Especial GGN dia da Consciência Negra: Do samba ao rap

A cada nova pesquisa do IBGE população brasileira se reconhece mais negra

Jornal GGN – A cada novo levantamento realizado pela Pnad (Pesquisa Nacional de Amostras de Domicílios), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira se reconhece cada vez mais como negra. Em 2010, entre os mais de 191 milhões de brasileiros, 91 milhões se autodeclararam brancos (47,7%) contra 97 milhões (50,7%) que se autodeclararam pretos (15 milhões) e pardos (82 milhões). Naquele ano foi a primeira vez na história do IBGE que mais de 50% da população brasileira se declarou não branca. Em 2013, o mesmo censo destacou que, em dez anos a população que se declarou preta no país cresceu 2,1% passando de 5,9% do total de brasileiros em 2004 para 8% em 2013.

Os dados apontam para o empoderamento de um público importante, a partir da valorização da cultura negra e de décadas dos trabalhos de autoafirmação desenvolvidos pelos movimentos sociais negros no país. Para debater mais esse tema, e, em especial a valorização da cultura negra, o Jornal GGN recebeu três importantes ativistas: a coordenadora de Igualdade Racial da Prefeitura de Guarulhos, Edna Roland, a diretora de conteúdo e marketing do site Mundo Negro, Silvia Nascimento, e o rapper Ricon Sapiência.

As formas de organização da população negra no Brasil são profundamente marcadas pela questão da cultura, pontuou Edna Roland. “A cultura é realmente um eixo que estrutura, que nos ajuda a construir a nossa identidade a valorizar nosso povo e nossa autoestima”, destacou Edna que, em 2001, foi indicada pelo então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, para integrar o Grupo de Pessoas Eminentes encarregadas de monitorar a implementação do Programa de Ação de Durban, contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

A expressão cultural mais forte da cultura negra no Brasil é, sem dúvida, a música. O rapper Rincon Sapiência destacou, durante o debate, pontos comuns entre a criação do samba e do rap. Os dois estilos são ricos em poesia e nasceram nas quebradas das periferias brasileiras.

“Quando o samba começou a se expor, a ganhar mais popularidade, sofreu muito preconceito social, até se tornar o que é hoje, onde temos o Carnaval como uma manifestação do samba, cheio de patrocinadores apoiando”.

“Isso foi bom, principalmente [porque] implementou muitos elementos da cultura clássica no samba. A gente pode reparar que o samba mais antigo tem metais, flautas, arranjos de piano. Isso foi dando requinte ao samba musicalmente, e isso foi se fazendo sem quebrar esses preconceitos”, pontou Sapiência, destacando que o rap passa hoje por um processo semelhante.

“O rap, naturalmente, por mais que seja do gueto, tenha uma linguagem informal, tem a beleza na poesia e no rítimo”, ressaltou o músico. Entretanto, o estilo ainda sofre preconceitos por utilizar gírias e palavrões. Por outro lado, com a melhora da situação econômica no país, que atingiu as periferias, os músicos do rap passaram a ter acesso a tecnologia, informação e conhecimento – em dez anos a população negra nas universidades cresceu 230%.

Ou seja, se por um lado a aceitação do samba pelo mercado fonográfico ocorreu, em parte, pela introdução de conceitos da cultura branca, por outro, hoje o rap, em meio ao embate cultural, está se sofisticando em grande medida graças ao empoderamento da própria população negra, com mais acesso a educação e tecnologia.

“Isso foi fazendo a gente conseguir atingir outros locais e ter um pouco mais de visão na hora de jogar as cartas do que a geração do rap anterior a minha”, avaliou Rincon.

Negro e preto

Ao retomar a questão da importância entre cultura e empoderação da população negra no Brasil, analizando como as gerações foram mudando a forma como se auto-denominam negras no país, Edna Roland destacou que a geração anterior a ela, até os anos 1960, se denominava como “pessoas de cor”. Em seguida veio a sua geração, de 1980, que se afirmou como negra. “É a fase do ‘100% negro’, ‘negro é a raiz da liberdade’, retomando a questão do samba”, lembrou.

Depois, nos anos 1990, vieram os rappers que começaram  a se definir como pretos. “Na minha geração o termo preto é coisa, é cor, não a pessoa. Mas a geração do rap se autodenominou como preta, porque eles consideravam que se dizer preto era mais radical do que se dizer negro”, explicando que esse posicionamento foi uma influência dos rappers norte-americanos que levantaram a bandeira do ser black, e não negro, um termo considerado pejorativo naquele país.

