Feminismo e a paranoia sexual, por Francisco Bosco


Foto: Getty Images

Sugerido por Ricardo Cavalcanti-Schiel

Por Francisco Bosco

Da Revista Cult

Há alguns meses foi publicado nos Estados Unidos um livro tão interessante quanto preocupante: Unwanted advances: sexual paranoia comes to Campus, da professora feminista Laura Kipnis. O livro é uma mistura de ensaio e relato de tribunal; no caso, o tribunal em curso nas universidades americanas, fruto de uma mudança recente numa legislação específica para os campi. Um tribunal que só produz julgamentos de exceção, mantidos na obscuridade porque se revelam insustentáveis sob o escrutínio público. Laura Kipnis compara o que está acontecendo nessas universidades a momentos inglórios da história americana, períodos de delírio coletivo em que perseguições e punições são instauradas por meras delações, os indivíduos perdem direitos fundamentais, as instituições fraquejam e reina uma violência arbitrária e oficialmente sancionada.

O livro nasceu de um caso concreto, que envolveu a própria autora. No começo de 2015, ela publicou, num veículo de sua universidade, Northwestern (onde dá aulas de cinema), um artigo sobre o que ela identificava como uma onda de paranoia sexual nas universidades americanas. A autora criticava uma recente mudança na legislação, que, combinada a certa perspectiva feminista, vinha “infantilizando os estudantes”, subindo o “clima de acusação” e “aumentando largamente o poder dos administradores da universidade sobre nossas vidas”. Explico. Já há várias décadas existe nos Estados Unidos uma legislação chamada Title IX, sob responsabilidade do Departamento de Educação, e originalmente criada para regular questões de igualdade de gênero nas universidades americanas. Em 2011, entretanto, promoveu-se uma mudança na lei, que passou a abranger também problemas de relações sexuais nos campi: desde estupros, passando por qualquer forma de avanços sexuais indesejados, até, como veremos, o mero uso de linguagem sexual.


Concomitante a essa mudança, estabeleceu-se nas universidades uma perspectiva feminista que enfatiza a passividade da mulher, sua fragilidade, sua posição desfavorecida nas relações de poder, e, assim, as consequentes incapacidades de tomar decisões, exposição a manipulações psicológicas e até inabilidade de consentir relações sexuais. Era essa a articulação criticada por Laura Kipnis. A legislação imprecisa e overreaching somada à perspectiva passiva da mulher teria criado um clima de paranoia sexual nas universidades.

Semanas após a publicação do texto, ela recebeu um comunicado da universidade dizendo que duas alunas haviam instaurado um processo contra ela, dentro da legislação Title IX. Vejam bem: um processo contra um artigo. As práticas de no platform (tentar impedir determinadas falas em âmbito universitário) não são novidade. Mas elas se voltam contra falas escancaradamente preconceituosas (os Bolsonaros da vida), contra posições cerceadoras de direitos, contra visões antimodernas, tradicionalistas, desigualitárias. Nesse caso, alunas feministas tentavam censurar ideias de uma professora feminista. Além do processo, houve um protesto no campus contra o artigo. As estudantes marcharam até a reitoria e exigiram uma “condenação pronta e oficial” do texto.

Foi a partir desse episódio que Kipnis tomou contato com o mundo secreto do Title IX. A notificação do processo vinha acompanhada de um ameaçador aviso de confidencialidade, sob pena de expulsão da universidade. À medida que o processo foi se desdobrando, a autora percebeu que estava distante dos termos de um due process [devido processo]; antes estava diante de um julgamento de exceção, em que o acusado não sabe que acusações pesam contra ele até o momento de ser interrogado; não tem direito a ser acompanhado por um advogado; não pode gravar as sessões; em algumas universidades não pode apresentar material (como mensagens de texto etc.) em seu favor; não pode confrontar testemunhas; e não pode falar publicamente sobre o caso. A confidencialidade é, portanto, parte de uma estratégia de intimidação por parte dos acusadores, e de blindagem por parte dos burocratas que o conduzem. Assim, com medo, nenhum professor antes havia tornado público um processo como esse. Pois o livro de Kipnis abre essa caixa de Pandora.

