Um fascista é, antes de tudo, um macho assustado

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Do Instituto Humanitas Unisinos

Em suas primeiras palavras como presidente, Jair Bolsonaro apontou a “ideologia de gênero” como o principal inimigo, e sua ministra Damares Alves prometeu meninos de azul e meninas de rosa. O binarismo de gênero, embora continue dominante, é percebido como uma ameaça: como o bolsonarismo o transformou no grande laboratório de sua restauração conservadora?

A reportagem é de Gabriel Giorgi, mestre em Sociosemiótica pela Universidad Nacional de Córdoba e doutor em Spanish and Portuguese pela New York University, onde atualmente é professor, publicada por Página/12, 11-01-2019. A tradução é de André Langer.

Em um ato de festiva declaração de guerra, Damares Alves, a nova ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo de Jair Bolsonaro, anunciava que “no Brasil, começa uma nova era: menino veste azul e menina veste rosa”, diante do aplauso e da excitação dos presentes. Ela disse isso em um tom infantilizado: como aquele inesquecível “queremos papai e mamãe” aclamado em nossas ruas por sessentões e sessentonas durante o debate sobre o casamento igualitário, aqui a nova ministra – na ocasião pastora evangélica – também ativa a infância como teatro da restauração conservadora.

Esta evocação da infância como núcleo de valores conservadores não é nenhuma novidade. Mas é, sem dúvida, notável a ideia de uma “nova era” em que, na contramão de toda novidade, o que se pretende é reforçar a imagem anquilosada da ordem patriarcal que, no entanto, é apresentada como a inauguração de um novo tempo. O que é essa “nova era” que se assemelha tanto ao presente quanto, sobretudo, ao passado? Ao ouvir o discurso de Alves, uma historiadora do futuro se perguntará se, em 2016 ou 2017, a sociedade brasileira era uma sociedade que tinha efetivamente eliminado e perseguido o binarismo sexual, se “Brasil” indicava uma utopia pós-gênero em que o reino do azul e rosa devia ser imposto a ferro e fogo.

Aparentemente (e contra a mais gritante evidência da ascendente violência patriarcal e heterossexista em seu país), para a ministra Alves é assim. Não atribuamos esse gesto a uma loucura extemporânea ou a um deslize místico. O gesto de instaurar e “fazer como se” houvera – com a teatralidade do caso – uma sociedade dominada pelo feminismo e pelos movimentos GLTTBI é, penso eu, um dos truques que mais renderam ao bolsonarismo. O “como se” tornado realidade: como se o patriarcado tivesse sido abolido e martirizado, como se as feministas, gays e lésbicas tivessem governado, como se a sociedade estivesse cativa do poder absoluto das pessoas trans. Agir “como se”, e produzir realidade a partir daí. E agora, com o Estado em suas mãos para levar adiante essa produção de realidade.

O gesto de Alves encontra o seu campo de ressonância, claro, no discurso do próprio Bolsonaro, que insistiu, previsivelmente, na palavra “ideologia”. Ideologia de gênero, evidentemente, mas também “amarras ideológicas”, na “submissão ideológica”, nas limitações do “politicamente correto”, que são os modos pelos quais uma sociedade democrática trabalha sua linguagem para acomodar vozes diferentes. Isso, para Bolsonaro, é “ideologia”. Contra isso, ele contrapõe, claro, a religião e “nossos valores”, condensados no binarismo de gênero. Religião e valores não correspondem, no mundo Bolsonaro, a nenhuma ideologia. Assim como azul/rosa: a não-ideologia. O binarismo de gênero como a prova, a “veridicção” diria Foucault, de que ali não há ideologia.

Porque o que parece caracterizar o bolsonarismo, e que chega a tantas outras regiões deste presente em guerra, é o esforço, a insistência e a necessidade de enfatizar, violenta e laboriosamente, distinções de gênero que, embora continuem dominantes são percebidas como ameaças. Repisar com varão/mulher, masculino/feminino, azul/rosa, com a família cisnormativa e heteronormativa, para renaturalizar hierarquias que tinham sido, mesmo que timidamente, desafiadas. Renaturalizar: recolocar uma Natureza mítica (patriarcal, racista, heteronormativa, classistas) que os movimentos populares das últimas duas décadas puseram, em diferentes graus e não sem tensões, em questão. Recolocar uma suposta Natureza mítica – pura fantasia normativa – disputada e contestada pelas lutas políticas. E contrapô-la a essa “ideologia” denunciada por Bolsonaro, que não é outra coisa senão aquilo que em outros lugares chamamos, de maneira mais simples e mais direta, de “direitos”.