A jornalista Silvia Nascimento, também convidada para o debate, ressaltou que, apesar das estatísticas que revelam que mais de 50% da população brasileira é negra, esse público ainda é sub-representado pela imprensa e marketing brasileiros. Por isso, em 2001, ela decidiu criar o site Mundo Negro, com notícias voltadas para essa população, que vão de políticas públicas à beleza.

Ao longo da sua jornada de criação e sustentação do portal, Silvia diz que aprendeu muitas formas de combater o preconceito e de atender seu público. “Há várias formas de combater o racismo inclusive valorizando a auto estima dos meus leitores. Acredito que o amor próprio, a valorização da auto estima, a valorização da sua cultura, também tem poder revolucionário, quando você gosta do que você é”, pontuou.

Assista à seguir a entrevista completa concedida para o jornalista Luis Nassif:

https://www.youtube.com/watch?v=1VddEpLz04k width:700

 

Redação

13 Comentários

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  1. Paralelismos ou agenda setting?

    Os paralelos mostram agenda setting ou paralelismos, Nassif?

    Eles reconhecem acertadamente que eram chamados de “pessoas de cor”, depois “negros”, depois assumiram “preto”.  So que aconteceu a mesma coisa nos EUA:  primeiro “collored” (ai, uma vez eu fui em um lugar muito pobre com uma mulher de quase 90 anos e toda vez que o carro passava por alguem ela dizia “there is a collored person”;  “there is another collored person”;  “oh, look, a collored person”, e a coisa comecou a ficam um pouco embarassante!).  Depois o “aceitavel pra brancos falarem” passou a ser “negro”, que foi imediatamente transformado no palavrao “nigger” (nego) que nunca relou um unico joelho no Brasil, eu ja conhecia preto que se identificava como “nego” ja nos anos 70.  Depois os pretos tomaram a iniciativa de se nomearem e terminamos com “black” -passando ainda pela infeliz tentativa branca de controle ao chamar pretos de “African American”, uma burrada que dispensa comentario sociologico exceto, talvez, de FHC.  Se alguem se chamasse de “afro brasileiro” no Brasil, seria ridicularizado ate o fim da semana exceto se fosse realmente africano e brasileiro.

    Nao eh “coincidencia” em excesso?  Que eh “agenda setting” nao existe a menor duvida.  Mas ela nao veio de quem estava em poder.  Pre-internet, pre-personal media, existia agenda setting grupal a nivel global, coisa que nunca me ocorreu antes.

    (vide historico, usos, e etimologias de “queer/faggot/gay/LGBT” tambem, eh mais ou menos a mesma coisa, e o infeliz “LGBT” pegou no mundo todo pois eh “aceitavel pra branco”, digo, “aceitavel pra hetero dizer”)

    Estou aos 22 minutos e Rincon falou que a mulher preta  esta ainda em uma situacao “menos favoravel”.  Isso muda rapidinho, so estou avisando pros pretos brasileiros nao morreeeeeerem de susto o futuro proximo no qual descobrirem que mulheres pretas conseguem emprego com muito mais facilidade e ganham salarios melhores que os dos homens pretos por serem “mais aceitaveis”.  (O “mais aceitaveis” provavelmente se refere ao visual primeiramente, ainda nao pensei a respeito disso e nao colecionei ideias mas -ainda na base do provavelmente- provavelmente isso realmente se refere ao fato de serem menos ameacadoras como competidores de patroes brancos.)

    Minha pergunta ao Rincon foi perguntada ou respondida, Nassif?

    1. Off topic como era, minha

      Off topic como era, minha pergunta tinha a ver com agenda setting, Nassif.  Porque eh que rap brasileiro nao pode ser independente?  O maior e mais venenoso perigo que o preto brasileiro tem eh a policia militar brasileira e a policia civil brasileira (mencionado no video por Rincon), problemas que nao sao enfrentados em nenhum pais do mundo por pretos.  So no Brasil.

      Porque eh que rap “internacional” pode influenciar musica brasileira mas o rap brasileiro nao pode ter identidade propria exceto os poucos e rarissimos Gabrieis Pensadores?

  2. Rap , música brasileira ?
    Só não entendi uma coisa nesse post , Nassif .
    Até onde sei ( e me corrijam se eu estiver enganado ) o rap não é uma música do acervo de raiz brasileira !
    Eu penso até que o baião pertence a esse grupo ( e não foi relevado – sequer citado – ali ) , mas o rap ? Não é um ritmo proveniente dos EUA ? O que tem a ver com nossa cultura negra?
    Nem uma história evolutiva tem relacionada à nossa rica musica !
    Desculpe , mas parece grave desinformação e deseducação para um povo tão carente do seu autoreconhecimento e identidade cultural!
    Sinceramente , uma bola fora !

