Homenagem a Eugenia Gonzaga, uma procuradora notável, por Luis Nassif

De onde vem a energia que empurra esta moça? Geograficamente veio das Minas Gerais, dos lados de Guaxupé, da cidade batizada de Guaranésia, a esquecida Guaramnésia, segundo os trocistas locais, a cidade prometida que se esqueceu de crescer.

De onde a moça trouxe essa sede de justiça, de solidariedade, essa vontade de ir além, de superar os limites físicos e os burocráticos?

Há pessoas que nascem assim, com o sentido de missão. E o sentido de missão da moça se encontrou com o sentido de missão que havia no Ministério Público Federal dos anos 90, a corporação revigorada pelos ventos liberalizantes da Constituição de 1988, empenhada na missão de defensora dos direitos difusos da sociedade.

Quando as ossadas de Perus caíram em sua mesa, a procuradora Eugênia Gonzaga não tinha ideia sobre os anos de chumbo, a ditadura, a tortura. Lembrava-se, pequena, ouvindo o tio mais moço contar para o pai o que ocorria no ABC, a tortura, as prisões arbitrárias. E a indignação do pai, recusando-se a acreditar que essas barbaridades pudessem acontecer em terra tão boa quanto o Brasil.

Sua formação política começou com o caso de Perus, ouvindo os relatos de familiares dos desaparecidos, as histórias de torturas e torturadores, principalmente o drama ancestral das famílias de quem foi tirado inclusive o direito ao luto, de velar filhos, primos, tios desaparecidos.

E, sem nenhuma formação política, fincada apenas na doutrina, nos princípios e, especialmente, na Constituição, pôs-se a cumprir seu dever. Denunciou legistas irresponsáveis, torturadores cruéis, políticos coniventes. A ponto de o ex-prefeito Paulo Maluf ir se queixar a um Procurador Geral da República que já tinha sido chamado de ladrão, de desonesto, mas nunca de coveiro.

Ao lado do colega Marlon Alberto Weichert tornou-se uma das principais vozes em defesa da justiça de transição – o conjunto de medidas políticas e judiciais para reparar violações de direitos humanos após períodos de ditadura. Seu trabalho e de Marlon, esgotando todas as instâncias jurídicas internas, foi essencial para que o caso Herzog fosse levado à Corte Interamericana, resultando na condenação do Brasil.

Mais que isso, descobriu o enorme poder restaurador da Constituição.

Através da Constituição entendeu que toda criança tem o direito indisponível à educação. Indisponível significa que é direito da criança, mais do que direito dos pais. Pais não podem impedir filhos de estudar, assim como não podem proibir de receber transfusões de sangue, vacinas e outros avanços alvos de preconceito supersticioso.

Crianças com deficiência não deixam de ser crianças. Logo, têm direito à educação nos mesmos ambientes das crianças sem deficiência, e não segregadas em guetos, isoladas do convívio com as pessoas sem deficiência, e, por isso mesmo, sem oportunidade de se sociabilizarem. Se não existem escolas preparadas, é responsabilidade do poder público preparar. E, dessa luta tenaz, nasceu uma política pública que, hoje em dia, acolhe 800 mil crianças com deficiência na rede federal – obra do ex-Ministro da Educação Fernando Haddad.

Por conta desse atrevimento, foi alvo de 3.500 ações preparadas por APAEs (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais) temerosas de perder seu quinhão de repasses públicos não fiscalizados.

Com a Constituição na mão e com a ânsia de mudar o mundo na alma, a procuradora foi construindo tijolo a tijolo sua obra, reforçando o lado mais legítimo do Ministério Público Federal, o trabalho da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que abrigou algumas das procuradoras referenciais do MPF – como Ella Wiecko, Deborah Duprat e, em tempos esquecidos, a própria Raquel Dodge, atual Procuradora Geral da República.

Anos atrás, aos seus inúmeros afazeres, Eugenia somou o de presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, uma comissão instituída por lei e que, desde os anos 90, servia apenas para enriquecer currículos de pessoas pouco empenhadas em buscar resultados.

Visitou cemitérios perdidos do interior da Bahia, no Araguaia, em Marabá, embrenhou-se nas matas de Foz do Iguaçu, conseguiu um laboratório junto à Unifesp para refazer as autópsias, outro na Bósnia para ajudar nas identificações. Trabalhou com esmero cada detalhe do trabalho, desde as expedições atrás de ossadas até os cuidados com cada familiar para extrair seu DNA, contornando a desconfiança que passou a dominar todos os familiares, com a falta de vontade e de resultados da Comissão.

