Deficiência como tragédia; ou nosso trágico preconceito

Deficiência como tragédia; ou nosso trágico preconceito

por  Meire Cavalcante

No dia 31 de janeiro, a coordenadora do Fórum Nacional de Educação Inclusiva, Claudia Grabois, publicou o posicionamento da entidade sobre microcefalia causada pelo Zika Vírus, no intuito de pleitear, junto ao Ministério da Educação, as medidas necessárias à garantia do acesso e permanência de bebês nascidos com microcefalia em sistema educacional inclusivo, conforme preconizam os marcos políticos e legais brasileiros. O Fórum se posicionou contra o discurso conservador e retrógrado em torno da deficiência enquanto tragédia e problema a ser “combatido”. Além disso, reivindicou ações do Ministério da Educação, a fim de:  1) garantir vagas nas creches públicas aos bebês de 0 a 3 anos com microcefalia; 2) garantir matrícula preferencial desses bebês; 3) mobilizar as famílias para que efetivem a matrícula; 4) garantir todos os recursos e serviços de acessibilidade, conforme a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.

Hoje, as professoras Martinha Clarete Dutra dos Santos e Claudia Pereira Dutra, diretoras de Educação  Especial e de Direitos Humanos, respectivamente, da Secadi/MEC, publicaram, no Jornal GGN, artigo fundamental à discussão a respeito do preconceito e da discriminação. As autoras abordam as campanhas recentes, promovidas por alguns segmentos, que visam não recomendar a gravidez ou permitir o aborto em caso de descoberta de microcefalia, algo que, para elas, ultrapassa os limites da prevenção e do cuidado com a saúde das mulheres e invade o campo dos Direitos Humanos, focalizando a microcefalia como a grande ameaça por causar a deficiência, propalada como tragédia. Martinha e Claudia alertam para o fato de que o aborto aparece, assim, como solução a um problema (a deficiência) e não como uma política de saúde pública, fundamentada nos direitos reprodutivos das mulheres.

Na página do texto, demorou pouco para que comentaristas destilassem o preconceito do qual as autoras tratam. Um dos comentários beira o absurdo de dizer que o texto defende a presença de um vírus na vida das pessoas. Outro afirma que a questão não tem a ver com indivíduos com deficiência (só lembrando: crianças nascidas com microcefalia são crianças com deficiência, fazem parte do público-alvo de diversas políticas públicas intersetorias já existentes no país, as quais precisam ser reforçadas, neste momento).

É preciso, sem dúvida, tomar cuidado com o tom fatalista em torno da deficiência. Pessoas com deficiência nascem todos os dias, nos países ricos e pobres, com zika ou sem zika. E a existência de uma pessoa não pode ser desqualificada, deslegitimada em razão da deficiência – que é apenas uma das múltiplas e infinitas características que constituem um ser humano. É preciso mexer na ferida, sim. É preciso discutir nossa eugenia e hipocrisia. É preciso provocar o debate público sobre o fato de que nossa sociedade não aceita sequer discutir o aborto, a não ser quando o assunto é evitar um filho com deficiência (o nome disso é eugenia).

Veja, a seguir, o teor completo do posicionamento do Fórum Nacional de Educação Inclusiva:

Posicionamento do Fórum Nacional de Educação Inclusiva sobre microcefalia causada pelo Zika Vírus

Nos últimos meses, o Brasil está mobilizado no combate aos focos de criadouros do Aedes Aegypt, mosquito vetor de vírus causadores de doenças (dengue, chikungunya e zika). Especificamente sobre o Zika Vírus, a população vem sendo alertada para casos de bebês nascidos com microcefalia em decorrência de infecção. Como resposta às ocorrências, o Ministério da Saúde lançou o Protocolo de Atenção à Saúde e Resposta à Ocorrência de Microcefalia Relacionada à Infecção pelo Vírus Zika e também Diretrizes de Estimulação Precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor decorrente de microcefalia.

Ambos os documentos pertencem ao chamado Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia e trazem orientações a gestores, especialistas e profissionais de saúde, a fim de promover a identificação precoce e os cuidados especializados da gestante e do bebê. O Protocolo define, ainda, diretrizes para a estimulação precoce dos nascidos com microcefalia, orientando que todos deverão ser inseridos no Programa de Estimulação Precoce, desde o nascimento até os três anos de idade.

Evidentemente que as questões sanitárias e de saúde do país exigem ações firmes e responsáveis da esfera pública. Cabe à mídia, por sua vez, fazer a divulgação de informações dessa natureza. Porém, para além do enfoque estrito às questões da saúde, por parte das autoridades, e, não raro, de as divulgações retratarem a deficiência como tragédia social e pessoal – algo que nosso país já superou há mais de uma década – faz-se necessário orientar as famílias em conformidade com os nossos marcos legais.

