Sem descanso, Eleonora Menicucci enfrenta a treva, por Paulo Moreira Leite

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Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil

Do Brasil 247

Sem descanso, Eleonora Menicucci enfrenta a treva

por Paulo Moreira Leite

Quarenta e oito horas depois de perder um primeiro recurso contra uma indenização de R$ 10 000 a ser paga ao ator pornô Alexandre Frota como indenização por danos morais, a professora Eleonora Menicucci, ministra de Políticas Públicas para Mulheres entre 2012-2016, avisou aos interessados que a luta continua. “Esse pessoal não me conhece. Vou até o fim”, disse Eleonora ao 247, no final de um ato de mulheres por Diretas no largo do Arouche, no centro de São Paulo, na tarde de domingo. Na próxima etapa, seu recurso será examinado pelo Colégio de Juízes, de São Paulo, última etapa antes da Segunda Instância. Enquanto juristas ligados ao PT se dizem convencidos de que as chances de uma vitória nesta fase são baixas, mas devem crescer na medida em que o caso ascender a outros degraus do Judiciário, Eleonora avisa: “Não importa. O que importa é lutar, sempre.”

Na cronologia de um governo que transformou o Planalto num bunker, Eleonora ocupa o lugar honroso de adversária pioneira e irredutível. Orgulha-se de ter participado da mobilização de mulheres, que foram as primeiras a ocupar as ruas para gritar “Fora, Temer!”

Desde maio de 2016 — dias depois de Dilma deixar o Planalto, quando o impeachment ainda não havia sido aprovado pelo Senado — ela trava um combate pela liberdade de expressão, cláusula pétrea de uma Constituição que diz, no artigo 5., que ” é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

A acusação envolve um pedido de indenização por danos morais e sua causa é conhecida. Diante da presença de Alexandre Frota numa audiência com o ministro da Educação  Mendonça Filha, Eleonora traduziu o espanto de boa parte do país numa frase memorável à colunista Monica Bergamo: “Receber esse senhor, que não só já assumiu ter estuprado, mas também faz apologia do estupro, me passa uma credencial péssima de quem está dirigindo a educação.”

A honra ajuda a entender porque  Eleonora se recusa a pagar um único centavo a Alexandre Frota, como se devesse um pedido de desculpas em função de uma acusação baseada num depoimento do ator pornô num programa de auditório da Band, em 2005. Numa das etapas intermediárias da ação, um juiz de conciliação sugeriu que ela se livrasse de um processo judicial, com um aperto de mão e um pedido de desculpas. Recusou. Eleonora também ignorou a promessa de que um eventual acordo ficaria em segredo, como sempre ocorre nessas situações. “O que eu faria com minha consciência?,” pergunta na conversa com o 247.

Em sua ação, na qual tentava arrematar uma bolada de R$ 35 000, 3,5 vezes maior do que a fixada em primeira instância,  Frota apresenta argumentos risíveis. Alega ter sofrido “notório o abalo pessoal e moral,” por ter sido ” vilipendiado em seu patrimônio mais sagrado, o moral”.

Para entender o que ele quer dizer, todo mundo pode refrescar a memória de um dos mais deprimentes espetáculos da história da TV brasileira através do youtube. Ali se exibe o vídeo de uma entrevista de Frota ao apresentador Rafinha, que coloca em termos mais realistas o  possível “abalo pessoal e moral” de quem foi “vilipendiado” em seu “patrimônio mais sagrado” pela reação de Eleonora.

Num momento, Frota  olha para apresentador Rafinha, depois encara a câmara e diz, em tom de confissão: “Cara: eu comi uma mãe de santo.” Em outra passagem, quando Frota diz que “tava carregado”,  Rafinha tenta esclarecer:   “carregado nos testículos?” Seguindo em sua narrativa Frota descreve: “eu botei o boneco para fora.” Um pouco depois: “fui mandando.” Outro momento inesquecível ocorre quando xinga: “Ô mãe! Ô Filha da puta!”

Neste universo onde um estupro é narrado como um espetáculo sádico, prazeroso e divertido, no qual a única pessoa punida é a vítima, é  surpreendente que Frota sido vencedor na primeira instância. Exibindo uma reação idêntica diante do mesmo episódio, o deputado Jean Willys  (PSOL-RJ) e o jornalista Tony Gois, da Folha, também foram acionados por Frota. Nos dois casos, o ator pornô perdeu a causa.