Mais que isso, ampliou as responsabilidades do Estado para além das vítimas políticas, dos militantes da luta armada. O cemitério de Perus estava coalhado de corpos de todas as origens, não apenas vítimas da guerra armada, mas vítimas anônimas da violência policial. E todos os familiares têm direitos iguais, de saber o destino de seus parentes.

Foi assim que entregou aos familiares o atestado de óbito do espanhol que morava na Venezuela, um mero vendedor de carros, preso por engano em São Paulo, torturado porque encontraram em sua mala livros de filosofia, e, depois, morto como queima de arquivo. Décadas depois, os filhos vieram de Caracas para receber os ossos e ficarem sabendo que o pai não os abandonara, como sempre pensaram, mas fora vítima da barbárie.

Conseguiu também o direito legal das famílias de modificar o atestado de óbito de cada desaparecido, restabelecendo definitivamente sua história. A primeira retificação foi do ex-embaixador José Jobim, duplamente assassinado pela ditadura, com a morte física e com a morte moral, de enquadrá-lo na categoria dos suicidas.

Nesta segunda-feira foi anunciada a identificação de mais um desaparecido político, Aluizio Palhano Pedreira Ferreira, desaparecido em 9 de maio de 1971, em São Paulo, era integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.

Antes de ser enterrado em Perus, Palhano passou pela Casa da Morte, em Petrópolis. Nas ossadas, as marcas de costelas quebradas, pulso partido. Mas o fato de ter vindo da Casa da Morte para Perus reforçou a luta de Eugenia para que o alvo de identificação sejam todos os desaparecidos, enterrados em valas clandestinas, e não apenas as vítimas políticas sob suspeita de terem sido enterradas em Perus.

Às vésperas da grande bruma que se aproxima, o feito final foi o evento em Brasília, de segunda a quarta, que reuniu mais de uma centena de familiares de desaparecidos. E tirou da toca até o irascível e querido Bernardo Kucinsky.

 

 

Foi um encontro preparado nos mínimos detalhes, do conteúdo das fichas de inscrição, à exposição de fotos de desaparecidos, um trabalho sensível, mostrando fotos do desaparecido com familiares e contrapondo fotos posteriores dos mesmos familiares, salientando o vazio.

A semana de Eugenia foi inteiramente ocupada com follow-ups das passagens, procura de marceneiros para tirar as fotos da exposição das embalagens, os procedimentos para retirarem DNAs dos familiares. A Secretaria de Direitos Humanos não tem orçamento. Mas Eugênia já havia conseguido suprir a necessidade de recursos com emendas parlamentares. Questões burocráticas foram trabalhadas pelo WhatsApp em conversas que, às vezes, varavam a noite.

No final de tudo, a grande lição: contra o desânimo, a energia de não desistir; contra o medo, a coragem; contra o arbítrio, os princípios. E, coroando tudo, o imenso orgulho de ser brasileira.

PS – Por questão de transparência, sou obrigado a revelar que sou o “outro” na vida de Eugenia. Seu casamento indissolúvel continua sendo com o Ministério Público Federal.

Luis Nassif

26 Comentários

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  1. Figuras como Eugenia e sua

    Figuras como Eugenia e sua luta incessante servem como um tônico pra enfrentar as trevas , representado por Bolsonaro, um verme em forma de gente ,  que já disse sobre os que procuram  as ossadas dos desaparecidos ” que quem procura osso é cachorro ” 

     

     

  2. Eugênia, essa mulher

    Torno aqui, Eugênia, para dizer o que já lhe disse pessoalmente, algumas vezes. Que mulher! Gostaria de que fosse filha minha, que sou uns tantos anos mais velha que você.

    Lendo, seguindo sua trajetória de engajamentos, de lutas, de bravura mesmo, de heroísmo até, fico me perguntando o que nos distingue umas das outras e o que temos todas em comum. Reflito, analiso, sinto e sou grata por conhecer você, seu trabalho, sua dedicação e, principalmente, SEU EXEMPLO, como MULHER MAIÚSCULA, destemida e, por tudo isso, LINDA, e dança e canta e ainda proseia com atraentes sorrisos.

    Um forte abraço quente em você.