O sentido geral do livro é o de uma denúncia grave. A distorção radical de problemas e princípios instaurou uma dimensão de exceção na vida universitária americana, em que professores e alunos são severamente punidos em julgamentos farsescos, de cartas marcadas. O campus se tornou “uma secreta cornucópia de acusações”. E essas acusações são tratadas como verdades acima de qualquer suspeita, não importando o quanto as evidências concretas atestem sua inconsistência.

Nesse clima, pululam casos como os seguintes. Um estudante de graduação que entrou com uma ação contra uma professora por ela ter dançado “muito provocativamente” numa festa off-campus. Uma professora que levou um processo acusada de ter feito “contato visual suspeito” com duas estudantes de graduação, enquanto sussurrava em seus ouvidos (acontece que isso se deu numa biblioteca). O caso em que um aluno e uma aluna tiveram sexo consensual, mas uma terceira pessoa avistou uma mancha roxa (o popular “chupão”) no pescoço dela e entrou com um processo de abuso sexual, mesmo contra o interesse da aluna (o rapaz, negro, foi suspenso por vários anos e teve sua carreira como atleta encerrada). Etc., etc.

Mas, como sempre, são os casos-padrão que assustam mais (os caricatos são, afinal, supostamente a exceção). E é um deles o centro do livro de Kipnis.

Um professor de filosofia de Northwestern foi acusado por uma aluna de a ter forçado a se embriagar, de a ter agarrado e, em consequência disso, de ser responsável por ela ter se atirado num lago, tentando o suicídio. Seria impossível aqui retomar o exame detalhado que Kipnis faz do caso, revelando sua inconsistência. Alguns dados: a estudante em nenhum momento foi propriamente forçada a beber; apenas alega ter “se sentido” obrigada. Ela acusa o professor de tê-la agarrado no elevador do prédio dele. Ele nega. Mas, como o processo é extremamente desigual, ele não pôde requisitar a prova material das imagens da câmara de segurança, para provar o contrário (nada de due process: é tudo feito para não dar qualquer chance ao acusado). Já no julgamento civil, fora do campus, no qual o acusador também é interrogado, a suposta cena da tentativa de suicídio revelou-se bastante inconsistente: a aluna não lembrava que roupa usava, se o lago estava congelado, e a suposta testemunha que a ajudou a sair do lago nunca apareceu. Entre diversas outras inconsistências.

Enquanto se desenrolava esse caso, outra aluna processou o mesmo professor. Dessa vez, a acusação foi de estupro. Eis o contexto. Professor e aluna (ela era aluna da mesma universidade, mas não dos cursos dele) mantiveram uma relação amorosa durante três meses. A aluna negaria isso, diria que a relação era estritamente de amizade e orientação intelectual. Entretanto há dezenas de mensagens de texto provando o contrário: “Eu te amo”, “Te amo tanto”, “Nós fomos feitos um para o outro”. Certa noite, eles haviam bebido e tiveram uma discussão (porque a aluna tinha um namorado fora da cidade e estava em dúvidas sobre com quem ficar). Ela acusa o professor de a ter estuprado nessa noite, porque acordou na cama dele, sem roupa. Ela não lembra se houve sexo, mas acha que houve, e acha que não consentiu.

Pois bem, o professor foi dormir em um hotel nessa noite por causa da briga. Ele apresentou o recibo do pernoite no hotel. Apresentou também as mensagens dela no dia seguinte, mensagens amorosas, que nada revelam de anormal. E o que faz a juíza do caso? Conclui que houve estupro. Antes de o processo chegar ao fim, o professor pediu demissão, foi morar no México e teve sua carreira universitária encerrada.

Para Kipnis, o que está acontecendo é da ordem de uma profecia autocumprida. Existe um ideário de fundo: “sexo é perigoso, pode traumatizar para sempre”, que acaba produzindo episódios de “abuso sexual”, que de outro modo jamais seriam assim considerados. Coisas absurdas mesmo, desde piadas sexuais, passando pelo mero uso de termos sexuais, até retiradas retrospectivas de consenso. Sim, pois sob essa perspectiva de um feminismo passivo, no contexto de uma sociedade patriarcal, as condições de produção de consenso são ilegítimas, logo o consentimento ao sexo pode ser sempre retirado après coup – e assim todo homem que fez sexo consentido com uma mulher pode de repente descobrir que a estuprou. E ser criminalizado por isso.

