Para PM, Réus do Carandiru não cometeram faltas

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Depois de quase um ano de pedidos via lei de acesso à informação, pesquisadores da FGV obtêm documentos que revelam o olhar da corporação sobre os policiais envolvidos

Agência Pública

Passados 21 anos do Massacre do Carandiru, a Polícia Militar do Estado de São Paulo não moveu nenhum processo administrativo disciplinar contra os homens que atuaram no dia 2 de outubro de 1992. Não somente isso, mas a maioria dos policiais de alta patente da época – capitães, majores e tentente-coronéis – foram promovidos. É o caso dos ex-comandantes do 1º, 2º e 3º Batalhão de Choque das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, a Rota, que agiram no comando do massacre. Antônio Chiari, Edson Faroro e Luiz Nakaharada passaram à patente de coronel, a mais alta na hierarquia da Polícia Militar.

Outros comandantes da operação também foram promovidos. Wanderley Mascarenhas de Souza (que estava à frente do Grupo de Ações Táticas Especiais – GATE) foi promovido a tenente-coronel; Arivaldo Sérgio Salgado, do Comandos e Operações Especiais (COE), foi aposentado como coronel.

“Isso é historicamente comum. Os militares que ajudam, contribuem ou tiveram papel de destaque em massacres contra o povo, recebem condecorações. Recentemente a própria promoção do Salvador Modesto Madia, que foi um dos tenentes que comandou a invasão que gerou o massacre do Carandiru, ao posto máximo da Rota é muito sintomática disso”, aponta Rodolfo Valente, advogado e militante da Rede 2 de Outubro, formada por diversas entidades de defesa de direitos humanos.

Ele se refere ao fato de, em 2011, o tenente-coronel Madia (à época do massacre, era 1º tenente do Batalhão de Choque da Rota), ter sido nomeado comandante da Rota, tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo. Quem o substituiu, 10 meses depois, foi Nivaldo Cesar Restivo, também envolvido no Massacre do Carandiru. As nomeações vieram diretamente do governador, Geraldo Alckmin e foram noticiadas à época.

Dos 73 policiais militares já condenados em primeira instância pela morte de 111 presos, a maioria está aposentada. Todos respondem ao processo em liberdade. De acordo com informações da Agência Estado, 22 deles ainda estão na ativa e continuarão até a confirmação final da sentença (após recursos) ou a aposentadoria nesse meio tempo. Nenhum deles foi punido pela corporação, nem recebeu qualquer tipo de anotação em suas fichas profissionais.

OITO MESES PARA OBTER DOCUMENTOS NA CORREGEDORIA

As informações sobre a ausência de processos administrativos contra os policiais acusados – e sobre o que aconteceu com a carreira de cada um deles depois – foram levantadas na pesquisa do Núcleo de Estudos do Crime e da Pena, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Tinha o processo criminal, tinha as indenizações [às famílias das vítimas], tinha a CPI na Alesp [Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo], mas a gente queria saber do ponto de vista administrativo disciplinar. Do ponto de vista da corporação, o que aconteceu com essas pessoas? A gente fez uma pesquisa no site da Transparência [do governo de São Paulo] com os nomes dos policiais militares e viu que a maioria ou ainda estava na ativa, ou tinha sido promovido na carreira, ou tinha se aposentado… Então tínhamos a pista de que eles não haviam sido expulsos da corporação”, relata Marta Machado, coordenadora do Núcleo.

Em busca de documentos sobre possíveis providências da corporação a respeito dos policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru, o Núcleo de Estudos da FGV entrou, em julho de 2012, com um pedido à Corregedoria da Polícia Militar pela Lei de Acesso à Informação. A negativa do corregedor Rui Conegundes de Souza veio em agosto, sob a justificativa de que a divulgação desses documentos feria o direito ao “respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem” dos policiais militares.

A FGV recorreu da decisão, argumentando que as informações eram de interesse público, uma vez que se referiam a violações de direitos humanos por parte de agentes públicos, agindo como tais. Nova negativa, desta vez do subcomandante da Polícia Militar, Hudson Tabajara Camilli – que alegou que “os documentos que tratam do ocorrido na Casa de Detenção possuem grau de sigilo, sendo que alguns ainda estão em instrução”. Novamente os pesquisadores recorreram, dessa vez à Corregedoria Geral da Administração (CGA). Na decisão final, o presidente da CGA, Gustavo Ungaro, decidiu a favor da liberação dos documentos.

