Violência faz mal às mulheres e à saúde, por Alexandre Padilha

Do Saúde Popular

Violência faz mal às mulheres e à saúde

Dizer NÃO ao retrocesso do PL 5069 não deve ser uma tarefa isolada das milhares de mulheres, sobretudo jovens, que tomaram as ruas para denunciar o mal que ele representa

por Alexandre Padilha, especial para o Saúde Popular

O dia 25 de novembro marca o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher. Neste mês, o prefeito Fernando Haddad publicou dois decretos que mudaram o nome de duas unidades básicas de saúde para homenagear trabalhadoras do SUS municipal que infelizmente foram assassinadas neste ano. A homenagem é justa, aprovada nos conselhos locais de saúde, e deve servir permanentemente para nossa reflexão e atitudes.

A primeira homenagem é na UBS República, cujos trabalhadores e trabalhadoras desenvolvem um excelente trabalho de cuidado à população que vive nas ocupações pela luta pela moradia no Centro da cidade. Esta unidade passa a se chamar UBS República – Fernanda Santi Limeira, enfermeira que trabalhava no local e foi vítima de um assassinato brutal pelo ex-companheiro quando chegava cedo no serviço. O detalhe é que ela já havia denunciado seguidamente o mesmo, buscando inclusive enquadramento na Lei Maria da Penha.

Absurdamente, uma juíza havia negado as medidas, por considerar as seguintes denúncias de ameaças e violência insuficientes para o enquadramento. Tivesse ouvido, possivelmente este, também absurdamente chamado “crime passional” teria sido evitado. Não existe crime passional. Ninguém mata por amor. O crime sofrido pela enfermeira Fernanda tem nome: feminicídio! O episódio revela o quanto há ainda de preconceito, morosidade e complacência no nosso judiciário quanto ao risco das mulheres serem vítimas de violência. Que a homenagem na UBS República sirva para o alerta e mudança de atitude.

A segunda homenagem acontece na UBS Vila Penteado, na região da Brasilândia, periferia da Zona Norte, onde há quase duas década agentes comunitárias e equipes de saúde da família buscam garantir acesso à atenção primária de saúde em comunidades onde poucos agentes do Estado tem presença marcante.

A UBS passa a se chamar Fátima de Jesus Viana Rosa, uma agente comunitária de saúde há 18 anos na região. Por ela já passaram duas gerações de gestantes, pessoas que cuidam das doença crônicas por quase uma década, histórico de mudanças na gestão da saúde municipal de São Paulo.

Fátima era um desses olhares vivos do passado, presente e futuro do acesso à saúde na nossa cidade e que tem seu vínculo com a comunidade com a única defesa para caminhar em terrenos cujos índices de violência mostram a face cruel da cidade mais rica do país.

Durante seu trabalho, a agente comunitária foi brutalmente violentada sexualmente e assassinada por um homem. O assassino, ao comparecer à unidade policial, foi inicialmente liberado. Esperamos que seu nome na UBS sirva de energia para lutarmos por uma cultura de paz, por uma política eficiente de segurança pública por parte do governo do estado e pelo enfrentamento das causas estruturais que levam aos indicadores alarmantes de violência na periferia. E também para denunciarmos permanentemente a postura preconceituosa e leniente do aparato policial com crimes que afetam as mulheres, negros e a população LGBT.

Para além das homenagens, uma longa luta deve ser permanente e nós profissionais de saúde temos um papel ativo e fundamental. Dia 1º de Agosto de 2013 foi pra mim uma data marcante nos 37 meses em que fui Ministro da Saúde do Brasil.

Ela marca a sanção presidencial da lei 12845/2013 que estabelece o atendimento obrigatório e integral no SUS às pessoas em situação de violência sexual. Na prática, transformava em lei uma política que já havíamos adotado via portaria do Ministério da Saúde.

Com a sanção, o atendimento imediato estabelecido pela orientação do Ministério da Saúde passou a ser lei em todos os hospitais e serviços integrantes da rede do SUS, compreendendo os seguintes serviços: i)diagnóstico e  tratamento de lesões físicas; ii)amparo médico, psicológico e social imediatos; iii)facilitar o registro da ocorrência nos órgãos cabíveis e preservar e coletar material para provas penais; IV) ofertar “pílula do dia seguinte” em tempo adequado (até 72h do ocorrido); v)ofertar medicações que reduzam o risco de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS e VI)fornecer às vítimas informações sobre seus direitos legais, diante do crime cometido.

Em tempos em que iniciativas de parlamentares, diga-se de passagem em sua maioria homens, buscam alterar a lei para retroceder neste direito às mulheres e na defesa da vida, é importante relembrar que à época, a aprovação da legislação ocorreu sem contestação no plenário, após um processo de articulação da bancada das deputadas federais, Ministério da Saúde e Secretaria de Políticas para as Mulheres.

Para defender a sanção sem vetos, mostramos que as orientações do Ministério da Saúde já haviam produzido efeitos importantes, como acolhimento mais qualificado às mulheres, o que podia ser medido pelo aumento nos índices de satisfação com o atendimento. Havia ampliado ainda a oferta, em tempo adequado, de medicamentos para reduzir o risco de transmissão de DSTs e AIDS.

