policiais sabem que isso é ilegal. Nunca fariam isso com pessoas de classe média, somente com os pobres”, avalia.

Adolescentes na mira

No bairro do Méier, em vez de moradores de rua, a operação policial tem alvejado preferencialmente jovens e adolescentes acusados de praticar roubos, segundo relatos da Conselho Tutelar. “Desde que começou esta operação, vamos todos os dias para a delegacia”, assegura a conselheira Maísa de Paula. O Conselho é acionado pela delegacia toda vez que um adolescente é liberado sem que os pais sejam encontrados. “Na verdade não sei se os policiais são bem-preparados, porque nossa carga de trabalho aumentou muito.”

A defensora pública Eufrásia Maria Souza das Virgens corrobora o que diz a conselheira. “Estamos recebendo inúmeras denúncias sobre a apreensão ilegal de adolescentes pela Polícia Militar e ainda não temos informações oficiais e claras sobre o teor desse convênio. Muitos estão sendo apreendidos simplesmente porque o policial acha se tratar de alguém que virá a cometer ato infracional, a partir de um julgamento subjetivo. Chegando lá, porém, verifica-se que não há fato a ser registrado e o adolescente é liberado.”

O capitão Hugo Coque nega que os adolescentes apreendidos sejam inocentes. “Quando levamos à delegacia, é porque temos uma boa razão”, diz. A Secretaria de Governo garante que os policiais da operação foram capacitados, inclusive em relação aos direitos dos adolescentes.

Natália, uma jovem negra de 18 anos que pediu para não ser identificada, teve a impressão oposta. Ela foi revistada no Aterro do Flamengo em dezembro, quando se dirigia a uma partida de futebol, logo depois de ter comentado com dois amigos, também negros, o funcionamento da Operação Aterro Presente diante dos policiais.

Os PMs revistaram sua bolsa e a dos seus amigos. Ao encontrarem um computador tablet, suspeitaram que fosse roubado e não acreditaram na sua explicação. “Perguntaram muitas coisas e me disseram que eu parecia com uma menina que rouba por aqui, mas não explicaram por que eu parecia com ela. Agora não sei se vou mais acompanhar o meu namorado para os jogos de futebol, se eu tenho esse perfil para os policiais…”, conta.

Policiais pesquisam Identidade dos revistados para ver se não há mandado de busca e apreensão

Ao contrário do prometido no programa, os policiais não filmaram a sua abordagem. “Não sei se fui revistada por ter feito um comentário diante dos policiais ou por ser negra”, diz Natália. O defensor público Rodrigo Azambuja, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, não se surpreende ao ouvir o relato. “Na maioria são negros”, diz. Ele conta que foi informado da apreensão e posterior liberação de 17 adolescentes no dia 21 de dezembro pela equipe da Aterro Presente.

Um dos grandes problemas, diz Rodrigo, é a opacidade do financiamento. A Coordenadoria entrou na Justiça em 27 de janeiro com pedido de busca e apreensão do convênio firmado entre o estado, o município e a Fecomércio. O estado ainda não mostrou o contrato, embora tenha sido intimado pela Justiça em dezembro do ano passado. “Como ainda não temos o convênio, é difícil comentar essa operação. Mas o que nos preocupa é ver que uma entidade privada pode escolher os lugares onde vai haver segurança. Não a partir dos índices de criminalidade, mas da necessidade do comércio”, diz.

Estatísticas

Balanço da Operação Segurança Presente de 1º/12/15 até 3/2/16

Atualização: Entrevistado pela Pública quando era Secretário de Governo do Estado do Rio de Janeiro, Paulo Melo assumiu em 18 de fevereiro a Secretaria de Direitos Humanos do mesmo governo.

Redação

7 Comentários

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  1. Corrupção
    Privatização
    Corrupção

    Privatização disfarçada

    Perda de comando que passa a ser exercida pelos pagadores como afirma o próprio secretário: “Você sabe, como em qualquer lugar do mundo, quem financia escolhe”

  2. Falta pouco, falta muito pouco.

    Que o mercado de segurança pública no Rio já é privado há muito tempo ninguém duvida. Essa é apenas outra modalidade, mais, digamos, sincera.

    Desde que surgiu, em 1808, a polícia oferece serviços para os ricos enquanto esmaga os pobres e pretos, naquele tempo escravos que assombravam as iáiás recém-chegadas com a Corte.