Renaturalizar o azul e o rosa para sufocar as lutas que os identificaram como construções históricas e que disputaram a igualdade nesse campo. Para restaurar a partir daí hierarquias raciais, de classe, étnicas, nacionais. O gênero, então, como laboratório de uma restauração conservadora em geral: aí se pode ler uma das operações do bolsonarismo.

Que não fiquem dúvidas: a guerra declarada contra a “ideologia” (de gênero, da “correção política”, etc.) é uma guerra contra os direitos adquiridos. Excluir a comunidade LGTTBI das comunidades protegidas pelos direitos humanos – foi uma das primeiras decisões do governo Bolsonaro – indica claramente do que se está falando quando se fala de um governo “não-ideológico”.

Há, no entanto, algo efetivamente novo neste carnaval da restauração conservadora. Nunca, tanto quanto me lembro, um presidente e um governo se concentraram de maneira tão claramente, tão insistentemente e tão vigorosamente na norma de gênero como problema central da política. São muitos, é claro, aqueles que invocavam “a família”, ou – um clássico – “os valores tradicionais”. Mas nunca o gênero como campo de batalha político-cultural.

Aqui se torna um dos três principais inimigos mencionados por Bolsonaro: corrupção, criminalidade e “ideologia de gênero”, no mesmo plano. O gênero emerge no centro de uma agenda do governo, de modo explícito e beligerante. Isso diz muito, sem dúvida, sobre o ódio alucinado, quase lisérgico, que perpassa as cabeças desses personagens. Mas diz, sobretudo, muito sobre os avanços que conseguimos fazer, e da escala do desafio que conseguimos ativar e do tamanho da ameaça que sentem as e os conservadores do mundo. Diz muito sobre um feminismo e de um movimento LGTTBI que traçaram o terreno a que essas pessoas reagem e respondem com inusitada violência.

Saibamos escutar no ódio estridente e na triste banalidade desses discursos o tremor de um mundo que desmorona. Esse rumor pode nos guiar nas grandes batalhas que estão por vir.

Será, talvez, o momento de atualizar a clássica sentença de Theodor Adorno sobre o fascista como um burguês assustado. Porque no despontar da segunda década do século XXI tudo parece indicar que um fascista é, antes de tudo e de modo cada vez mais transparentes, um macho assustado.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

6 Comentários

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    1. Prezado André,
      A ideia de

      Prezado André,

      A ideia de patriarcado é que em nossa sociedade, existe uma estrutura de poder hierárquica que se baseia no gênero, e que nesta estrutura, a maior parte do poder (político, econômico, social) está na mão dos homens, com as mulheres relegadas a segundo plano. Diferente do que algumas pessoas possam interpretar, não exige que esta dominância masculina esteja codificada nas leis do país, basta que de facto exista um controle masculino pela sociedade, como por exemplo, a porcentagem infima de mulheres representadas na política e cargos de diretoria de empresas.

      Uma sociedade pós-gênero seria uma sociedade onde não haveria mais divisão social em linhas de gênero, ou seja, onde homens, mulheres e pessoas que não se encaixam no binário de gênero (LGBTTIs) tenham o mesmo nível de protagonismo social, político e econômico.

  1. umberto eco e o eterno

    umberto eco e o eterno fascista

    revela muito das infamias a que somos

    submetidos por essa política pobscurantista.

     

    1) O culto à tradição – Não se pode permitir o avanço do saber. A verdade já foi anunciada, de uma vez por todas, e não se pode tentar interpretar sua obscura mensagem. 

    2) Nada de modernismo! – O Ur-fascismo pode ser definido como um “irracionalismo”.

    3) O irracionalismo depende da ação pela ação! A ação é bela por si mesma. A cultura é suspeita, porque, com ela, vem a reflexão crítica. Como dizia Goebbels: “quando ouço falar de cultura saco a minha pistola”.

    4) Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar a crítica. O espírito crítico opera distinções e distinguir é um sinal de modernidade. Para o Ur-fascismo, o desacordo é uma traição.

    5) O Ur-fascismo tem pavor das diferenças. Todo fascista é contra os intrusos. O Ur-fascismo é, por definição, racista. 

    6) O Ur-fascismo se nutre da frustração individual ou social. Uma das características típicas dos fascismos históricos é apelar às classes médias frustradas. Nesse nosso tempo em que os velhos “proletários” estavam se tornando uma pequena burguesia (e o lumpen se auto-excluiu da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria o seu auditório.

