Violência policial e a erosão do Estado de Direito, por Rodrigo Ghiringhelli e Fernanda Bestetti

Do Sul 21

A erosão do Estado de Direito
 
por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos

 

Durante o último final de semana, o Rio Grande do Sul ganhou manchetes nacionais, diante de um confronto ocorrido entre criminosos e policiais militares, em uma grande avenida da capital gaúcha. Como o saldo foi de morte dos quatro criminosos e nenhuma perda por parte da polícia, a sociedade gaúcha comemorou e parabenizou os policiais envolvidos. O Comando da Brigada Militar foi mais longe, e com grande senso de oportunidade convocou a população para na próxima quarta-feira condecorar os policiais por bravura, na presença do Governador.

No dia seguinte, no entanto, um vídeo gravado por câmeras de vigilância e divulgado pela imprensa e nas redes sociais ofuscou o brilhantismo da atuação da polícia. Pelas imagens, constata-se que um dos criminosos sai do carro em que estava, na função de motorista, desarmado, se joga no chão, e ergue os braços em sinal de rendição. Um dos policiais se aproxima, e desfere grande quantidade de tiros. Então surge o questionamento: Seria o caso de concordar e premiar esta conduta? Seria ela fruto do calor da hora, não sendo exigível uma outra conduta?

Em outra cena gravada, aparecem os policiais, após a confirmação da morte dos ocupantes do carro, descaracterizando o local da ocorrência e dificultando o trabalho da perícia, permitindo que os fatos passem a ser aqueles baseados no testemunho dos policiais, e não em apuração isenta, como um caso como este exigiria. E os policiais serão condecorados antes de qualquer investigação.

O caso em si, e toda a repercussão que teve nas redes sociais, com uma grande mobilização de policiais militares e agentes de polícia para rebater qualquer questionamento, e com a solidariedade imediata inclusive de outras corporações, como a Polícia Civil do RS e a Polícia Rodoviária Federal, denota o processo acelerado de erosão do Estado de Direito que estamos vivendo.

Em qualquer país onde as leis estão em vigência, casos como este, são investigados e esclarecidos, para só então ensejar qualquer tipo de premiação ou repúdio. No Brasil, ao que parece, diante do aumento da insegurança pública, fruto em grande medida do corte de recursos públicos para o setor, com desvalorização dos policiais, falta de equipamento e de efetivo, corte de horas extras e superlotação carcerária, a aposta é na adesão da opinião pública ao “bandido bom é bandido morto”, flexibilizando os já frouxos controles sobre a atividade policial, e inviabilizando qualquer medida que indique a necessidade de submeter a ação policial aos mais elementares padrões de procedimento.

Em plena década de 90 do século passado, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chamava a atenção para o surgimento do “fascismo societal”, ou seja, a adesão cada vez mais ampla a comportamentos e opiniões de negação do outro, legitimando um duplo padrão de atuação estatal, brutal e violenta em áreas de periferia e contra suspeitos ou criminosos com perfil de baixa renda, e respeitoso e cordato contra os chamados “cidadãos de bem”, mesmo que autores de delitos. Seria uma atualização de uma situação bastante conhecida no Brasil, do tratamento desigual para os subcidadãos, demonizados e reprimidos a margem da lei e do direito, e os sobrecidadãos, que não são alcançados pelas instituições de controle.

Desde 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, passamos a trilhar um novo caminho de afirmação democrática. Mesmo sujeitos às críticas de setores conservadores, dentro e fora das polícias, que passaram a se considerar de “mãos amarradas” para atuar contra o crime, e de setores “críticos”, que consideravam a aposta no Estado democrático de direito uma impossibilidade no contexto brasileiro, conseguimos estabelecer pontes de diálogo e construir novos consensos sobre a ação do Estado no controle do crime, com respeito à lei e a padrões profissionais de enfrentamento de conflitos. Muito ainda ficou por ser feito, como a reforma das estruturas policiais, com a adoção do ciclo completo de policiamento e da carreira única de polícia, e a consolidação de padrões profissionais de atuação por meio da formação e da valorização dos bons profissionais.

Diante deste e de outros eventos, no entanto, precisamos reconhecer nosso fracasso. Fracassamos como pesquisadores, por não conseguirmos construir um sistema de segurança pública capaz de garantir o direito à segurança para a ampla maioria dos brasileiros. Falhamos como cidadãos, ao não exigirmos mecanismos de transparência e controle público sobre as instituições de segurança. Falhamos como sociedade, ao estimular o vale tudo contra o crime e a desvalorização da vida e da justiça. Precisamos reconhecer nosso fracasso, para poder seguir em frente e resgatar o que ainda resta de justiça e democracia. Talvez ainda haja tempo. Talvez já seja tarde demais.