    1. Sem preconceito.

      O que há muitas décadas chamamos de samba veio da África e da Europa, e se tornou algo brasileiro, inclusive “oficialmente”, desde o Estado Novo. Dê uma ouvida nisso aqui, que veio da periferia favelada de SP, e que só tem umas duas décadas. Já é um clássico da música brasileira, e ninguém vai lhe tirar essa característica.

      [video:https://www.youtube.com/watch?v=WZcFdjPZw18%5D

      1. Preconceito ?
        Jair
        Não se trata de preconceito .
        Eu não tenho nada contra a música de fora
        Acho inclusive a boa música americana (blues , jazz , o início do rock ) matavilhosa e importantissima para a humanodade .
        E essa música que vc colocou é pura influência disso.
        O que discuti no meu comentário é que estamos falando de nossas raízes mais autênticas e , nisso , temos uma música riquíssima , não precisando citar a cultura exterior para demonstrar nossa grandeza nesse campo .
        E o samba é brasileiríssimo sim ! Tem uma história na nossa terra , e nossas mãos , apesar de toda influência africana e européia !

        1. O tempo não para,

          O tempo não para, como cantava um poeta que misturava rock com samba-canção. O rap no Brasil certamente já se abrasileirou, e e daqui a alguns anos se misturará com outro estilo ou ritmo e será outra coisa. Nossas “raízes mais autênticas” não estão só passado, mas no presente. Aliás, já que citou nosso baião, um jeito de tocar xote, lembro que este é abrasileiramento de “schotisch”, termo alemão para a polca escocesa – um ritmo de dança. Em meados do século XIX chegou ao Brasil sendo usado e modificado pelos escravos negros, do Rio Grande do Sul ao Nordeste, onde faz parte do nosso forró.

          [video:https://www.youtube.com/watch?v=zT8y4brLke0%5D

          [video:https://www.youtube.com/watch?v=bt8gkvDDHWU%5D

          1. Tomara
            … , tomara Jair !
            Eu , apesar da grande capacidade absortiva e transformadora de nossa cultura , temo a “operacionalidade e o utilitarismo ” dos novos tempos , onde o que importa é o que gera lucro , mesmo que seja efêmero , como muito da arte atual !
            De qquer maneira , ainda penso que o rap (e não discuto a sua estética , a qual não sou apreciador ) é uma cultura alienígena na nossa realidade presente . Não possui uma , diríamos , trajetória dentro de nossa história artística , como é o caso do jazz , importante na estrutura de nossa musica popular .
            Se vai ser deglutida , recriada , mudar de nome etc , só o futuro dirá.
            Um abraço .

          2. Certamente vai haver uma boa

            Certamente vai haver uma boa mistura daí. Que já acontece, aliás. Além disso, o rap apesar de ser popular em grandes setores da juventude, inclusive dos mais pobres e conscientes, nunca foi incorporado pelo “sistema”. Sabe que o mais popular e longevo dos grupos de rap, os Racionais MCs, nunca aceitou ir à Globo? E sempre gravou discos independentes?

            Quanto à tradição brasileira, o rap se aproxima do repente (poesia dos emprovisos orais que é a base da poesia de cordel do Nordeste).

            Abraços.

  3. Percebe-se pela quantidade de

    Percebe-se pela quantidade de comentários do post, que a turma aqui do blog não quer saber de consciência.

    Quanto mais a consciência negra. Para muitos, isto não lhe diz respeito.

    Tá certo que o tema é árido, mas na medida que 51% da população está envolvida, isto lhe diz respeito sim.

    Agora, se queres dá uma de avestruz, o problema é seu.

    ///////////////////////////

    Um delhate que observei aqui no RJ. Em anos anteriores, o dia 20 de novembro era tratado com deboche, piadinhas sem graça, criticas racistas, principalmente por lojistas.

    Este ano, eu pelo menos, não vi nenhum tipo de comentário pejorativo.

    Estão vendo ?! Muitos estão tomando consciência sem sentir.