Para o Estado brasileiro, que incorporou ao seu ordenamento jurídico a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status de emenda constitucional, a deficiência é um conceito em evolução e se origina do encontro entre o sujeito que tem deficiência e as barreiras impostas pelo ambiente – sejam essas barreiras de natureza física, de comunicação ou atitudinal, dentre outras. Portanto, falar de bebês com microcefalia é falar de bebês brasileiros. Bebês que têm direito à saúde – evidentemente –, mas também à educação, à cultura, à moradia, ao esporte, ao lazer, ao brincar, ao conviver e ao se desenvolver plenamente, ao máximo de suas capacidades. Todas as políticas públicas voltadas aos pequenos cidadãos brasileiros devem ser garantidas, na perspectiva inclusiva, aos bebês com microcefalia, sem prejuízo do combate ao Zika Vírus, que, sem dúvida, deve ser priorizado.

Dessa maneira, o Fórum Nacional de Educação Inclusiva se posiciona, primeiramente, contra o discurso conservador e retrógrado em torno da deficiência enquanto tragédia e problema a ser “combatido”. Além disso, reivindicamos posicionamento do Ministério da Educação, no sentido de que sejam tomadas providências para estimular a matrícula de bebês com microcefalia, de 0 a 3 anos de idade, nas creches públicas inclusivas dos sistemas de ensino.

Para isso, faz-se necessário mobilizar os gestores da educação a fim de: 1) garantir vagas nas creches públicas aos bebês de 0 a 3 anos com microcefalia; 2) garantir matrícula preferencial desses bebês; 3) mobilizar as famílias para que efetivem a matrícula; 4) garantir todos os recursos e serviços de acessibilidade, conforme a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão.

Reafirmamos a importância do combate ao Zika Vírus e de todas as ações da Saúde, no entanto, para além das políticas de saúde e educação, é essencial que todas as pastas, de todos os setores e instâncias do poder público, atuem no sentido de combater o estigma e a discriminação com base na deficiência, criando e articulando políticas públicas, sempre no paradigma do direito, com o objetivo de assegurar o pleno exercício da cidadania.

Por fim, é necessário compreender o desenvolvimento infantil no âmbito dos Direitos Humanos, algo que se efetiva no direito à educação, que é direito central e fundamental para o exercício dos demais.

Claudia Grabois

Coordenadora Nacional do Fórum Nacional de Educação Inclusiva

 

 

 

 

 

 

 

 

Redação

2 Comentários

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  1. Até entendo a preocupação da
    Até entendo a preocupação da autora do texto, mas acho que ninguém quer queira que aconteça uma anomalia na gravidez. Se acontecer por outros fatores mil, ok, pode acontecer, mas deixar que algo conhecido faça que um filho meu nasça com microcefalia, é o cumulo da desprevençao. Nem sei o que dizer.

  2. Combate o preconceito não é ignorar questões sanitárias

    É preciso, sim, combater o vírus por uma questão sanitária e de saúde. Porém, ações de combate a um mosquito que deixa pessoas doentes e até mata (o debate está tão raso e inconsequente que parece que aedes aegypt só transmite vírus que causa microcefalia) é diferente de “combater a deficiência”, reforçando estereótipos (preconceito e consequente discriminação). Compreende a diferença? Recentemente, foi divulgada a notícia de uma moça com microcefalia que terminou a graduação. Imagine o que tem vivido nos últimos tempos as pessoas com microcefalia! Como deve ser viver com mais preconceito do que já existia, já que diuturnamente as campanhas estão associando essa condição à pior desgraça da humanidade. Dureza. E as crianças que estão nascendo com microcefalia, seja ou não em decorrência do vírus zika? Como será crescer estigmatizado como “aquelas crianças vítimas do zika”. É preciso fazer uma escolha ética para o discurso adotado. Precisamos combater o vírus porque se trata de uma questão sanitária. Ninguém quer contrair um vírus que pode, inclusive, adoecer gravemente ou matar. Agora, essa mobilização histérica em torno da deficiência — e só falarmos de aborto aproveitando a carona do tema (que país de covardes!) –, já é demais. Tenhamos mais empatia pelo outro. Sejamos mais consequentes na nossa escolha discursiva, tendo a humanidade do outro como o limite para os nossos medos e preconceitos. Que nenhum bebê nasça e cresça estigmatizado como “uma aberração, uma vítima, uma desgraça na vida das famílias”. Que nenhuma criança, jovem, adulto ou idoso com microcefalia, que hoje presencia essa campanha odiosa, alarmista e trágica, seja humilhado por ser taxado de indesejável, de abortável… 

     

    Matéria da garota: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/12/jovem-com-microcefalia-escreve-livro-e-tira-diploma-de-universidade-em-ms.html

     

     

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