“No caso em apreço, a Corregedoria da Polícia Militar não registra estarem inconclusos os feitos dotados de potencial punitivo, sendo razoável supor, uma vez passados mais de vinte anos desde a ocorrência dos fatos, tenham os mesmos encontrado pleno desfecho, pois tais processos normalmente duram alguns meses, não muitos anos”, escreveu Ungaro, em ofício assinado em novembro de 2012. Os documentos deveriam ser entregues à FGV, com a preservação de eventuais informações pessoais. (confira a íntegra dos documentos aqui)

Ainda assim, a resposta definitiva da Corregedoria da Polícia Militar só veio em março de 2013 com a liberação de um documento de 137 páginas com informações sobre todos os Inquéritos Policiais Militares e procedimentos disciplinares pelos quais os policiais envolvidos no Massacre do Carandiru já passaram – antes e depois de 1992. Não há uma única menção a procedimentos administrativos instaurados por conta do massacre.

Na lista enviada pela Corregedoria da PM à FGV, manteve-se em sigilo, a pedido da advogada dos réus no processo criminal, a identificação destes policiais, para que não fosse possível relacionar os procedimentos ao indivíduo que cometeu a falta.

“NÃO HOUVE NADA ERRADO”

Em seu Regimento Disciplinar, a Polícia Militar do Estado de São Paulo considera faltas graves as ações que atentam contra os direitos humanos fundamentais. O problema, alega a PM, é que esse regimento foi instituído em 2001. Antes disso, o que regulamentava as transgressões disciplinares da Polícia Militar era um decreto-lei n°13.657 de 1943, que não previa esse tipo de violação.

“Todas as decisões administrativas, relacionadas ao caso ‘Carandiru’, foram adotadas em cumprimento à legislação vigente à época”, respondeu a corporação, via e-mail. “É bom esclarecer que nenhum policial militar acusado no processo do ‘Carandiru’ teve sua sentença transitada em julgado até o momento. Diante disso, à luz da Constituição Federal, todos ainda são inocentes”, pontuam.

Mas, segundo uma fonte ligada à Polícia Militar que não quis se identificar “por segurança”, “a PM entendeu que não era caso de demissão porque entende que não houve nada de errado. Jogaram embaixo do tapete e esperaram a absolvição”.

De acordo com essa fonte, o fato de as sentenças não terem transitado em julgado não impediria as punições, pois já houve casos de expulsão de policiais militares antes da conclusão dos processos criminais em que eram réus.

A decisão de expulsar um policial é tomada pelo Comando Geral da corporação no caso dos praças e pelo Secretário de Segurança Pública do Estado no caso dos oficiais.

Além disso, a instauração de processo administrativo por faltas cometidas por policiais independe da existência “de outras medidas cabíveis na esfera penal ou civil”, de acordo com a Instrução Policial Militar I-16-PM, assim como a “absolvição judicial pelo mesmo fato que originou o processo regular” não se constitui “em motivo impeditivo de apuração de responsabilidade disciplinar”, “salvo se a decisão judicial declarar a inexistência material do fato, do crime ou negativa de autoria”. Ou seja, o policial militar que pratica ato irregular responde administrativa, civil e penalmente, de forma isolada ou cumulativa. É o que no direito se chama “independência das esferas”.

A Lei Complementar nº 893/01 também dispõe, em seu artigo 85, que a transgressão disciplinar, quando considerada criminosa, prescreve de acordo com a legislação penal. Se o crime não prescreveu, como é o caso dos 73 policiais militares condenados em primeira instância pelo massacre do Carandiru, a transgressão disciplinar também não.

A questão é que para a PM, os policiais não cometeram faltas: “Do fato ocorrido em 1992 não se vislumbra, em princípio, transgressão na esfera administrativa. Assim, um eventual processo administrativo contra policiais envolvidos na Operação Carandiru somente poderá ser instaurado após sentença definitiva. Qualquer atitude contrária constitui abuso e viola os direitos fundamentais dos policiais militares”, respondeu à Polícia Militar por email em resposta à Pública.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança Pública responde, na última sexta-feira 4, que endossava a resposta encaminhada pela Polícia Militar. Dos 111 detentos mortos pelos policiais, 84 não haviam sido condenados.

A reportagem apurou através do portal da transparência que, dos 120 policias acusados, 35 recebem salários que vão desde R$ 602,34 a R$ 40.250,23. Estes valores se referem ao total líquido.

882 IPMS E 120 POLICIAIS

Os 120 policiais listados na primeira versão do processo criminal do Massacre do Carandiru já foram alvo de 882 Inquéritos Policiais Militares e 123 Processos e Punições Disciplinares – nenhum deles relacionado ao massacre.

As punições vão desde infrações leves, como é o caso do Processo Disciplinar Nº CPC-023/73/03 que gerou uma repreensão para um policial militar “por ter, por volta das 10h18 min, se portado de modo inconveniente ao bocejar durante instrução ministrada por Oficial deste Comando.”; e para situações externas e particulares: “…por não portar documento obrigatório, estando com seu veículo particular com falta de licenciamento, falta de placa dianteira e lacre rompido.” Nesse caso, a punição foi de um dia de afastamento do policial.