Opondo-se a esse estado de coisas, Kipnis propõe uma perspectiva feminista que não perca a agenda da mulher dona de seu desejo, empoderada – em vez de, como um personagem nietzschiano, exercer um poder triste por meio do papel do desempoderamento.

Redação

10 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. A sociedade norte-americana

    A sociedade norte-americana revela traços preocupantes de insanidade. O poder imperial, as guerras, os filmes de hollywood, a capacidade bélica de destruir o mundo,  a competição individual desenfreada são fatores que devem contribuir para esse estado paranóico. 

    1. Só a sociedade norte-americana????

      Eles venderam a agenda deles pra nós.

      E nós, os deslumbrados provincianos a compramos.

      Esse delírio inquisitorial está chegando por aqui. Eu mesmo já presenciei insinuações sutis disso em certa grande universidade paulista.

      Depois da histeria racial vem a histeria sexista. E em crescendo. É só uma questão de tempo.

  2. “Foi a partir desse episódio

    “Foi a partir desse episódio que Kipnis tomou contato com o mundo secreto do Title IX. A notificação do processo vinha acompanhada de um ameaçador aviso de confidencialidade, sob pena de expulsão da universidade”:

    Com QUEM???????  Com o governo dos Estados Unidos????  CONFIDENCIALIDADE????????

    Se nao fosse por nao ter jamais assinado um “contrato” desse eu tava fudido hoje, gente!

    Hoje eu posso falar tudo que nunca pude falar em publico exatamente por NUNCA ter assinado uma porra dessas!

    MINHA UNICA  TESTEMUNHA  FOI EU.  NAO HOUVE NINGUEM MAIS DO MEU LADO.

     

    NIN

    GUEM.

     

    Filhos da puta!

  3. Nosso colonialismo mental (plageio de Mangabeira Unger)

    a começar pelo anglicismo imediatamente adotado, “Empoderamento”, quando temos outras palavras pra expressar de modo que toda uma platéia, e leitores, e pessoas que lêem um artigo num blog ou nun jornal logo saibam o que é. Isto, a meu ver, é um artifício pra ficaar “in”, “por dentro” dos códigos de certos círculos intelectualóides (não digo intelectuais). “Narratia” , noutro dia num bom telejornal um jovem cientista político em tão curto tempo falou 3 vezes “Narrativa”. Pra impressionar ou pra se impressioar a si mesmo se sentindo “na turma”. Há mais amostras. Agora, sempre existe um movimento de um pólo a outro, ambos extremistas, ambos com um tipo diferente de preconceito. Já há algum tempo, há um culto a tudo o que é negro. Vejo nisto também um colonialismo mental norte-americano. O machismo: também é introjetado pela mulher, e há o que me parece um dado da natureza, que é o cortejo, até violência no sexo (há uma excelente passagem em A Insustentável Leveza do Ser”, em que Kundera através de personagens fala disso, a violência está no sexo. O galo montado na galinha que grita co-co-rio-có doendo um pouco ou muito, mas mesclado com prazer. Há uma caricatura tanto de racistas, de pseudo-não racistas, de feministas, ,e, como não poderia deixar de ser, de esqeurdistas-democratas – nesses dias vi e como Visitante postei depois d ealgum tempo foi publicado, nas linhas finais o sujeito asíduo e querido pelo GGN por sempre contribuir chamava o Exército.Teria mais o que falar, mas nesses tempos de web, as pessoas não lêem, não se concentram, não pensam duas vezes no que estão a ler (tem pesquisa sobre isso, questionável como tantas que abundam, mas é de se pensar).