“Eu sou mulher,” diz Eleonora. “Eles são homens. Podem até serem gays. Mas continuam homens.”

Na cultura jurídica nascida pela Constituição chamada cidadã, a jurisprudência ensina que é preciso compreender uma escala de valores. Por isso, a liberdade de expressão deve ser protegida e as tentativas de criar  restrições — mesmo legítimas — devem ser olhadas com cuidado. O princípio é o da liberdade, não o da vigilância. Não se trata de um jogo que soma zero. O “cala boca já morreu” da ministra Carmen Lúcia vem daí.

As sentenças firmadas sobre casos anteriores deixam pontos claros a respeito das circunstâncias em que cabe uma ação por danos morais. Longe de ser uma reação banal da pessoa que sentiu-se ofendida, a ação deve implicar em fatos graves, de consequências sérias para a pessoa atingida.   

Por exemplo: “Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada não se enquadram no conceito de dano moral, cujo substrato envolve a dor profunda e o sofrimento relevante,”  afirmou o relator Carlos Alberto Garbi, em agosto de 2011, num caso que chegou ao Tribunal de Justiça de São Paulo. Garbi ainda prosseguiu: “o dano moral passível de ressarcimento é aquele que acarreta sofrimento além do normal e não o mero aborrecimento causado por atritos que normalmente ocorrem nas relações humanas.”

Não é uma visão isolada. Em 2016, Danilo Mansano Barioni, da Sétima Turma Cível, apontou:”Não será toda e qualquer situação de sofrimento, tristeza, transtorno ou aborrecimento que ensejará a reparação, mas apenas aquelas situações graves o suficiente para afetar a dignidade humana.”

Em  2007, no Superior Tribunal de Justiça, o ministro César Asfor Rocha, da Quarta Turma, deixou registrada mesma visão. Resumindo a experiência de um tribunal que é a segunda mais alta corte do país, escreveu que ” o  mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem ela se dirige”.

Longe das câmaras, o próprio Frota deu outra explicação sobre o espetáculo. Para surpresa de quem havia assistido a seu depoimento, ilustrado por uma jovem da plateia chamada para fazer o papel de mãe de santo, deu a versão de que era uma encenação de ficção, inventada para engordar a bilheteria de seus espetáculos.

“A história fez parte do meu stand up no ano passado”, disse. “É uma história contada em forma de piada, com humor, inclusive, funcionou bem na TV, mas no teatro não teve muito repercussão”. Supondo de que Alexandre Frota esteja falando a verdade, cabe lembrar que este argumento não o coloca no lado certo da história. Pode diminuir a gravidade de uma denúncia mas não equivale a um atestado de inocência.

Partindo do artigo 286 do Código de Processo Penal, que pune a incitação ao qualquer tipo de crime em locais públicos,  os ministros da Primeira Turma do STF  já fizeram uma discussão sobre “incitação à violência sexual” que define linhas claras para se entender casos semelhantes. Examinando, em tese, uma situação que pode ser comparada à descrita pela “ficção” de Frota, explicam que não é preciso cometer estupro para ser enquadrado e punido pelo 286 — pena de 3 a 6 meses de prisão. (A pena de estupro vai de 6 a 10 anos, podendo chegar a 12 em caso de lesão corporal da vítima).

Para os ministros do STF, “incitação” traduz  desprezo pela “dignidade sexual,” algo que todos tem obrigação de proteger. Também reforça e incentiva a “perpetuação dos traços de uma cultura que ainda subjuga a mulher, com potencial de instigar variados grupos a lançarem sobre a própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais.” Por essa razão, alegam os ministros, a incitação deve ser punida por “consubstanciar crime formal,” mesmo que não tenha se consumado.

A sentença contra Eleonora contraria  dois pontos que integram nossa melhor evolução jurídica. Ignora a necessidade de proteger a liberdade de expressão contra alegações abusivas de danos morais, muitas delas destinadas a silenciar qualquer tipo de crítica  indesejada por qualquer motivo, outras simplesmente destinadas a um aplique financeiro.

Lançada como um recurso retórico para confundir a discussão, a versão de que a confissão de estupro no programa de Rafinha não passava de uma ficção (“uma história contada em forma de piada”)  não é inteiramente inocente. A explicação pode ser verdadeira — não vamos pre-julgar ninguém, nem Alexandre Frota, tá? — mas está claro que não encerra o caso.