    7) O Ur-fascismo tem a obsessão do complô. Possivelmente o complô internacional (No caso brasileiro em curso, o complô é o da China… – PHA). O fascista se sente sempre assediado. E por isso apela à xenofobia.

    8) Os inimigos são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos.

    9) Para o Ur-fascismo não é a luta pela vida, mas a vida pela luta. O pacifismo significa curvar-se ao inimigo. A vida é uma guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolveu a contradição: se há uma “solução final”, ela cria uma era de paz, uma idade de ouro, o que contradiz o princípio da guerra permanente…

    10) O elitismo é um aspecto típico dos fascistas. Eles menosprezam os frágeis. Eles tentam criar um “elitismo de massa”.

    11) Todos são educados para ser heróis. Na ideologia fascista, o herói não é um ser excepcional, mas é a norma. O culto do heroismo está ligado ao culto da morte. Não por acaso o mote dos falangistas era “Viva a Morte!”. O herói fascista também aspira à morte. O herói Ur-fascista é impaciente para morrer: note-se que enquanto não morre faz com que outros morram.

     

    liberdade de expressão significa estar livre da retórica. Ionesco –

    “apenas palavras importam e o resto é puro falatório”.

    Blake

    “O imbecil não entrará no Céu, por mais santo que seja”.

    a psicanálise é imprescindível para entendermos as maluquices 

    e infamias de nossos tempos temerosos-tenebrosos e  bolsignaros..;

    assim como talvez reconhecer em bakthin o estudioso da carnavalização da idade média a que estamos sendo arremetidos pelos bolsignaros e congeneres alienitstas e entreguistas dos tempops atuais…

    e emocionar-se com o samba-enredo da mangueira “história pra ninar gente grande”, em homenagem a todas as marias e marieles e temima com uma frase do refrão ´que é histórica e antologica porque revela as infamias do nosso tempo:”tira a poeria dos porões” um hino de liberta goelas apertadas pelo espasmo resultanteção da ditadura e de todos os regimessó a história revela as ruínas de im tempo que pode repetir-se como farsa novamente….

    precisamos conhecer esses erros e os que virão com esses exemplos de

    um regime de de exceção para tentar tomar atitudes que pelo menos

    diminuam os impactos dessas infamias atuais que tanto nos afetam…

     

    opressivos e entreguistas; esses exempos históricos – ruinas benjaminianas – parece que se repetem agora como farsa.

    o cara que aceita as mentiras desconhece a realidade, o contexto em que as coisas são ditas, são deficientes em interpretação de textos….descohecem principalmente quem emite a mentira…ora, basta saber que é trump pra ver que é mentira… o fascismo não tinha uma forma mais pura. O fascismo era um totalitarismo confuso, uma colagem de diferentes ideias filosóficas e políticas, um emaranhado de contradições. A noção de fascismo não é diferente da noção de Wittgenstein de jogo. Um jogo pode ser competitivo ou não, pode requerer alguma habilidade especial ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não. Jogos são diferentes atividades que apresentam apenas alguma “semelhança familiar” entre si, como Wittgenstein diria. Considere a seguinte sequência:

    Suponha que há uma série de grupos políticos em que o grupo 1 apresenta as características “abc”, o grupo 2 apresenta as características “bcd”, e assim por diante. O grupo 2 é similar ao grupo 1 já que eles apresentam duas características em comum, e pelo mesmo motivo 3 é similar a 2 e 4 é similar a 3. Note que 3 também é similar com 1 (eles têm em comum a característica “c”). O caso mais curioso é aquele apresentado por 4, que é obviamente similar a 3 e 2, mas sem qualquer característica em comum com 1. Entretanto, devido à série decrescente e ininterrupta de similaridades entre 1 e 4, ainda resta, por algum tipo de transição ilusória, uma semelhança familiar entre 4 e 1.

    1. A primeira característica do Fascismo Eterno é o culto à tradição. O tradicionalismo obviamente é muito mais antigo do que o fascismo. Não apenas ele era comum no pensamento católico contrarrevolucionário após a Revolução Francesa, como também ele nasceu ao final da era helenística, em reação ao racionalismo grego clássico. Na bacia do Mediterrâneo pessoas de diferentes religiões (a maioria delas toleradas pelo panteão grego) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história da humanidade. Esta revelação, de acordo com a mística tradicionalista, permaneceu oculta por um longo tempo sob o véu das línguas esquecidas – nos hieroglifos egípcios, nas runas célticas, nos pergaminhos das religiões pouco conhecidas da ásia.

