O sono da memória, por Luis Fernando Veríssimo

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Novas edições de ‘Mein Kampf’ deveriam vir com DVD encartado, com cenas dos cadáveres empilhados e dos moribundos esquálidos em Auschwitz

de O Globo

O sono da memória

por Luis Fernando Veríssimo

Não há problema em publicar o “Mein Kampf” do Hitler, cujos direitos de edição recém caíram em domínio público. O livro interessa a historiadores e estudiosos da psicologia de massa e a qualquer pessoa curiosa sobre o poder das suas ideias, um poder capaz de galvanizar uma nação e mudar radicalmente a sua história. Eu só acho que as novas edições de “Mein Kampf” deveriam vir com um DVD encartado, com cenas dos cadáveres empilhados e dos moribundos esquálidos descobertos em Auschwitz e outros campos de extermínio, no fim da Segunda Guerra Mundial. Cenas terríveis dos esqueletos das cidades bombardeadas e dos milhares de refugiados tentando sobreviver em meio aos escombros, enquanto o mundo ficava sabendo, nos julgamentos dos criminosos, das barbaridades cometidas em concordância com a Kampf do Hitler. Assim, o comprador do livro teria o nazismo como teoria e o nazismo na prática. As ideias e suas consequências.

Seria bom se as ideias viessem sempre acompanhadas de suas consequências. As pessoas pensariam melhor no que dizem e pregam, para não terem remorso depois. Já se disse que muitas barbaridades teriam sido evitadas no mundo se existisse algo parecido com o remorso antes do fato, uma espécie de remorso preventivo. Não se imagina o próprio Hitler se arrependendo das suas teses e, diante dos horrores que elas desencadearam, dizendo “Ei, pessoal, não era nada disso!”. Está claro que no cerne patológico da pregação de Hitler há uma volúpia de destruição, um desejo secreto de caos que tem tanto a ver com o romantismo alemão quanto com a geopolítica da época. Mas outros não têm o mesmo motivo para desprezarem as consequências. Ou para esquecerem-se delas.

Naquela famosa legenda de uma gravura do Goya está escrito que o sono da razão cria monstros. Pior que o sono da razão, Goya, é o sono da memória. As pessoas que hoje defendem a volta da ditadura militar no Brasil esqueceram-se de como foi. Esqueceram-se das prisões arbitrárias, das torturas, do terror e dos assassinatos de Estado, da censura, do número de estrelas nos ombros como única credencial para governar. Se não lhes falta memória, lhes falta razão. Ou miolos.

O Jair Bolsonaro, principal proponente da volta à ditadura, é o deputado mais votado do Rio. Tem uma multidão de apoiadores. E tem mais do que isso: na recente mudança no Comando Militar do Sul, Bolsonaro foi um convidado especial do novo comandante para a cerimônia de posse. Não se sabe se o comandante também é um nostálgico como ele. De qualquer maneira, tenho tido longas conversas com a minha paranoia, tentando acalmá-la.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

11 Comentários

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  1. Sim, seria pedagógico…

    … a teoria de Hitler acompanhada do resultado prático, cenas do holocaosto.  Da Segunda Guerra para cá os cidadãos do mundo volta e  tem a possibilidade  de tomar contato com a barbárie através do noticiário e do cinema. O problema é apreender.  A possibilidade  e o canal de conhecimento não raras vezes sucumbem às crenças.

  2. Há mais de quarenta anos me deparei com uma edição de Mein Kampf

    Há mais de quarenta anos me deparei com uma edição de Mein Kampf, e posso dizer não consegui passar das primeiras páginas por achar um livro muito chato e com partes que não dizem nada ao povo brasileiro.

    Na minha juventude era um grande leitor, consegui até ler uma biografia completa do Almirante Yamamoto que possuía centenas de páginas, já Mein Kampf quando logo no início o autor descreve a beleza com que via jovens rapazes musculosos e viris alemães, achei meio estranho o livro e o deixei de lado.

    A proibição da distribuição e venda de Mein Kampf acho algo realmente mais perigoso do que a sua liberação, quem se emocionar com as palavras do Adolfo provavelmente se emocionaria lendo uma bula de remédio.