    Trouxe o Chico pra cantar ”Angélica” pra você. Eugênia também merece letra, a bem nascida. Se Nassif ainda não lhe compôs um chorinho, está na hora. (mas acho que já compôs sim)

    Sua admiradora de verdade

    Odonir

    .[video:https://www.youtube.com/watch?v=hGRMIUbFEW0%5D

     

  3. Eugênia

     Em tempos tão difíceis, quando a conduta de muitos promotores, procuradores, juízes e desembargadores nos fazem desacreditar na Justiça, eis que vem um marido amoroso e nos revela a grande, notável mulher que vive a seu lado. Dá pra sentir, nas linhas do artigo, o enorme orguho que você sente da Eugênia, Nassif. Parabéns aos dois. 

  4. Eugénia, querida

    Assumo a tudo positivamnte, inclusive de estar sempre nos arredores de Guaranésia. Só não a perdôo pelo não cumprimento de me doar aquela famosa cachacinha que tanto me faria bem. Beijos

  5. Eugenia
    Estrardinaria essa homenagem, em tempos em que o vice presidente ekeito e alguns dos ministros nomeados dizem que nao houve golpe militar e que a diraduea deveria ser homenageada, ler isso tudo me deixou feliz.

  6. Emocionante…

    Me causou muita emoção só de imaginar o conforto da família em poder, finalmente, despedir-se de um ente querido. Que belo trabalho e dedicação como Procuradora Federal tem a sua esposa, Nassif; um sopro de humanidade e compaixão nestes tempos tão perversos que presenciamos… Deus os abençoe e proteja, sempre!!! Abração.

  7. Homenagem a Eugenia
    Fico emocionada, feliz e maravilhada, em saber que existe pessoa como ela no ministério público. Deveria dar algumas aulas magnas para toda esta turma, tipo Dalagnol, de como se trabalha em prol da sociedade, respeitando e cumprindo a Constituição. Parabéns a esta brava mulher, que saiu do seu assento e ar condicionado, investigando o que outros não deram a menor importância. Este é o exemplo, que deve ser seguido por todos os funcionários da desjustissa que tomou conta do pais. Gostaria muito de ver todos estes assassinos no banco dos réus, para limpar nossa história. Parabéns Luiz por esta matéria e pelo GGN.

  8. Homenagem a Eugenia
    Fico emocionada, feliz e maravilhada, em saber que existe pessoa como ela no ministério público. Deveria dar algumas aulas magnas para toda esta turma, tipo Dalagnol, de como se trabalha em prol da sociedade, respeitando e cumprindo a Constituição. Parabéns a esta brava mulher, que saiu do seu assento e ar condicionado, investigando o que outros não deram a menor importância. Este é o exemplo, que deve ser seguido por todos os funcionários da desjustissa que tomou conta do pais. Gostaria muito de ver todos estes assassinos no banco dos réus, para limpar nossa história. Parabéns Luis por esta matéria e pelo GGN.

  9. Parece que aqui Nassif tem

    Parece que aqui Nassif tem razão e sabe do que fala  ..dedicação, energia, coragem e princípios são coisas raras de se ver na CORPORAÇÂO em que habita esta cidadã, daí o acerto em lhe prestar admiração e homenagem

    Confesso que não tive contato com esta promotoria, já com DIVERSAS outras, nem te conto !? Aliás, conto sim, como desabafo …AVE MARIA

    Dos promotores, a IMENSA MAIORIA  .. vi GENTE ARROGANTE que pensa que tem o rei na barriga e o poder na caneta (tipico funcionário publico de carreira e concursado) ..no fundo sabem que são inimputáveis e inalcansáveis, tal qual seus colegas malgistrados

    ..tipos com espírito de corpo afiadíssimo, corporativistas até as tripas ..talvez por dever de ofício já saem duvidando de tudo, exigindo provas, e quando as levamos em PROFUSÃO e irrefutáveis – o que pra eles significa TRABALHO e necessidade de ação – aí que começa o SEU martírio, e a enrolação ..a menos que você tenha uma “carta de recomendação ou que conheça algum JORNALISTA pra te dar repercussão”

    ..providos duma “independência funcional” que nem NAPOLEÃO deve ter tido  ..prazos e ritos pra eles são meros detalhes NUNCA ditos, observados ou cumpridos  ..em geral tratamos de nababos à cata de holofotes, notoriedade, ou de “provas indícios” contra contrários, e de omissões e comiserações pros seus colegas, claro

    Sem duvida fazem parte da nossa estrutura judicial aonde abundam feríados, folgas, férias e licenças, direitos exclusivos  ..gente PREGUIÇOSA, ardilosa, OMISSA e de espírito persecutório afiadíssimo  ..agem normalmente de acordo com a cara, e a CAUSA do freguez cidadão

    Dos casos que lá levei, NENHUM – com um indo para OITO anos – nenhum teve desfecho a tempo, sendo que MALANDROS e LADRÔES ainda, ou aferem com o crime, ou não prestaram contas do que AINDA praticam.

