Todo o peso da justiça nas costas dos mais vulneráveis

Jornal GGN – A coluna Cartas do Cárcere desta semana traz o relato de André Ricardo, que relata o sentimento de abandono que sente enquanto espera o tempo passar dentro de um presídio brasileiro.

“Muitos lá fora se perguntam sobre a quantidade de tempo em que ficamos presos, se devem aumentar as penas e tal. Mas alguém já perguntou isso para um preso ou um ex-detento? Ninguém entende mais de prisão do que nós! É o óbvio! O preso é que tem a vivência e a visão humana (ou desumana) do cárcere.

Porém, alguns podem alegar parcialidade nesse ponto de vista. Os mais teóricos, como juízes, promotores ou outros operadores do direito, só conhecem mesmo os ‘meandros’ jurídicos. Não sabem – sequer imaginam – o peso de suas canetadas nas vidas alheias”.

Do Justificando

Perdoai, Senhor, eles não sabem o peso de suas canetadas

Por André Ricardo

Estava olhando agora por entre as grades fechadas. A quadra de esportes, nosso páteo, os corredores, tudo já vazio, mas as celas todas cheias. Incrível! Quanta tristeza pode ser concentrada em um espaço tão pequeno? Quanta saudade encarcerada em um mesmo lugar? É tanta que transborda pelos muros afora.

Não temos como quantificar esses sentimentos; mas, se tivessemos, será que mudaria algo? Será que teríamos uma regra, um limite, uma quantidade máxima de sentimentos ruins por metro quadrado?

É complicado….

O ser humano é altamente adaptável, se acostuma com tudo mesmo, não é? Por que não se adaptaria em ficar mal o tempo todo?

Esquecemos o que é bom, tudo se torna apenas uma vaga lembrança. Na medida em que o tempo passa, quanto mais passa, tudo fica longe da memória. As boas coisas já vividas, toda uma vida, apenas guardada nas lembranças, como um filme que assistimos há muito tempo.

Fatos, rostos; lembranças, apenas.

Porém, mesmo assim, aquilo que somos, o que vivemos, ninguém nos tira. Só mesmo o tempo. Ah, o tempo….

O tempo leva tudo.

Tudo aqui nos é proibido, não posso receber a visita de minha filha de 17 anos, que é menor de idade, porque, mesmo eu tendo a guarda, sou separado da mãe dela.

Jornais e revistas também não são permitidos, não temos acesso. O por que disso? Boa pergunta! Não há lógica alguma, apenas a opressão pura e simples e a humilhação. Não existe outro motivo.

Vivemos quase na era medieval. Só mesmo o tempo para nos acostumarmos com tudo isso.

Muitos lá fora se perguntam sobre a quantidade de tempo em que ficamos presos, se devem aumentar as penas e tal. Mas alguém já perguntou isso para um preso ou um ex-detento? Ninguém entende mais de prisão do que nós! É o óbvio! O preso é que tem a vivência e a visão humana (ou desumana) do cárcere.

Porém, alguns podem alegar parcialidade nesse ponto de vista. Os mais teóricos, como juízes, promotores ou outros operadores do direito, só conhecem mesmo os “meandros” jurídicos. Não sabem – sequer imaginam – o peso de suas canetadas nas vidas alheias.

Para estes, apenas papéis frios, sem vida. Esquecem-se que, por trás destes simples papéis, existem vidas humanas, que passam dias, meses e anos aguardando decisões, com estragos inenarráveis em suas vidas, e, consequentemente, nas vidas de todos os seus familiares.

Aquele que inventou a grade não conhece a dor da saudade.

Uma vírgula mal colocada por um advogado menos atento pode ser a diferença entre uma vida com família, filhos, ou anos de sofrimento, humilhação e saudades. A subjetividade que causa marcas na vida dos outros para sempre.

Lembro da história na qual, por exemplo, a igreja católica, entidade séria e de respeito, protagonizou: a santa inquisição. Quantos inocentes sofreram mazelas e torturas monstruosas nas mãos dos juízes inquisidores?

Justiça?

Será que o homem sabe mesmo o verdadeiro sentido disso? Dessa palavra em seu sentido mais simples, sem ser parcial? A balança é realmente equilibrada? Ou ela tende a pender para o lado mais cômodo ou conveniente, apenas para dar menos trabalho a determinado juiz ou promotor, que se esquece da sua verdadeira missão, a Justiça?

Será que acreditam que se faz justiça com a injustiça, assim como na “santa inquisição”?

Bom, ainda estou preso, sozinho, humilhado. Meu destino não está mais nas minhas mãos.

Meu destino, minha vida, meu futuro, é apenas uma pasta de papeis no Fórum: o processo.

Só me resta mesmo é continuar olhando pelas grades. Por quanto tempo? Ainda não sei.

Já estou preso há um ano e meio, e tudo o que eu posso fazer é apenas esperar e ficar pensando, divagando.

Até quando?

André Ricardo é colunista por um dia na coluna Cartas do Cárcere. A coluna mostra relatos semanais de pessoas que vivem (e morrem) no sistema prisional brasileiro. 

*Todos os nomes desta coluna são fictícios para preservar a identidade dos apenados

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Confira a carta na integra

Redação

4 Comentários

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  1. todo o peso….

    Não podemos falar a mesma coisa sobre aqueles garotos acusados de estupro no RJ? Não foram condenados por um “viral” da internet? Chegaram na delegcia sorrindo, sem culpa alguma de quem sabia o que havia ocorrido. Não sabiam  que o Estado precisava se livrar do peso da noticia. Não importou a opinião profissional de um delegado experiente. O país queria vingança. E para isto não se aguarda inquerito, nem provas, nem processo. Muito menos defesa. Crime e castigo, o país das suas aberrações. Com a palavra OAB, Judiciário, Orgãos de Direitos Humanos, Constituição… 

  2. É uma modalidade de tortura, sem dúvida

    O que muitas autoridades e instituições brasileiras querem mesmo é continuar impondo seu lema cotidiano:

    Tortura, nunca menos.

    Não dão a mínima para um dos objetivos de qualquer sistema prisional que se pretenda justo, que é o de ressocializar o preso, reeducá-lo, trabalhar com ele para que volte à sociedade como um cidadão cioso de seus deveres e cumpridor das leis.  

     

  3.  
    O Poder Judiciário no

     

    O Poder Judiciário no Brasil está a serviço dos juízes.  Os juízes não têm nenhuma responsabilidade social, funcional, administrativa, etc. 

  4. O Jornal GGN está de

    O Jornal GGN está de parabéns, a humanidade das pessoas precisa ser estimulada pelos veículos de comunicação.

    Chega psicopatas moralistas na televisão com dedo em riste, crocificando as pessoas em rede nacional, alimentando uma histeria sociopata na população, caldo de cultura para o fascismo.

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