    Este livro é uma ode a uma imagem de povo alemão que nem na Alemanha é mais cultuado nos dias atuais, ele tem uma linguagem totalmente inadequada para qualquer aliciamento de novos nazistas, principalmente abaixo dos trópicos.

    Acho mais deletério a mentes perturbadas criar uma mítica quanto ao único livro do Adolfo, pois a leitura do Mein Kampf não serve para emocionar estas mentes, fico mais preocupado das releituras fascistas que podem ser feitas induzindo a fatos que não existem no livro.

    Muitos defendem a publicação de livros deste tipo como uma forma de fortalecer a liberdade de expressão, e na realidade nem estou aí com a defesa de liberdade de livros nazistas, mas acho que melhor coisa para criar imunidade a venenos é deixar as pessoas serem mordidas e viram quão dolorosa é esta mordida.

    1. observação

      Rdmaestri, a leitura de Mein Kampf é particularmente interessante por ao menos um motivo: os contemporâneos de Hitler jamais deveriam ter-se surpreendido com suas ações – perseguição e extermínio de judeus, rearmamento da Alemanha visando guerra ofensiva e expansão territorial às custas dos povos eslavos – porque tudo isso está suficientemente explicitado na obra. 

    2. “mas acho que melhor coisa

      “mas acho que melhor coisa para criar imunidade a venenos é deixar as pessoas serem mordidas e viram quão dolorosa é esta mordida.”

      Pô! Parece que a rapaziada do “Volta Militares” não tem neurônios para sacar isso. Infelizmente.

  3. o sono da memória, o sono da

    o sono da memória, o sono da razão, pemrite que as ruínas do

    passado retornem sem que sejam conhecidas suas consequencias históricas..

    é só com o conhecimento dessa história que evitaremos sua repetição.

    é só com  a interpretação correta sobre os

    fatos que levaram a essas ruínas, a essa banalização do mal,

    como lembrou a filósofia hanna arendt, é que transformaremos o presente

    e caminharemos pars um futuro´pelo memnos sem as paranóias

    temidas inclusive pelo veríssimos, uma das figyras mais exponenciass

    do pensamento brasileiro desses tempo meio bicudos….

  4. Para quem desconhece, a

    Para quem desconhece, a  Editora Globo é detentora dos direitos  de impressão de “Mein Kampf”, em português.Edição traduzida  direto do alemão, porJ.Matos Ibiapina,em 1939, já se encontrava na  4.edição. Pertencia ao acervo da  antiga 

    Livraria do Globo,do Rio Grande do Sul, da  família Bertaso. Posteriormente, nos anos 1970 foi vendido o controle e o nome,que era o mais desejado.O  acervo que era  administrado nos tempos áureos por Érico Veríssimo, dele  não se tem notícia. Aliás , cultura não é o forte da família Marinho.

  5. “O preço da liberdade é a

    “O preço da liberdade é a vigilância eterna “; Thomas Gefferson. Já que nos mais velhos a memória dorme. e nos outros nem memória nem massa cinzenta, a vigilância é dever alienável dos conscientes e patriotas.

    Gefferson também nos diz  que ‘O anúncio é a única parte verdadeira de um jornal”;se tivesse tido tempo acrescentaria: e de certos noticiários da TV (sempre os mesmos).

  6. De certa forma, o nazismo foi

    De certa forma, o nazismo foi substituído pelo neoliberalismo. É certo que o nazismo foi concentrado na figura de hitler. Mas, imaginnemos que hoje hitler fizesse parte daqueles 1% que detêm quase toda a riqueza do mundo, será que teria escrito o  “Mein Kampf”?

  7. No Brasil não vende ja na europa…
    Como sempre Verissimo esta de parabens.

    Felizmente para nos não deve vender grande coisa e muito mesnos vai ser lida.
    Curiosamente há um ano atras vi uma jovem com uma edição brasileira muito antiga.

    Já na Europa inclusive na Russia pode fazer a cabeça de muitos jovens semi analfabetos que manipulados por lideres demagogos pode tornar as coisas muito perigosas.

  8. Mais imagens

    No DVD mostrando os horrores causados pelo nazismo não daria para incluir também cenas mais modernas, como as que tiveram lugar no Vietnam, no Afeganistão, no Iraque, na Síria? Será que o Hitler era pior do que alguns governantes de nossos dias?

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