Minhas memórias do Massacre do Carandiru, por Walter Falceta

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Minhas memórias do Massacre do Carandiru

por Walter Falceta

Era 2 de Outubro de 1992 e eu trabalhava como coordenador de Nacional e Política do jornal O Globo, em São Paulo. Meu foco mental era organizar a cobertura da eleição do dia seguinte.

A notícia não caiu como uma bomba na redação, pois, na época, as rebeliões eram comuns no complexo penitenciário da Zona Norte.

Aos poucos, no entanto, percebi a gravidade da situação. Os testemunhos preliminares davam conta de execuções sumárias no Pavilhão 9.

Era responsabilidade minha agilizar a cobertura. De repente, no entanto, a redação inteira abraçou a missão jornalística.

Antes disso, eu havia realizado algumas reportagens no sistema prisional. Naqueles tempos, o horror era a superlotação.

Em um centro de detenção no Brás, eu encontrara um pavilhão ainda fumegante e vi corpos calcinados em uma espécie de Pompeia paulistana.

No Carandiru, reproduzia-se de forma selvagem o processo de exclusão social. Os detentos mais pobres viviam muito mal. Os mais ricos gozavam de privilégios.

O maço de cigarros garantia o bife. Até os afetos lúbricos, de mulheres e irmãs, asseguravam algum tipo de alívio para os menos favorecidos.

Obviamente, todo esse comércio de horrores era mediado por agentes do Estado, que lucravam com cada transação do metacrime.

Não é verdade que o Brasil prenda pouco. O Brasil prende muito, especialmente os bagrinhos.

A “segurança” pública envia ao cárcere, sobretudo, jovens pretos e pobres, a fim de cumprir metas de produtividade e satisfazer os programas televisivos que fazem, dia e noite, a propaganda da criminalidade.

Nas proximidades do palco da tragédia, havia tensão e desinformação. Passaram-se horas e ouvimos uma senhora negra, cabelos brancos, afirmar que o filho nem mesmo tinha sido julgado.

Afirmava que seu coração já sabia da morte, e que tinha sido de um inocente. Segundo ela, eram as más companhias.

É mentirosa também a afirmação de que o sistema guardava somente criminosos perigosos. O Estado misturava ali todos os “excessos” de um sociedade desigual e injusta.

Havia muitos “otários”, enquadrados por conveniência para livrar os generais do crime organizado, especialmente do tráfico.

Varamos aquela noite e a madrugada na cobertura. Poucos colegas dormiram.

No avanço do tempo, a tragédia matou totalmente minhas lembranças do pleito do dia seguinte.

Vocês perceberam que as eleições são sempre marcadas por evento do gênero?

Em 1989, por exemplo, tinha sido o caso dos sequestradores que foram obrigados a vestir camisas do PT para garantir a vitória de Collor sobre o metalúrgico.

Enfim, o Carandiru guardava histórias e procurei recuperar fiapos. Então, de repente, na relação com os diferentes surgiu um inesperado caminho para a empatia.

Uma senhora nordestina contou que o neto tinha sido assassinado com a camisa do Corinthians. Imaginei que talvez a vestisse antes dos momentos fatais.

Sério mesmo… Me arrepiei, estremeci. Segundo ela, o rapaz era um frequentador assíduo do estádio.

Pensei que provavelmente já tivesse trombado com o garoto no Pacaembu e no Morumbi, onde ele era um igual do meu bando.

Bem depois, conferi a lista dos 111 mortos (número contestado até hoje por familiares) e encontrei dois xarás, um Valter e um Walter.

E essa coincidência também me chocou. As vítimas não eram de outro mundo. As celas metralhadas, piscinas de sangue, sepultaram para sempre pesadas e relevantes histórias de vida.

Até hoje, procuro não lembrar destes fatos, porque me afligem demais. Recordei poucos anos atrás, quando ocorreu um massacre na sede da torcida Pavilhão Nove, na Zona Oeste. Depois, desliguei o registro novamente.

Sei que a péssima justiça brasileira condenou e descondenou os responsáveis pela tragédia. Aqui, para os amigos do poder, nunca pega nada.

É o padrão até hoje, de seletividade e cara de pau, dos mais bem pagos funcionários da máquina do Estado. Em geral, é gente ruim, com honrosas exceções.

Lembro que o líder do terror, o infame Ubiratan, tomou o troco em uma dissensão de natureza particular.

São 26 anos. Parece ontem. Parece um milênio atrás. A triste ocorrência despertou os brasileiros para a discussão complexa sobre os Direitos Humanos.

De lá para cá, como forma de defesa, o crime organizado também se organizou e estabeleceu um acordo com os tucanos que controlam o Estado há décadas. Hoje, são raras as rebeliões em São Paulo.

Nas periferias, no entanto, o massacre continua. E o povo, iludido pela narrativa fascista, ainda não percebeu que a violência nasce como filha rebelde da exclusão.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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