  4. Dois casos de racismo no Banco do Brasil

    Dois casos de racismo no Banco do Brasil

    1.                            1975-1977 – Na CACEX – Carteira de Comércio Exterior da agência de Ponta Porã (MS) havia um cargo de  Correspondente em Línguas Estrangeiras, ocupado pelo M., mineiro de Santos Dumont, negro, casado com uma negra, 3 filhos pequenos. Possuidor de uma sólida cultura, conversar com ele era um deleite, ia de filosofia ao esoterismo, de uma educação e gentileza desconcertantes. Era da maçonaria, Rotary, Lions e da Ordem Rosa Cruz. Apesar de todos os predicados, não era nem de longe um reacionário, muito pelo contrário. Sua função era traduzir as mensagens (telex) e correspondências que chegavam em  inglês ou outro idioma. Em 1978, concorre ao cargo de Supervisor  indicando várias agências pelo país afora, e, desavisadamente, algumas na região Sul do Brasil. Foi nomeado para uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul que hoje conta com 21 mil habitantes, na região denominada de Alto Uruguai.

    Chegou no começo da semana, descarregou a mudança na casa previamente alugada por telefone, e foi trabalhar. Na primeira sexta-feira, como era hábito em cidades pequenas, os colegas todos e as famílias se reuniam na AABB. Ele chegou com a família, acomodou-se em uma mesa e começou a perceber um estranho movimento. Paulatinamente as pessoas ao lado começaram a se afastar e a mudar de mesa, todos se concentraram no canto oposto onde ele se encontrava com a família. O constrangimento era evidente. Ali o M. percebeu que tinha cometido um erro, um grande erro, talvez o maior da sua vida. Nenhum colega ou familiar de colega se aproximou para cumprimentar e dar as boas vindas, a alemãozada olhava para aquela família como se fossem extraterrestres. Até que entra em cena uma pessoa que não se conformava com o que estava presenciando, o grande e inesquecível o Caixa Executivo Flávio Roberto da Silva (Fleko), uma criatura humana como poucas neste mundo. Catou a então noiva pelo braço e sentou-se junto com o M. e ali ficou toda a noite, e tornou-se o grande amigo e referência para a família do M.  

    O M. ficou lá os dois anos regulamentares, era obrigado, do contrário teria de reembolsar o Banco das despesas com a mudança e a ajuda de custo recebida. Exatos dois anos após, M. , como supervisor, soltou a concorrência para Subgerente, só que desta vez foi precavido: de Minas Gerais para cima. Foi nomeado Subgerente para a agência em instalação em Ubatã (BA), e, num  gesto de reconhecimento e gratidão, indicou o nome do Fleko para o cargo de Supervisor na agência nova. A cena foi hilária. A Diretoria de  Funcionalismo liga de Brasília para o futuro Subgerente e consulta se ele não tem ninguém para indicar Supervisor, pois ninguém concorria para lá. Ele pediu um momento e perguntou para o amigo, dentro do caixa ocupado com o fechamento: “Flávio, você quer ser Supervisor em Ubatã, na Bahia? Sem se virar, o Flávio responde que sim, claro, e julgou tratar-se de brincadeira, não deu importância. Final do expediente, Flávio está indo embora, M. o chama e cumprimenta: “Parabéns, acabei de receber a confirmação de que vc foi nomeado”. E o Flávio, inocentemente “…mas eu pensei que fosse brincadeira!”. Tarde demais, recém-casado, o negócio agora era explicar em casa que iriam mudar-se para a remota Ubatã, onde cheguei dois antes da inauguração, 25.01.1980, na condição de adido, e dou de cara com o M. na Subgerência. Ele sabia que eu vinha, eu não sabia que ele estava lá.

    Entre um chimarrão e uma cerveja Polar, o Fleko foi me atualizando sobre os acontecimentos, afinal havia trabalhado com o M. entre 75/77, em Ponta Porã, e por puro acaso estávamos de novo trabalhando juntos. Dizia o Fleko, “…Juncal, o negão passou maus momentos lá no Sul, discriminado nas ruas, os filhos na escola, ele não via a hora de sair de lá, foi duro pra ele e a família”.

    A condição de negro do Maurício e família numa cidade eminentemente negra do interior da Bahia não foi nenhuma novidade. Curiosamente, a novidade na cidade passou a ser o gaúcho, o Fleko era ruivo, bem ruivo mesmo, barba grande, óculos grandes  fundo de garrafa, chamava a atenção onde passava. Mais uma cena hilária. Todos os dias ele saía para almoçar e passava no Correio, ou para postar cartas para os familiares, ou retirar encomendas. Sempre era seguido por um bando de molequinhos, todos negrinhos, virou a atração da cidade. Um dia, um daqueles que o seguia por toda parte, entrou no Correio e postou-se ao seu lado. E ele olhava de soslaio para o moleque. Aí o moleque não aguentou e cutucou: “moço, moço”. O que foi, moleque? E o moleque: “O senhor é brasileiro?”