    Esta nova cultura tinha de ser sincretista. Sincretismo não é apenas, como o dicionário diz, “a combinação de diferentes formas de crença e prática”; tal combinação precisa tolerar contradições. Cada uma das mensagens originais contem um pedacinho de sabedoria, e sempre que elas parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis é apenas porque todas estão fazendo alusões, de forma alegórica, a mesma verdade primordial.

    Como consequência, não pode haver aprimoramento do conhecimento. A verdade já foi revelada de forma definitiva, e nós podemos apenas continuar a interpretar sua mensagem obscura.

    2. Tradicionalismo implica em rejeição do modernismo. Tanto fascistas como nazistas glorificavam a tecnologia, enquanto pensadores tradicionalistas geralmente a rejeitam como negação dos valores espirituais tradicionais. Entretanto, apesar de que o nazismo tinha orgulho de suas conquistas industriais, sua glorificação do modernismo era apenas a superfície de uma ideologia baseada em Sangue e Solo (Blut und Boden) [ideologia racista e antissemita que promovia uma vida campestre, a qual se dizia estar ligada diretamente à linhagem (“sangue”/”blut”) alemã, e, portanto, sendo os alemães os únicos com direito à terra]. A rejeição do mundo moderno estava disfarçada na forma de uma refutação do modo de vida capitalista, mas ela dizia respeito principalmente a uma rejeição do Espírito de 1789 (e de 1776, obviamente). O Iluminismo, a Era da Razão, é visto como o começo da depravação moderna. Neste sentido o Fascismo Eterno pode ser definido como irracionalismo.

    3. Irracionalismo também depende do culto a ação pela ação. Sendo a ação bela por si só, ela precisa ser tomada antes de, ou sem, qualquer reflexão prévia. Pensar é uma forma de se afeminar. Portanto, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. Desconfiança do mundo intelectual sempre foi um sintoma de Fascismo Eterno, desde a declaração supostamente feita por Goering (“Quando escuto falar de cultura eu pego minha arma”) ao uso frequente de expressões como “intelectuais degenerados”, “espertalhões”, “esnobes intelectuais”, “universidades são um ninho de comunistas”. Os intelectuais fascistas oficiais eram engajados principalmente em atacar a cultura moderna e os intelectuais liberais como traidores dos valores tradicionais

    4. Nenhuma crença sincrética consegue suportar criticismo analítico. O espírito crítico faz distinções, e distinguir é um sinal de modernismo. Na cultura moderna a comunidade científica valoriza a discordância como forma de aprimorar o conhecimento. Para o Fascismo Eterno, discordância é traição

    5. Além disso, discordância é um sinal de diversidade. O Fascismo Eterno cresce e busca o consenso ao explorar o medo natural da diferença. O primeiro apelo de um fascista ou de um movimento fascista primitivo é um apelo contra os intrusos. Desta forma, o Fascismo Eterno é racista por definição.

    6. O Fascismo Eterno provém de frustração individual ou social. É por isto que uma das características mais comuns do fascismo histórico era o apelo a uma classe média frustrada, uma classe sofrendo com uma crise econômica ou com sentimentos de humilhação política, e assustada pela pressão de grupos sociais mais baixos. Nos dias de hoje, com os antigos “proletários” se tornando pequenos burgueses (e estando o lumpen [classe trabalhadora desprovida de consciência política] majoritariamente excluído do cenário político), o fascismo de amanhã encontrará audiência nesta nova maioria.

    7. Para aquelas pessoas que se sentem desprovidas de uma identidade social clara, o Fascismo Eterno diz que o único privilégio delas é aquele que é o mais comum, terem nascido no mesmo país. Esta é a origem do nacionalismo. Além disso, os únicos que podem prover uma identidade a uma nação são seus inimigos. Desta forma, na raiz da psicologia do Fascismo Eterno há uma obsessão com uma conspiração, possivelmente internacional. Os seguidores precisam se sentir encurralados. A forma mais fácil de solucionar a conspiração é apelar para xenofobia. Mas a conspiração também precisa partir de dentro: os judeus geralmente são o melhor alvo porque eles têm a vantagem de estarem dentro e fora ao mesmo tempo. Nos EUA, um exemplo proeminente da obsessão com uma conspiração pode ser encontrado em The New World Order [A Nova Ordem Mundial], de Pat Robertson [livro conspiratório em que Pat Robertson, pastor evangélico estadunidense, “revela” um plano de dominação mundial sob controle de bancos pertencentes a, entre vários grupos, judeus, maçons e Illuminati], mas, como vimos recentemente, há muitos outros.