Mas também há contravenções graves, que geraram afastamentos mais longos como consta no ofício de Nº 11BPMM-1185-B/SJD/75: “o PM teria, em 11Nov75, por volta das 21h45, quando motorista da Vtr de Tático Móvel 503, conduzido duas mulheres a um local ermo, onde juntamente com os demais integrantes da guarnição tentou constranger a uma delas a praticar relações sexuais mediante violência, no interior da Vtr ”. Esta sigla se refere a viatura. Nesse caso foi aplicado o Conselho Disciplinar e punição de 15 dias de detenção – vale lembrar: esse policial estava entre os que participaram do massacre do Carandiru.

De acordo com os documentos fornecidos pela Corregedoria à FGV, há ainda denúncias de policiais envolvidos com tráfico de drogas, como citado no processo Nº 050/06, em que  comerciantes da região da Lapa “estariam receosos quanto a possível volta do policial àquela área, visto seu possível envolvimento com traficantes.” Segundo resultado da denúncia, nada foi comprovado. Outro caso similar teve o desfecho decidido por pressão de fora da corporação: “Alega o denunciante que um Policial Militar aposentado é envolvido com marginais da região do Jardim Primavera/Zona Sul, e que está procurado pela justiça e ninguém faz nada; que é fácil de encontrá-lo. RESULTADOFoi cumprido o Mandado de prisão expedido pelo 1º Tribunal do Júri de São Paulo, no processo nº 2916/96 Unidade I, em desfavor do PM denunciado, o qual foi encaminhado ao PMRG, onde ficou recolhido […].” O registro de denúncia foi feito através do  Nº 553/144/08.

Ou seja, como todo o processo se dá dentro da Polícia Militar, crime e castigo seguem normas próprias, baseadas no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar que podem parecer desproporcionais aos olhos civis: no caso citado dos policiais acusados de estupro, a pena foi de 15 dias de detenção; em outro processo, em que o policial emitiu “um cheque sem suficiente provisão de fundos para pagamento de uma determinada quantia recebida a título de empréstimo da Comissão de Formatura, causando prejuízo monetário aos colegas”, a penalidade foi de 20 dias de prisão.

PADRÃO OPERACIONAL GERA MORTES

O massacre do Carandiru mereceu o seguinte comentário da Comissão Interamericana de Direitos Humanos: “Essas violações dos direitos à vida e à integridade física foram agravadas em sua natureza pela selvageria dos métodos de repressão empregados contra os amotinados já rendidos, pela execução de presos que haviam sido forçados a participar da remoção ilícita de cadáveres, pela agressão contra sobreviventes e pelos golpes aplicados nos ferimentos de sobreviventes, pela demora no socorro médico e pelo assassinato de feridos enquanto eram transportados para os hospitais”.

Uma violência que está longe de ser exceção, como afirma Renato Sérgio de Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: “A polícia tem conhecimento do padrão operacional que gera estas mortes, mas intervém pouco para mudar este cenário”. E explica: “O Brasil tem um padrão do uso da força que sempre opta pelo padrão máximo de uso da força, que é a morte. É como os policiais que mataram e arrastaram a Claudia no Rio de Janeiro, que tinham mais de 60 ocorrências de morte no currículo. Isto significa que mesmo que investigados, foram inocentados”, destaca.

Para Lima, a investigação e punição dos policiais que cometam transgressões deve ir além da Corregedoria da polícia. “No momento da instauração do inquérito, nós temos alguns atores que tem se mostrado extremamente ausentes sobre o debate do controle da polícia, como o Ministério Público. É ele que tem a função de fazer o controle externo da atividade policial constitucionalmente. De um modo indireto, este padrão conta com a anuência do MP, conta com a anuência do Judiciário. Por que o MP aceita este padrão de uso de violência?”, critica.

“O que é preocupante é que o Ministério Público é o único órgão [que pode pedir investigação da ação penal]. A vítima não pode, a Defensoria não pode. Eles são os donos da ação penal”, explica Daniela Skromov, coordenadora auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Há sete anos na carreira de defensora, ela é incisiva na crítica à promotoria criminal do Ministério Público. “O Ministério Público, com todo respeito, não tangencia o problema da violência policial. Falo isso depois de muito tempo de observação, posso ser muito criticada, mas eles perderam de alguma maneira aquela isenção necessária e vestiram um pouco aquele discurso de que bandido tem mesmo que pagar. Só que é um olhar seletivo para definir o que é bandido e nessa medida, às vezes, como o discurso é de que os PMs matam ou batem em bandido, existe uma certa complacência, porque também é clientela indesejada do Ministério Público. No dia-a-dia criminal é possível juntar o quebra-cabeça e perceber isso bem claramente”, afirma.

A reportagem da Pública enviou dez perguntas ao Ministério Público do Estado de São Paulo para que respondesse às críticas e esclarecesse outras informações, mas até o fechamento da reportagem não houve resposta.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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