E mais do que isso, produziram um efeito inverso daquilo que muitas vezes os propagadores da desinformação – que tentam associar a “pílula do dia seguinte” ao aborto – dizem. A oferta de medicação em tempo adequado para impedir a gravidez, além de contribuir para aliviar o sofrimento, protege a vida de milhares de mulheres por reduzir a necessidade de aborto, seja pela via legal, seja por vias clandestinas que invariavelmente colocam em risco a vida de milhares de mulheres.

Os dados sobre a violência contra as mulheres e a necessidade permanente de reorganização da saúde pública brasileira para lidar com este desafio são alarmantes. Segundo dados do IPEA, mais de 1.300 mulheres são violentadas sexualmente por dia no Brasil e cerca de apenas 10% chegam a registrar ocorrência policial. Em 2011, quando estabelecemos a notificação obrigatória no SUS para estes casos, os dados mostram que as vítimas são de baixa escolaridade e cerca de 70% crianças e adolescentes.

Na cidade de São Paulo, os números só reforçam o quanto a realidade alarmante está tão próxima de todos nós.  Os dados de 2015 de violência sexual às mulheres, mostram que cerca de 77% dos agressores, como nos casos de Fernanda e Francisca, são pessoas conhecidas, 66% da própria família e mais da metade são os pais ou padrastos. Não à toa, é tão reduzido o percentual de ocorrência policial. Mais de 60% das vítimas de violência com mais de 10 anos de idade sofreram estupro e isso ultrapassa 80% quando a faixa etária da vítima está entre 30 a 39 anos.

Dos casos de estupro, em apenas cerca de 20% houve o registro de recebimento de medicamentos para evitar DSTs, AIDS e Hepatite B. Cerca de 23% registram ter recebido a “pílula do dia seguinte”. Estes números só reforçam a dimensão do problema e os obstáculos que as mulheres precisam superar, muitos deles dentro de casa, para ter acesso a cuidado e direitos, quando vítimas de violência sexual.

Tais dados nos alertam para a necessidade de avançar na legislação para superar estas barreiras e não retroceder, como pretendem os apoiadores do PL 5069/2013, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha.

Ao proporem que a oferta de cuidado e o acesso às tecnologias que já dispomos para evitar a gravidez só sejam garantidos nas situações de estupro que forem comprovadas por exame de corpo delito em instituto médico legal, ignoram o constrangimento duplo que as vítimas têm de passar ao procurar tais serviços, sobretudo quando o agressor é um conhecido.

Além disso, muitas vezes o estupro, quando sob coação ou sob uso de substância que reduzem a consciência da vítima, pode não revelar evidências de agressão física ou gerar outros empecilhos para a coleta de provas. Por fim, querem delegar ao profissional e à instituição que recebe a vítima, a avaliação se aquele medicamento ou procedimento é ou não abortivo, podendo negar-se a fazê-lo, caso assim o considere. Esta mudança é ainda mais absurda porque retiraríamos das autoridades técnicas e sanitárias e de seus protocolos a definição do que é abortivo, passando-a para o profissional ou instituição.

Para além do uso ou não da pílula do dia seguinte, o PL 5069 permitiria ao profissional ou instituição negar-se, por exemplo, a tratar uma gestante de uma infecção, ou dar assistência ao trauma ou a doença cardíaca, por considerar ser um ato “abortivo”, mesmo sem qualquer evidência científica.

Uma coisa é o chamado impedimento de consciência para o profissional adotar qualquer procedimento, outra coisa é dar por lei a prerrogativa ao profissional de interpretar o que é ou não abortivo.

A postura de alguns profissionais de saúde e de suas instituições também só revelam o quanto do preconceito, da misoginia e de uma visão restrita do que é cuidado a saúde está impregnada nas instituições formadoras e nos rituais e processos pelos quais passam os profissionais de saúde , ao longo da sua formação . Os episódios recorrentes de propagação do preconceito e da misoginia e da violência contra mulheres em faculdades da área da saúde, em especial da medicina só reforçam o quanto este tema não pode estar distante de quem busca promover e cuidar da saúde.  Dizer NÃO ao retrocesso do PL 5069 não deve ser uma tarefa isolada das milhares de mulheres, sobretudo jovens, que tomaram as ruas para denunciar o mal que ele representa.

Também nós, profissionais e gestores de saúde, que sabemos que o acolhimento a uma vítima de violência sexual é um dos momentos mais angustiantes do dia a dia de quem lida com a dor e o sofrimento, não podemos ficar calados diante desta retirada de direitos.

A sociedade, consciente de que o estupro é um crime hediondo, deve saber que o PL 5069 tornará esta experiência ainda mais hedionda para as vítimas, privando-as do imediato cuidado, da assistência e acesso a todos os seus direitos.

**Alexandre Padilha, 45 anos , é médico infectologista e atual Secretário Municipal de Saúde  da cidades e São Paulo  e ex- Ministro da Saúde 2011-1014

 

Redação

1 Comentário

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  1. El Pais – Uma pandemia de violência contra as mulheres

    A cada 10 minutos um homem mata uma mulher que é ou foi sua companheira em algum ponto do planeta, de acordo com dados da ONU. É a intolerável ponta do iceberg da violência de gênero, uma realidade cotidiana em todo o mundo. A violência contra as mulheres, a metade da população, adquiriu dimensões de uma pandemia de efeitos devastadores, em um mundo no qual uma em cada três sofreu violência física e sexual e onde 200 milhões de garotas sofreram mutilação genital.

    continua aqui

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