    8. Os seguidores precisam se sentir humilhados pela riqueza e pela força abundantes de seus inimigos. Quando eu era um garoto me ensinaram a pensar nos ingleses como “as pessoas que fazem cinco refeições”. Eles comiam com mais frequência do que os pobres, mas sóbrios, italianos. Judeus são ricos e ajudam uns aos outros através de uma rede secreta de assistência mútua. Entretanto, os seguidores precisam ser convencidos de que eles podem superar os inimigos. Desta forma, através de uma mudança contínua de foco retórico, os inimigos são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos. Governos fascistas estão condenados a perder guerras porque, por essência, eles são incapazes de julgar de forma objetiva a força do inimigo.

    9. Para o Fascismo Eterno não há luta pela vida, mas sim que a vida é vivida para a luta. Desta forma, pacifismo é o mesmo que dormir com o inimigo. [Pacifismo] É ruim porque a vida é guerra permanente. Isto, entretanto, leva a um complexo de Armagedom. Já que os inimigos precisam ser derrotados, é preciso que haja uma batalha final, após a qual o movimento terá controle sobre o mundo. Mas tal “solução definitiva” implica em uma era futura de paz, uma Era de Ouro, o que contradiz o princípio de guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver este dilema.

    10. O elitismo é uma característica comum a qualquer ideologia reacionária, na medida em que elas são fundamentalmente aristocráticas, e aristocracia e elitismo militar implicam de forma cruel em desprezo pelos mais fracos. O Fascismo Eterno só pode advogar por um elitismo popular. Todo cidadão é uma das melhores pessoas do mundo, os membros do partido são os melhores entre os cidadãos, todo cidadão pode (ou deseja) se tornar um membro do partido. Mas não pode haver nobres sem plebeus. De fato, o Líder, sabendo que seu poder não lhe foi delegado de forma democrática mas conquistado através da força, também sabe que sua força se baseia na fraqueza das massas; eles são tão fracos que precisam e merecem ter um líder. Já que o grupo é organizado hierarquicamente (de acordo com um modelo militar), todo líder em um cargo superior despreza seus subordinados, e cada um deles também despreza aqueles que lhe são inferiores. Isto reforça o senso de elitismo de massa.

    11. Por tal perspectiva todos são educados para se tornarem heróis. Em toda mitologia o herói é um ser atípico, mas na ideologia do Fascismo Eterno o heroísmo é a norma. O culto ao heroísmo está estreitamente ligado com o culto à morte. Não é por acaso que o lema dos falangistas era “Viva la Muerte” [“Vida Longa à Morte”, como aponta Umberto Eco]. Em sociedades não-fascistas conta-se ao público laico que a morte é desconfortável mas precisa ser encarada com dignidade; aos crentes, conta-se que ela é uma forma dolorosa de atingir uma felicidade sobrenatural. Por contraste, o herói do Fascismo Eterno anseia ter uma morte heroica. Em sua impaciência por morrer, ele envia outras pessoas para a morte com mais frequência

    12. Já que tanto a guerra permanente como o heroísmo são jogos difíceis, o Fascista Eterno transfere sua vontade de poder para assuntos de cunho sexual. Esta é a origem do machismo (que implica tanto em desprezo pelas mulheres como em intolerância e condenação de hábitos sexuais fora do padrão, da castidade à homossexualidade). Já que até o sexo é um jogo difícil, o herói do Fascismo Eterno tende a brincar com armas – e fazer isto se torna um exercício de substituição fálica.

    13. O Fascismo Eterno se baseia em um populismo seletivo, um populismo qualitativo, alguns diriam. Numa democracia, os cidadãos possuem direitos individuais, mas os cidadãos em sua coletividade têm um impacto político apenas de um ponto de vista quantitativo – uma pessoa segue a decisão da maioria. Para o Fascismo Eterno, entretanto, indivíduos como indivíduos não possuem direitos, e o Povo é visto como uma qualidade, uma entidade monolítica que expressa a Vontade Comum. Já que um grande grupo de pessoas não tem como ter uma vontade comum, o Líder se passa por seu intérprete. Tendo perdido o poder de delegar, os cidadãos não agem; eles são convocados apenas para interpretar o papel de Povo. Desta forma, o Povo é apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de populismo qualitativo nós não precisamos mais da Piazza Venezia em Roma ou do Estádio de Nuremberg. Há em nosso futuro um populismo de TV ou de internet, em que a resposta emocional de um grupo pequeno de cidadãos pode ser apresentada e aceita como sendo a Voz do Povo.

