Políticas de Bolsonaro visam o etnocídio, a “desindianização”

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
[email protected]

Foto: Agência Brasil

Por Silvia Beatriz Adoue

Em Outras Palavras

Os ataques contra os povos indígenas e o novo padrão de dominação

No segundo dia de janeiro de 2019, o flamante presidente da República, Jair Bolsonaro, divulgou a Medida Provisória 870 (MP/870). Nela, reestrutura os órgãos do governo e suas funções. Entre as mudanças, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) passa do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e lhe retira a função de demarcação e proteção de terras indígenas, agora transferida para o Ministério da Agricultura (MA). O MA acumulará também as funções do Instituto de Colonização e Reforma Agrária. Assim, será o MA quem cuidará da política fundiária como um todo, o que, além das terras indígenas, inclui as áreas quilombolas e de reforma agrária.

No Brasil, há aproximadamente um milhão de indígenas, com 274 línguas diferentes. A demarcação de suas terras, prevista nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, teve seu momento de alta na primeira metade da década de 1990 e foi decaíndo, de maneira mais pronunciada durante o governo Dilma Rousseff, até a paralisia durante o governo Michel Temer. Observemos a tabela:

Há hoje 436 terras indígenas regularizadas, num total de quase 106 milhões de hectares. Há também 130 processos demarcatórios pendentes, entre terras delimitadas, declaradas e homologadas, que correspondem a pouco mais de 12 milhões de hectares. Além do mais, há 115 áreas em estudo. Seis áreas, num total de um pouco mais de um milhão de hectares, estão interditadas para proteção de indígenas isolados2. As terras regularizadas correspondem a 12% do território nacional e a maior área indígena concentra-se na Amazonia Legal.

A observação da tabela 1 permite identificar uma curva descendente nos processos demarcatórios. Mas a queda se faz mais saliente a partir do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2007. O PAC previa obras de infraestrutura destinadas a integrar os territórios às cadeias de acumulação. Tratava-se de produção e distribuição de energia e logística para a produção e o escoamento de commodities minerais e agropecuários. E também para fixação de mão de obra nessas áreas.

Apesar do marco legal de 1988, a política fundiária do Estado brasileiro vem priorizando o agronegócio exportador de maneira contínua. O que se conquistou na letra da Constituição, não vinga na política de Estado. A curva de destinação de áreas para reforma agrária e de titulação de terras quilombolas segue a mesma tendência que a curva de demarcação de terras indígenas. Elas têm sido tratadas mais como políticas da área social do que como políticas fundiárias.

A tabela 2 mostra que a demarcação de terras não foi exatamente proporcional à população indígena de cada região. Como dito acima, a maior parte das terras demarcadas estão na Amazonia Legal, que abrange a região Norte e uma parte do Centro Oeste quando não era ainda fronteira de avanço do agronegócio exportador. A demarcação, nessas regiões, terminou valorizando as terras próximas.

As cadeias de acumulação, porém, hoje demandam a integração de todos os territórios. Não deixam “nem um centímetro fora”. Para isso, é preciso mudar o marco legal regulatório do uso da terra (da água e do ar). As plantações de soja, cana, eucalipto e pinho, por exemplo, hoje beiram os territórios dos povos tradicionais. E encontram no modo de vida e na espiritualidade indígena uma fronteira intransponível. Não tem como integrar essas áreas às práticas produtivo/extrativas do capital.

As mudanças nas políticas para os povos indígenas esboçadas na MP/870 e formuladas nas declarações do novo governo visam não apenas a impedir a continuidade dos processos demarcatórios. Elas visam o etnocídio, a “desindianização”, como era chamada a integração da população indígena durante a República Velha. Pretende-se o abandono de sua forma de vida, que é antagônica com a civilização do capital.

A ministra da Agricultura é Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias. Representante dos ruralistas, é de Mato Grosso do Sul (MS), onde esse setor avança sobre território Guarani e Kaiowá. O Estado, que já sofreu os ciclos da erva mate produzida em escala, da pecuária e da soja, nos últimos anos vinha tentando aproveitar as oportunidades de negócio provenientes da alta na demanda de cana para produção de etanol. Os ruralistas de MS chegaram a fazer leilões de gado para patrocinar milícias anti-indígenas. Essa é a ministra que se ocupará das demarcações. O risco para os povos é que, além de interromper os processos demarcatórios, sejam aplicados critérios que ameacem terras já regularizadas, como os já esgrimidos do “marco temporal”.

Paralelamente, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Dalmares Alves, quer carta branca para evangelizar indígenas. Os funcionários do novo governo lançam mão de anúncios cuja aplicação não é certa: a extinção do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), a retirada do Brasil dos acordos climáticos, o não reconhecimento à Convenção 169 da OIT, que exige a consulta aos povos. Por um lado, tateiam, e, se necessário, recuam. Mas, ao fazer essas declarações, encorajam ruralistas, mineradoras e madeireiros, que lançam mão do terror contra os povos da terra.

O ataque aos indígenas, a seu território e a seu modo de vida visa deixar a terra, toda ela, como um continuum desprotegido disponível para a “violação”, para a exploração por despossessão, para o extrativismo.

Brasil se converte, assim, num laboratório para o padrão de dominação correspondente ao novo modelo de acumulação do capital. As classes trabalhadoras brasileiras foram desarmadas durante as últimas décadas de todo projeto anti-capitalista. As organizações que conseguiram construir no último ciclo de lutas foram sendo cooptadas para projetos do capital ou reduzidas na sua ação autônoma. Os povos da terra não podem se integrar às cadeias de extração de valor sem morrer como povo. A morte da sua cultura é o trunfo da destruição dos territórios (o que inclui a energia humana) para extrair valor.

O que está em jogo aqui é o futuro de todos nós, indígenas e não indígenas. Aprendamos com os povos da terra. Eles sabem como fazer do mundo um lugar onde viver.

Notas
* Recebido em 10/01/2019; publicado em 11/01/2019.
1 Ver: “Com pior desempenho em demarcações desde 1985, Temer tem quatro Terras Indígenas para homologar“, Instituto Socio Ambiental, 19 de abril de 2018. (Consultado em 10/01/2019 às 16:14)
2 Ver: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas (Consultado em 09/01/2019 às 19:25).

 

Silvia Beatriz Adoue é professora da Escola Nacional Florestan Fernandes e da UNESP (Araraquara-SP), entidade que representa no Conselho Estadual para os Povos Indígenas de São Paulo.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Como alguém já disse:

    “Com instituições genocidas, apenas a luta pode trazer algum resultado”

    Todo apoio aos povos indígenas e contra a política genocida exacerbada pelo governo Bozo.

    Fora Bozo!

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador