Uma fatwa contra Boulos? Como assim…

A decadência do Sistema de Justiça brasileira está ficando mais evidente e perigosa. Após Jair Bolsonaro e Sérgio Moro divulgarem o Decreto nulo que liberou o porte de armas de fogo, uma desembargadora comemorou isso dizendo que doravante Boulos (um líder dos sem terras) seria recebido a tiros. A reação de Boulos foi imediata https://www.viomundo.com.br/denuncias/boulos-detona-stf-e-processa-desembargadora-bocuda-que-incitou-ao-crime.html?fbclid=IwAR1aYtWa84v—eOh8Sa4xryigTyb9BrTDZGiDNuY7449-AaKLZ5VxVhrbCc. Entretanto, esse episódio merece uma análise mais profunda. 

Desde o apogeu do Direito Romano (Cognitio extra ordinem) os juristas se esforçam para classificar hierarquizar os bens. Eles foram divididos em duas grandes categorias: “res in patrimonio” e “res extra-patrimonium”. As primeiras poderiam ser: a) res mancipi e res nec mancipi; b) res corporales e res incorporales; c) res mobiles e res immobiles; d) res fungibiles e res infungibiles; e) res divisibiles e res indivisibiles. As segundas poderiam ser: a) res humani júris (res communes, res universitatis e res publicae) ou b) res divini juris (res sacrae, res religiosae e res sanctae).

As “res divini juris” não estavam no comércio. “Sacrae” eram os objetos de culto. “Religiosae” eram os túmulos e cemitérios. “Sanctae” eram os muros e as portas da cidade de Roma. Referindo-se às res sancta, J. Cretella Junior afirma que:

“Penas severas são cominadas a quem desrespeita esses lugares.” (Curso de Direito Romano, 20ª. Edição, Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 167).

Os muros e as portas da cidade eram especialmente valorizados pelos romanos, pois da sua conservação e respeito dependia a própria existência da urbe e da civilização que ela representava. Roma foi invadida e saqueada por gauleses em 390 aC e correu sérios riscos durante a campanha de Aníbal Barca na península italiana. É, portanto, perfeitamente compreensível a preocupação dos romanos com o desenvolvimento do conceito de res divini juris e da proteção das res sanctae.

Quando os canhões se tornaram suficientemente poderosos para derrubar facilmente qualquer fortificação as cidades muradas caíram em desuso. Foi justamente durante esse período que começaram a surgir algumas ideias revolucionárias (contrato social, soberania popular, eleições regulares, Direito codificado e Estado nacional) cuja evolução resultou no surgimento do moderno Direito Constitucional.

A partir do século XIX, as constituições escritas se tornaram as muralhas intransponíveis dos Estados nacionais modernos. Elas são defendidas por uma gama imensa de instituições (Exército, Marinha e Força Aérea, Órgãos Diplomáticos, Poder Judiciário, Ministério Público, etc…).

As muralhas de Roma eram “res sanctae” e como tal “extra commercium”. Entre nós e por força do nosso sistema constitucional a vida humana também não pode ser comercializada. A escravidão é crime, o assassinato também. Na hierarquia dos bens juridicamente protegidos pela legislação brasileira (e pelos Acordos Internacionais subscritos pelo Brasil), o mais valioso de todos é a vida. Ela tem um valor muito maior que o da propriedade (que pode ser comprada, vendida, cedida, alugada e doada). 

As penas fixadas para os crimes contra o patrimônio são menores do que aquelas que foram prescritas para os crimes contra a vida. A violação da posse não é crime, mas apenas um ilícito civil passível de resultar em ação possessória. Portanto, a vida de Boulos e de qualquer sem-terra tem mais valor do que as cercas dos latifúndios improdutivos e dos prédios abandonados que eles invadem.

No entanto, no imaginário da desembargadora que se considera inimiga dos sem terras, a propriedade é uma res sanctae” e a vida de Boulos pode ser tirada como se ele também não estivesse protegido pelas muralhas da República brasileira, ou pior, como se dentro delas a ação dos pistoleiros contratados pelos ruralistas fosse legítima. A frase dessa desembargadora, portanto, sugere uma ignorância jurídica profunda, terrível, imperdoável e, sobretudo, incompatível com a dignidade do cargo que ela exerce. 

A Lei Orgânica da Magistratura prescreve que a missão do juiz éCumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício” (art. 35, I, da Lei Complementar n° 35/79). Impossível dizer que Lei a desembargadora imaginou cumprir ao incentivar o uso de armas de fogo contra o líder dos sem terras.

Matei Boulos porque a desembargadora fulana de tal disse que ele poderia ser recebido a tiros.” A julgar pelo clima de guerra alimentado pelo decreto de Jair Bolsonaro e pelas palavras da desembargadora, ninguém ficará surpreso se Boulos for assassinado e seu executor disser isso durante seu depoimento. Em razão da proeminência do cargo que a desembargadora ocupa, as palavras dela funcionam como uma sentença extrajudicial de morte que, além disso, acarretará a condenação e prisão de alguém por homicídio.

A imprensa brasileira ficou horrorizada quando Khomeini proferiu uma fatwa (sentença de morte) contra o escritor Salman Rushdie. O mesmo ocorreu quando a ordem foi renovada https://pt.wikipedia.org/wiki/Salman_Rushdie. A reação dos jornais e telejornais à fatwa da desembargadora contra Boulos, porém, foi bastante modesta. Ao que parece, esse grave episódio foi ignorado por causa da decisão proferida por Luiz Fux em favor de um dos filhos de Jair Bolsonaro. A vida dele, porém, não está em perigo.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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