No degradante universo “carregado nos testículos,” falar em “incitação ao estupro”, como fez Eleonora, era pelo menos uma reação obrigatória.    

E aqui chegamos ao ponto essencial da sentença da juíza  Juliana Nobre Correia.

A magistrada poderia ter simplesmente mandado arquivar a ação, o que seria, a meu ver, a iniciativa mais coerente diante de uma queixa por danos morais envolvida por tantas complicações e incoerências. Na melhor das hipóteses, é um típico caso de “mero aborrecimento”, que não justifica a multa imposta.

Para chegar à condenação de Eleonora, a sentença contorna o assunto principal e realiza uma sequência de exercícios fora do lugar.

Para acolher o pleito de Alexandre Frota, Juliana Nobre Correia apoia-se num texto de 1997 do ministro Alexandre de Moraes, que entre a audiência no MEC e a sentença de Juliana Correia trocou o Ministério da Justiça por uma cadeira no Supremo, sempre por indicação de Michel Temer.

Moraes escreve em termos duros: “o art. 5, V,  não permite qualquer dúvida sobre a obrigatoriedade da indenização por dano moral e a cumulatividade com a indenização por danos materiais.”

Considerada sua discípula, Juliana Nobre Correia englobou e foi além. Disse na sentença que  “o direito de crítica somente é válido quando alicerçado em alguma ideia construtiva para o leitor ou para quem presencia a crítica.”

Reforçando uma mesma  noção, acrescentou: “o direito de crítica é admissível mas não é ilimitado.”

Seguindo este raciocínio, é bom observar que essas questões subjetivas sempre colocaram problemas insolúveis do ponto de vista democrático, que envolvem limites subjetivos às liberdades públicas, que costumam pavimentar o caminho para regimes autoritários.  

Segundo ditador da linhagem militar de 64, o general Costa e Silva não gostava de “críticas construtivas.” O  jornalista Elio Gaspari conta que, quando donos de grandes jornais tentavam amenizar o mau humor da caserna com a atuação da imprensa, dizendo que só publicavam “críticas construtivas,” Costa e Silva respondia que não estava interessado nisso: “Gosto de elogios”. Menos de dois anos  depois da posse de Costa na presidência, o país era jogado sob a treva do AI-5.  

Em períodos democráticos, onde a oposição é parte indispensável do jogo político, a sociedade define — por conta própria  — o limite à crítica. Aquilo que parece construtivo para uns será destrutivo para outros e vice-versa.

É natural que seja assim, pois vivemos em mundos heterogêneos, onde toda crítica trata de uma disputa pelo poder, de um confronto de ideias e projetos que dizem respeito aos interesses de um país inteiro. Se não fosse dessa forma, o prefeito João Dória teria de ser silenciado — ou estaria pobre de tanto pagar multa por danos morais — por óbvia vocação destrutiva toda vez que abre a boca para falar de Lula e o PT.

Em abril de 2017, quando Juliana Nobre Correia despachou a sentença contra Eleonora, a busca daquele único caso de direito de crítica considerado “válido” traduz uma preocupação que não tem a ver com estupro — real ou incitação — e na verdade, muito pouco com Alexandre Frota.

Em maio de 2016, a única frase deixada por Eleonora sobre a audiência é aquela que se encontra nos parágrafos iniciais deste texto.

Uma leitura atenta mostra que Alexandre Frota é  o personagem da frase, mas o alvo da crítica é Mendonça Filho: “Receber esse senhor me passa uma credencial péssima de quem está dirigindo a educação.” Eleonora sua a visita de Alexandre Frota para condenar o ministro — e não o contrário.  

No despacho, onze meses depois, a juíza considera que aqui se encontra a prova do crime de Eleonora, produzida no  “momento em que se constata que houve ataque à pessoa do requerente, com referência a situação de estupro envolvendo o autor em contexto que envolvia simples audiência aceita pelo Ministro da Educação para tratar de projeto relacionado à educação apresentado pelo autor.”

Para Juliana Nobre Correia, foi assim que “restou caracterizada situação de efetiva desvinculação da narrativa da autora em relação ao tema da visita do autor ao Ministro da Educação, de modo que nasce a possibilidade de reparação a título de danos morais.”

Tudo se justifica assim. 