     

    2.     Novamente Ponta Porã, entre 1978 e 1980. O Paraguai, país vizinho separado por uma faixa de terra de uns 80/100 metros, era um país paupérrimo, debaixo de uma ditadura feroz do Stroesner. Era comum os pais pegarem os filhos recém-nascidos e registrar do outro lado, no Brasil, em Ponta Porã. Era comum também se fazer a tradução do sobrenome, assim um Sosa virava Souza, um Fariña virava Farinha, e assim por diante. Era uma maneira de tentar um futuro melhor para os filhos, na condição de “brasileiros”. “Nascidos” no Brasil, mas criados do lado paraguaio da fronteira. Tínhamos um colega assim, de sobrenome traduzido, era um típico fronteiriço, pai e mãe paraguaios, o que se chamava de bugre, uma mistura de índio e negro. Não tinha nada de diferente, bastava uma volta pelas ruas e os traços indígenas iguais aos do colega saltavam para todos os lados. Campo Grande, a futura capital do novo Estado que iria surgir, era assim. O bugre era um sinônimo do futuro Estado do Mato Grosso do Sul. Além disso, era um baita amigo, aquele que, nascido e criado na fronteira, orientava os incautos e jovens paulistas a não entrar em roubadas na noite, e principalmente, nas madrugadas dos cabarés. Conhecia todos caminhos, vai por aqui, não vai por ali que é fria. Exímio futebolista, um craque, reforçava o fortíssimo time da AABB local. E boa praça, boa gente ao extremo, inteligente e tremendamente mulherengo.

    Até que um dia, R. decidiu aventurar-se pelo mundo. Cansou daquela vida na fronteira, nunca tinha morado em outro lugar e decidiu aventurar-se por outras paragens. A idéia (vou continuar acentuando até o dia do Juízo Final) era boa, o destino é que não foi dos mais felizes. Pediu transferência, a seco, para a aprazível cidade de Blumenau (SC). Por que não, pensou ele? Falam tão bem do Sul do Brasil, que é isso e aquilo outro, vou lá conferir. Raciocinou assim, tenho curso de Caixa Executivo, desgraçadamente entro no rodízio e trabalho no Caixa uns 15 dias por mês e assim, com o salário normal mais a comissão de caixa, dá para equilibrar as finanças, enquanto conheço o Brasil, começando por Blumenau. O que poderia dar errado no plano dele? Simples, não era louro e não tinha olhos azuis. Terrível engano.

    Meses depois, o colega Tião, que me passou o serviço quando cheguei em Ponta Porã, em 1975, está trabalhando, adido, no interior do Acre. E recebe uma ligação de Blumenau. Uma ligação sofrida, um apelo. Do outro lado da linha, o amigo bugre (os dois formavam uma dupla marcante na cidade) faz o relato da situação. Chegou em Blumenau e, de cara, foi rejeitado pelos colegas da agência. E também excluído do rodízio de caixa, o que o deixava exclusivamente com o salário, sem o acréscimo da comissão pela função de caixa substituto, foi discriminado com todas as letras. E mais, ninguém queria alugar casa para ele, conseguiu um barraco, barraco mesmo, no subúrbio do subúrbio do subúrbio de Blumenau. E caro, muito caro. Estava quebrado, passando necessidades, e pior, muito pior, não conseguia transferência para nenhum outro lugar para fugir daquele inferno que se tornara Blumenau, tinha feito uma besteira na vida. Claro que o Tião ajudou.

    Entre 94/95, na AABB de Ribeirão Preto, ente uma cerveja e outra, o colega Tião pergunta: “Lembra do nosso amigo bugre?” Claro, o que é que tem? E contou da infeliz ideia que um dia um mestiço de índio com negro teve de ir morar em Blumenau.

     

    O caminho é longo, falta muito ainda, mas não podemos jamais esquecer os notáveis avanços, apesar de sempre aparecerem umas tentativas de retrocesso. Os fatos acima aconteceram há mais de 30 anos, acho (tomara) que seriam impensáveis hoje. Moro ao lado do Mackenzie, cujo CA é presidido pela negra Tamires Gomes Sampaio, estudante de Direito e, como se fosse pouco, vice-presidente da UNE. Vejo ela passar direto vindo do Metrô República, ou caminhando pela rua Maria Antonia. Estou devendo a ela um abraço e de agradecer pelo trabalho político que ela desenvolve pela igualdade de direitos e contra o extermínio sistemático do povo preto e pobre das periferias. 

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