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Sociólogo, professor da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Fernanda Bestetti de Vasconcellos é Socióloga, professora da UFPEL e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 
Redação

8 Comentários

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  1. Ouse contestar ou só mesmo

    Ouse contestar ou só mesmo questionar em público  a atuação desses “heróis” que a reprimenda será na base do “esquerdopatas amigos de bandidos”. 

    A erosão ao Estado de Direito é no campo formal. Na dimensão do Real, o ódio vaza por todos os poros e canais. Poucos conseguiram ao menos imaginar que alcançássemos tão rapidamente esse patamar.

    Coitados dos abnegados que ainda persistem em serem agentes públicos ou privados dedicados a causa da defesa dos direitos humanos. São alvo de ataques e chacotas do tipo defensores dos”direito dos manos”, babá de bandidos etc. 

    Se o Estado corrobora com essas posturas, aí é o fim. 
     

     

  2. Rodrigo, a resposta ao seu

    Rodrigo, a resposta ao seu questionamento nao esta no trabalho pifio que a plutocracia academica ajudou a construir nesse pais? Basta olhar quem esteve a frente dessa iniciativa no RS e em outros orgaos da Segurança Publica, senao, o “mestre” Jose Vicente e seus tenazes coxinhas. Essa é a policia forjada nos cursos de cidadania e direitos humanos – uma policia matadora. Aqui no SuL os gauchos consideram o fato um brando de heroismo.

  3. o estado de exceção se

    o estado de exceção se configura pela própria decisao política de

    homenagear antes de investigar a tal ocorrencia… 

  4. O pior  é que se o policial

    O pior  é que se o policial deixar um desses bandidos vivos, ele morre no dia seguinte por conta dos “justiceiros amigos”. Triste, insano, mas é a pura verdade. Basta lembrar daquele policial de São Paulo que conseguiu impedir um assalto, e, quando estava de folga, foi sumariamente executado em um bar.

  5. Agressor da sociedade é gente?

    O boletim de ocorrência da situação ocorrida em POA na última sexta-feira dá conta de que os policiais foram, literalmente, atacados pelo bando, em dois carros e armamento pesado. A reacão foi rápida e bem sucedida. Dois policiais levemente feridos e quatro bandidos mortos. Esse tipo de gente não tem jeito e devem ser eliminados da sociedade, para o bem comum dessa mesma sociedade. É triste ter de admitir, mas a crua realidade nos impõe a isso.  

     

     

     

     

  6. Coitadinho dos bandidos. Só

    Coitadinho dos bandidos. Só estavam portando fuzis.

     

    Que pena essa tragédia criada pelos policiais fascistas.

    /sarcasmo

  7. criminosos ou suspeitos?

    Caros Rodrigo e Fernanda

    Sá uma correção. Não deveriam chamar os suspeitos de ‘criminosos’. Criminoso é aquele que, acusado de crime é julgado e condenado. No caso os suspeitos e os policiais trocaram tiros e os 4 suspeitos, inclusive o que estava desarmado e rendido, morreram. Se os policiais agiram certo ou não são outros quinhentos, mas suspeito só vira criminoso depois de ser julgado e condenado.

  8. É triste ver uma sociedade
    É triste ver uma sociedade pro criminalidade, onde ficar preso é exceção. Um estado onde permite criminosos com diversos roubos, tráfico e até homicídio sair em liberdade provisória e cometer novamente os crimes. Onde um “exemplar “cidadão que anda com uma arma fria mata um pai de família voltando do trabalho em frente à seus filhos e apenas 10% deles são punidos. Não respeitam a sociedade e nem mesmo a polícia. Tem as leis com diversos benefícios para quem comete crime.
    Diante de um carro com você no volante ele pode simplesmente puxar o gatilho e mostrar como o para ele a vida não tem o menor valor. Agora o policial que estava com uma arma muito inferior e número menor e depois de um confronto com outra equipe de polícias. Ferido de leve na cabeça com um tiro, ahhh super normal quase morrer por defender uma sociedade que não quer polícia. Acho que os policiais deviam ficar em casa enquanto vivemos sobre as leis destes nobres cidades. Vocês não concordam? Polícia para quem precisa?

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