Em nota na qual condena a sentença, a Frente Juízes pela Democracia recorda o essencial: “a liberdade de expressão é pedra basilar do nosso ordenamento jurídico, especialmente quando é exercida para a defesa dos direitos humanos. Coibir críticas a condutas lesivas aos direitos humanos é intimidar os que as denunciam, é favorecer a continuidade das violações.”

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6 Comentários

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  1. Não gosto de comentar assunto

    Não gosto de comentar assunto que considero mais pertinente a opinião de mulheres.   Mas tem hora que não dá para ficar quieto. Entristece-me ver feministas, vez em quando, cantando loas às migalhas que recebem. Exemplo da fantástica Matê da Luz no recente post sobre a agressão sofrida por Luiza Brunet. Não que estejam erradas, não é isso não, estão certas ! A tristeza é por elas estarem ainda lutando contra idéias inculcadas na cabeça de humano de qualquer sexo desde  Adão e Eva. Adão e Eva foram criados por Deus, nome próprio, MASCULINO, singular. Deus criou primeiro o HOMEM, só depois se lembrou de que ele precisava de companhia e tirou uma costelinha de Adão. Fico imaginando a hipótese de Eva ser criada primeiro, se Adão se sujeitaria ser apenas um apêndice, feito a partir de um osso de Eva, com a missão de fazer-lhe companhia. Considero este caso da Ministra Eleonora mais, muito mais grave, do que o da modelo. Difícil encontrar quem defenda o “lírio”. Neste caso a vítima é agredida por uma MULHER, que com o beneplácito de leis, tenta garantir uma espúria indenização a um HOMEM. E poderá, tudo dentro do juridicamente correto, ter a concordância de um Tribunal acima e de outro mais acima ainda. E se o Deus de Adão e Eva for convocado para um julgamento final, e se vier através de certas Igrejas fundamentalistas, certamente julgará colocando as mulheres no seu devido lugar, e que deixem o homem trabalhar, mesmo que seja em teatro pornô. 

    1. Faria bem em não comentar

      Não leva o menor jeito.

      Melhor ficar no seu devido lugar de homem que provindo da mulher não é capaz de entendê-la.

      A propósito, mulher que não gosta de discriminação não é feminista, é gente.

      Abraços

      1. Perdoe-me, Amoraiza, talvez

        Perdoe-me, Amoraiza, talvez eu devesse ter ficado calado mesmo. Talvez eu não seja capaz também de entender bem as mulheres, mas não pode me condenar por não tentar. E nessa tentativa fiquei surpreso que você também não tenha me entendido, interpretando que o que está escrito é o que penso. Não é o que penso não, é o que penso acontecer, as mulheres são submetidas a um jugo desde a criação do mundo. E é muito triste ver uma mulher condenada por outra para beneficiar, materialmente, um homem. E aprendi uma coisa, erro que não vou jamais cometer. Feminista pra mim, até hoje, tinha um sentido não pejorativo. Considerava ser de mulher forte, lutadora, não apenas gente. Gente até o Frota é. Reiterando meu pedido de desculpa, um grande abraço.

        1. Jugo

          Julga você que o amor é jugo.

          As mulheres só reproduzem os homens porque os amam e não são

          ” submetidas a um jugo desde a criação do mundo”

          A sorte do mundo é que a mulher ama primeiro antes de pensar e seu primeiro objetivo é ser feliz.

          O azar do mundo é que o homem só pensa e seu único objetivo é ter poder.

          Como esse é um assunto espinhoso e que mantém-nos divididos para melhor nos governar,

          vou aceitar suas desculpas em nome dos bons comentários seus que tenho visto.

          Abraços.

           

  2. Frota e a juíza

    Essa juíza de primeira instância que condenou Eleonora gosta de coisas feias, sujas e carecas.

    Tem as taras inconfensáveis dos “de comportamento decente e moral ilibada”

    Ruim se a Eleonora chegar até a última instância e encontrar um careca , porque o feio e sujo ela já encontrou.

    Já o alexandre, que deus me perdoe, reclamar de  “ter sido vilipendiado em seu patrimônio sagrado, o moral”, mente ESCANDALOSAMENTE!

    Ele, como trabalhador pornô, seu tem sagrado patrimônio coberto pela cueca, (se é que usa).

    O moral a que se refere, talvez seja algum comprimido que toma no se manter no exercício da profissão.

     

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