  10. Uma bela declaração de amor.

    Uma bela declaração de amor. Se eu fosse a Eugenia mandava flores para o Nassif. Não é sempre que os homens expõe os seus sentimentos  a partir do reconhecimento do trabalho das mulheres. Costumam, nas datas rotineiras,  mandar flores com as declarações manjadas. 

  11. DOUTORA EUGÊNIA

     

    Linda homenagem que me proporcionou conhecer o extraordinário trabalho dessa Procuradora com P maiúsculo.

    Há muita gente boa no MP e no Judiciário. Com vocação para a democracia e para servir ao país. Infelizmente, os inimigos da democracia parace que são maioria no momento em que vivemos. Mas o que importa é que existam pessoas como a Dra. Eugênia que honram o MP e o Brasil.

    E parabéns ao Nassif também.

    Um abraço e vida longa aos dois com muita saúde e garra para continuar iluminando o caminho.

  12.  
    Realmente, é com enorme

     

    Realmente, é com enorme alento que tomo conhecimento do trabalho, e da existencia de tão valiosa, atuante e digna procuradora, a Dra. Eugenia Gonzaga.  Então, nem tudo está perdido no Ministério Público Federal…pois não?

    Só nos resta agradecer ao Nassif, por nos trazer parte da história dessa ilustre  Servidora Pública. Uma defensora dos direitos difusos da sociedade. Na verdade, esta moça, como diria o Nassif, é defensora dos direitos difusos do POVO brasileiro.

    Pois, defensor de “gente bonita” e de “gente do bem,” as Instituições da republiqueta bananeira tá cheia de Raquel Chevrolet, Raquel Dodge, Pastores Dalagnol, Boçal Moro et caterva. Além de generais da banda, a torto e à direita fascista.

    Orlando

  13. Nassif;
    Muito obrigado por

    Nassif;

    Muito obrigado por ter trazido ao nosso conhecimento a vida de ser humano, brasileira  tão especial.

    Nestes momentos completamente sem perspectivas é de suma importância recebermos este alento.

    Espero que existam mais Eugênias neste falido mpf, constituido em sua quase totalidade por concurseiros mercenários, narcisistas.

    Vale Eugênia, Deus te abençoe e continue de dando coragem!!!!

    sds

    Genaro

  14. Obrigada, Eugênia, sabe

    Obrigada, Eugênia, sabe aqueles momentos/fatos que nos fazem acreditar que “nem tudo está perdido”? Ainda há esperança e um dos nomes dela é Eugênia! Um abraço e toda a minha gratidão pelo seu trabalho, pela sua dignidade! Parabéns! 

  15. Iluminsda
    Um espírito de luz e abençoada por Deus. Eugênia, assim como alguns poucos seres iluminados, só estão entre nós pela graca e vontade de Deus. Quando acha necessário, Ele envia suas falanges para lembrar aos endrmoniados, que eles não são absolutamente nada diante da magnitude divina.

  16. a procuradora eugênia

    Para além da admiração de Luís Nassif por sua esposa, não há como negar que seu trabalho (e do colega Marlon) constante e metódico na causa dos políticos mortos e desaparecidos pela ação da ditadura militar revelam empenho e dedicação que estão longe de serem imitados pelo conjunto do aparato judiciário do país. Não obstante, a homenagem de Nassif é justa é oportuna. Parabéns, Doutora Eugênia!

  17. Mulher, mulher…

    Que bonita e merecida homenagem Luis Nassif faz a Eugenia Gonzaga. Nesses tempos em que muitos homens se sentem perdidos e as vezes são agressivos ou violentos com as mulhereas, com suas mulheres, pelo protagonismo que elas vêm tendo na vida social/trabalho, é muito bom e saudavel ler homenagens assim. 

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