    Passou o tempo e tudo continuou igual.

    Tem disque-denúncia terceirizado.

    Tem Justiça que só funciona para quem pode bancar bons rábulas.

    Tem helipóptero sem dono em MG.

    Agora, o (des)governador do pé grande oficializou o arrego.

    Qualquer comandante de batalhão sabe como funciona: Tem a caixinha do comércio que coloca viaturas sempre no mesmo lugar (lotéricas, farmácias, etc). Por isso é tão difícil contar com ajuda em alguns casos. Quem paga escolhe o local. E não é só por dinheiro, é pneu, bateria, lâmpadas e comida para o rancho. 

    Não há espaço vazio e se o Estado abandona, o rico adota. E cobra a fatura, claro, there’s no free lunch.

    Qualquer delegado sabe: Empresas de ônibus, filiados às associações comerciais, os mais ricos sempre são atendidos com prioridade.

    Quer um homicídio resolvido em tempo recorde? Basta olhar a “qualidade da vítima”.

    Ao invés de cobrar os impostos atrasados (28 bilhões, segundo a SeFaz do RJ, acumulados na dívida ativa em 2015), o (des)governo parte para a solução mais “fácil”.

    Aguardem, já está sendo estudado o fechamento de 40 delegacias no RJ. Advinhem quais bairros e cidades vão ficar a ver navios?

    Eu proponho, como já cantou Raulzito, o aluguel do Rio para quem pode pagar…tem vista pr’o mar, tem a Floresta da Tijuca, e os pobres podem servir de caça em safáris humanos…

     

  3. Empresarios cariocas financiam fascismo no Estado do RJ

    Estão transformando o país em uma privada. Já jogaram a saúde e a educação na privada, agora ao que parece é a vez da segurança públicas se transformar em privada. E todo mundo sabe o que tem dentro de uma privada.

    Agora, é fácil chamar de fascistas aqueles que vão para as ruas com pedidos de volta da ditadura militar, morte aos comunistas, etc – e realmente eles são. Mas a Fecomércio e o governo do Estado do RJ que promovem operações para levar para a delegacia pessoas que não cometeram crimes de forma arbitrária e ao arrepio da lei não são fascistas?

  4. Dura Lex, sed lex

    CP – Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940

     

    Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

     

    Pena – reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

     

    Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)

     

    (…)”

     

    A não ser que consideremos que empresários pagando por serviços públicos de segurança e escolhendo o local de atuação dos agentes seja algo “devido”. aí está.

     

    Mas se um barnabé policial aceitar um pastel ou um agrado do dono de uma oficina para consertar seu “possante” comprado em 437 vezes no crediário, aí é cana no cara…safado, desonra para a Instituição, bla. bla, bla…

     

    Se deus existe de verdade, a primeira coisa que fez para nos fazer felizes foi inventar esse poderoso lubrificante social: A hipocrisa!!!

    A verdade é coisa do demo! Só traz desgosto…

     

  5. PPP

    “Muitos estão sendo apreendidos simplesmente porque o policial acha se tratar de alguém que virá a cometer ato infracional, a partir de um julgamento subjetivo.”

    Subjetivo coisa nenhuma. É coisa científica: Minority Report.

    …A Olimpíada é neste ano. É preciso seguir o cronograma e a limpeza já está atrasada.

    E não se diga que os empresários não estão empenhados.

    É legítima parceria público-privada…

  6. Comentário.

    Temos, então, o caso em que, com base em pagamento de entidade privada, o Estado privilegia a área de policiamento.

    “Patrulhamento é pago pela Federação do Comércio, que escolheu os bairros a serem atendidos, no Rio de Janeiro. “Você sabe, como em qualquer lugar do mundo, quem financia escolhe”, diz secretário do governo”.

    Como diz o caso, eram moradores de rua, não tinham nada de criminoso, nenhum comportamento criminoso, mas, como não tinham documento de identidade (nem cidadão são considerados, a bem da verdade da “realpolitik”), foram levados para a Delegacia.

    Tem mineiro que vai ao Rio e não rola um pó (epa, epa) sobre sua conduta, ahm, ilibada…

    Operação OBAN, versão carioca e “light”.

     

  7. que legal, quando é que vão levantar o muro na favela?

    pra transformar de vez num gueto!

    que aberração é essa, empresário pagando o estado para obter vantagem!

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