    Por causa de seu populismo qualitativo o Fascismo Eterno precisa ser contra governos parlamentares “podres”. Uma das primeiras frases proferidas por Mussolini no parlamento italiano foi “Eu poderia ter transformado este lugar surdo e sombrio em um acampamento para meus manípulos”– os “manípulos” eram uma subdivisão da tradicional Legião Romana. De fato, ele rapidamente encontrou acomodações melhores para seus manípulos, mas pouco depois ele fechou o parlamento. Sempre que um político suscita dúvida sobre a legitimidade de um parlamento por que ele não representa mais a Voz do Povo, nós podemos sentir o cheiro do Fascismo Eterno.

    14. O Fascismo Eterno fala Novilíngua. A Novilíngua foi inventada por Orwell, em 1984 [aqui, “1984” é o título do livro de George Orwell, e não uma data de publicação], como a língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês. Mas elementos do Fascismo Eterno são comuns a diferente formas de ditaduras. Todos os livros escolares nazistas ou fascistas fizeram uso de um vocabulário empobrecido e de uma sintaxe elementar, de forma a limitar as ferramentas para raciocínio complexo e crítico. Mas nós precisamos estar prontos para identificar outros tipos de Novilíngua, mesmo que eles se apresentem na forma inocente de um programa de palco.

    Na manhã de 27 de julho de 1943 me contaram que, de acordo com notícias no rádio, o fascismo havia desmoronado e Mussolini estava preso. Quando minha mãe mandou eu ir comprar o jornal, eu vi que os jornais na banca mais próxima tinham títulos diferentes. Além disso, após ver as manchetes, eu percebi que cada jornal dizia uma coisa diferente. Eu comprei um deles, às cegas, e li a mensagem na primeira página assinada por cinco ou seis partidos diferentes – entre eles o Democrazia Cristiana [Democracia Cristã], o Partido Comunista, o Partido Socialista, o Partito d’Azione [Partido de Ação] e o Partido Liberal.

    Até aquele momento, eu acreditava que havia apenas um partido em toda a Itália e que era o Partito Nazionale Fascista [Partido Nacional Fascista]. Naquele momento eu estava descobrindo que em meu país podia haver vários partidos ao mesmo tempo. Já que eu era um garoto esperto, eu imediatamente percebi que tantos partidos não podiam ter nascido de um dia pro outro, e eles deveriam existir há algum tempo como organizações clandestinas.

    A mensagem na página frontal celebrava o fim da ditadura e o retorno da liberdade: liberdade de expressão, de imprensa, de associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” – naquele momento eu as estava lendo pela primeira vez em minha vida. Eu renasci como um homem livre ocidental em virtude destas novas palavras.

    Nós precisamos nos manter alertas para que o sentido destas palavras não seja esquecido novamente. O Fascismo Eterno ainda nos rodeia, as vezes sem uniforme. Seria tão mais fácil para nós se aparecesse novamente no cenário mundial alguém dizendo “Eu quero reabrir Auschwitz, eu quero os Camisas Negras desfilando novamente nas praças italianas.”. A vida não é assim tão simples. O Fascismo Eterno pode chegar usando os disfarces mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para qualquer uma de suas instâncias – a qualquer dia, em qualquer parte do mundo. É válido relembrar as palavras de Franklin Roosevelt de 4 de novembro de 1938: “Eu ouso dizer que, se a democracia americana deixar de progredir como uma força viva, buscando dia e noite por meios pacíficos melhorar a vida de nossos cidadãos, o fascismo ganhará força em nossa terra.”. Liberdade e libertação são tarefas sem fim.

  2. Incomoda esse discurso
    Incomoda esse discurso despolitizado segundo o qual o Bolsonaro é muito injusto porque pobrezinha mulher e o pobrezinho gay não teriam ganhado nenhum direito nos últimos anos. Ao invés disso, deveriam afirmar com clareza que o atual governo impõe uma agenda regressiva justamente porque as mulheres e os gays ganharam muito com os governos do PT, e querem ganhar ainda mais. Ao invés dessa postura defensiva, deveriam afirmar que a liberdade total para o aborto, a possibilidade da escolha de gênero, a educação sexual etc são sim os objetivos desses grupos. Qual o problema de ser tachado como ideologia de gênero? É ideologia de gênero sim, qual o problema?

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