  4. Definitivamente incorreto – ou, haja bolsonaros

    …Você nunca sonhou que estava sendo violada? Não diga que não, de imediato, porque eu não acreditaria. Será que vocẽ não tem medo, como tantas outras mulheres – e exatamente as que se dizem frígidas – de passear num bosque ou de andar pelas ruas numa noite escura? Eu já lhe disse antes: o medo, a angústia são a manifestação de um desejo: receio de ser violada é desejo de ser violada. Claro, conhecendo-a como a conheço, você não precisa ir olhar embaixo da cama ou dentro do armário! Mas quantas mulheres fazem isso, sempre com o temor e o desejo de descobrir um homem suficientemente forte a ponto de não temer a justiça. Vocẽ sem dúvida conhece a história daquela mulher que, descobrindo um homem sob a cama, exclamou: “Finalmente! Há vinte anos que eu esperava!”…

    …Aqueles de nós que são honestos sabem muito bem que nossa medida para tudo é nós mesmos. É um erro mais ou menos sincero acreditar que vivemos para os outros ou para alguma outra coisa. Isso é algo que não fazemos nunca, nem por um momento, nunca. E aquele para o qual apelam esses promotores do sentimento de sacrifício da renúncia, do amor pelo próximo – coisas tão nobres quanto imaginárias – Cristo sabia muito bem disso. Não foi ele quem pronunciou esse mandamento considerado por ele, sem dúvida, como o ideal supremo, quase impossível de alcançar: “Ama teu próximo como a ti mesmo!”? Veja bem, ele não disse “mais que a ti mesmo” mas “como a ti mesmo¨, “como te amas a ti mesmo”. Esse mandamento vem logo seguido por outro: “Ama a Deus com toda a sua alma, com todo teu coração, com todo teu ser”. Podemos nos perguntar se esse mandamento não é, sob uma outra forma, semelhante ao que o segue e até mesmo, numa certa medida, idêntico. Mas poderemos discutir o assunto mais tarde. Seja como for, Cristo estava convencido que o ser humano, antes de mais nada, ama a si mesmo; é por isso que ele taxava as lindas declarações virtuosas das “pessoas de bem” de farisaicas ou hipócritas, o que elas de fato são…

    …Passando em revista nossa vida e nossas experiências, refazemos constantemente a mesma descoberta: por termos a impressão de sermos ladrões, assassinos, adúlteros, pederastas, mentirosos, combatemos com zelo o roubo, o assassinato e a mentira a fim de que ningué, e nós menos que os outros, se dê conta de  nossa depravação. Acredite: aquilo que o homem, o ser humano detesta, despreza, censura, é a base original de sua própria natureza. E se você quiser levar a vida e o amor a sério, com a nobreza de uma convicção, observe essa máxima:

    Não culpe a mim

    Culpe antes a si mesmo

    E se eu enfraquecer

    Faça de si uma pesoa melhor

    por Georg Walther Groddeck – o gênio relegado(!) pelo sectarismo dogmático freudiano – em O Livro dIsso – Viena, 1923

    1. E lobo frontal, vai bem?

      Serjão, procure saber antes o que um pscopata estuprador, assassino, trambiqueiro pensa de si mesmo com toda a sinceridade. Que eu me lembre, já li e assisti a muitos depoimentos e estes são quase unânimes: mereço morrer e fico feliz de estar aqui preso, senão, faria tudo novamente. Já passei pela infelicidade de conhecer um que demostrava-se autoconsciente de sua condição. Ele nunca me disse “culpe antes a si mesmo”, mas sim “você sabe o que eu sou, se cair na minha, a culpa é tua”. Ou seja, a única culpa possível na visão deles é a impossibilidade de alguém se safar de sua lábia. No entanto, o psicopata precisa ser pego para admitir sua natureza, caso ontrário, ele escreve livros lindos que educam as pessoas para serem otários. Entendeu? Esta história de que toda bondade é farizaísmo e toda indignação é hipócrita é papo de gente doente, destas que chutam mendigo na rua e ainda culpam a vitima por isto. “O ser humano é iixo. Quem garante que o mendigo não faria o mesmo? Hipocrisia da sociedade!”

      1. Releia

        Releia o texo, o meu comentário e o vosso.

        Com mais atenção é possível perceber nas entrelinhas fragmentos de espelho.

        Eco: E o lobo frontal, vai bem?

  5. Para pensar…

    Sim, podemos estar indo de um extremo (insegurança para as mulheres existirem em sociedade) a outro (repressão – em nome do quê? – a toda e qualquer interação entre os gêneros). Enquanto eu não sei de que “lado” ficar, assino embaixo do comentário do Edgar Rocha: não podemos esconder a psicopatia sob um discurso “intelectualizado”.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador