Ana Rosa e ‘Leila’: desaparecidas que inspiraram livro e canção

“Há mais ou menos um ano, ganhei de presente um livro que me lançou em uma jornada inesperada pela história recente do Brasil, da minha família e de uma música”.

Trata-se do romance político K, do escritor e acadêmico brasileiro Bernardo Kucinski.

O livro narra a busca desesperada de um pai por sua filha desaparecida política durante a ditadura militar no Brasil. É ficção, mas baseado em fatos verídicos – a desaparecida, Ana Rosa Kucinski, é a irmã do autor. A verdade sobre o desaparecimento de Ana Rosa vem emergindo aos poucos. Em 2012, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra confessou ter incinerado seu corpo em uma usina de processamento de cana.

Enquanto lia aquela história comovente e triste, me vi resgatando cenas do meu passado, ainda adolescente, crescendo em São Paulo.

Frases do meu pai. “Não fique em grupos na porta da escola depois da aula. Venha direto para a casa”.

Histórias da família. Por que mesmo o vovô foi preso?

E as músicas. Músicas que refletiam o clima daquele tempo, de segredos e meias verdades. Que traziam mensagens em códigos. Músicas que eu cantava, mas não entendia.

https://www.youtube.com/watch?v=xHd_B4Wx_u4

Entre elas, Aparecida, de Ivan Lins e Maurício Tapajós, incluída no álbum Somos Todos Iguais Nessa Noite, lançado em 1977. Não saía de minha cabeça enquanto refletia sobre a tragédia de Ana Rosa. Era como se a música tivesse sido feita para ela.

“Diz, Aparecida

Me conta por onde que você andou?

Me conta por que é que você

Não tem mais a mesma afeição

Não tem mais a mesma euforia

Não tem mais a mesma paixão?”

50 Anos do Golpe

A história de Ana Rosa me levou a sugerir um documentário de rádio para o Serviço Mundial da BBC que explicasse ao mundo o que foi o golpe de 1964. E mostrasse como o Brasil tenta, hoje, lidar com esse capítulo sombrio da nossa história. O documentário Brazil: Confronting the Past, em inglês, pode ser ouvido aqui.

Fui ao Brasil falar com Bernardo Kucinski e várias outras pessoas, inclusive meu próprio pai. Acabei me lançando em uma viagem sobre a história, nunca bem detalhada para mim, da minha família.

Descobri, por exemplo, que meu avô tinha sido preso duas vezes. A primeira, na década de 30, em Goiás.

Influenciado pelas ideias do líder comunista Luís Carlos Prestes, ele tinha se filiado a um partido de tendências comunistas.

Por causa desse “crime”, meu avô foi parar na prisão.

Ele foi preso por “algum governo ligado a ideologias nazistas”, meu pai contou. Foi amarrado e torturado sob guarda militar.

Meu avô sobreviveu, mas a vida em Goiás tinha ficado muito perigosa para ele. Temendo por sua vida, vendeu suas terras às pressas e se mudou com a família para Minas Gerais. Perdeu tudo o que tinha. Nunca mais quis se meter com política.

No entanto, 30 anos depois, o passado comunista voltou a assombrar a vida da família.

Em 64, quando o golpe militar estourou, meu avô foi preso novamente.

Ele não foi torturado dessa vez, mas aquela experiência de violência, tortura, perseguição e empobrecimento ficou marcada nele e na nossa família. Era como um trauma silencioso.

Entrevistei ainda brasileiros que hoje tentam ajudar o país a superar o trauma da ditadura e seguir em frente.

Entre eles, o presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Ivan Seixas. Os psicanalistas Moisés Silva e Cristina Ocariz, que estão oferecendo apoio psicológico às vítimas da violência do Estado durante o governo militar.

Veroca Paiva, filha do deputado Rubens Paiva, que investigava o envolvimento dos Estados Unidos no golpe. Paiva foi torturado e morto pela ditadura. Até hoje seu corpo não foi encontrado.

Falei com tanta gente. Nem todos entraram no corte final – o velho e dolorido dilema do jornalismo – mas suas vozes estiveram comigo em minha jornada.

Finalmente, entrevistei o general de brigada, hoje na reserva, Durval Andrade Neri. Orgulhoso do golpe, o general defendeu e justificou a ditadura militar.

Trilha Sonora

Enquanto mergulhava nas histórias da minha família, de Bernardo Kucinski e de tantos outros, entrelaçadas na história do meu país, a canção Aparecida continuava a tocar na minha cabeça.

“Diz, Aparecida

Sumir desse jeito não tem cabimento

Me conta quem foi, por que foi

E tudo o que você passou

Preciso saber seu tormento

Preciso saber da aflição”

Quem seria essa Aparecida que – hoje me dou conta – era na verdade uma Desaparecida?

Procurei Ivan Lins. Ocupado, em turnê, ele não achava tempo para falar comigo.

Falei com João Lins, filho de Ivan. Simpático, orgulhoso do pai. Mas não conhecia a história por trás da canção.

Maurício Tapajós, autor da letra, já não está entre nós.

Decidi procurar Heloísa Tapajós, esposa do irmão de Maurício – o compositor Paulinho Tapajós. Quem sabe o Paulinho conhece a história? – pensei.

Para minha tristeza, descobri que Paulinho – com quem, por sinal, trabalhei em 2007, quando gravei uma canção dele – também havia partido.

Que aflição. Não é possível que desapareça também a história por trás da música.

Apelei novamente ao Ivan. E dessa vez, fui recompensada com uma história de superação.

“Essa canção foi escrita em 1976. A ideia foi do Maurício. Ele me falou de uma amiga dele que tinha desaparecido por uns quatro anos, presa pela repressão, e que tinha reaparecido. Como foi brutalmente torturada, trazia sequelas do vandalismo repressor”, escreveu Ivan Lins, em um e-mail.

Três anos depois de comporem a canção, Maurício e Ivan viajaram para o casamento de um dos músicos da banda em Alfenas, Minas Gerais. E foi lá que Ivan conheceu a “desaparecida”.

“O Maurício me apresentou. Ainda bonita, com grandes olhos verdes. Seu nome era, se não me engano, Leila – não posso afirmar com certeza”.

“Ainda a encontrei mais uma vez, num evento (não lembro qual). Depois, nunca mais”.

“E essa é a historia. Posso ter errado um pouquinho as datas, mas foi bem perto disso”, concluiu Ivan Lins.

Aparecida não ficou tão conhecida como outras faixas do LP Somos Todos Iguais Nessa Noite.

Porém, quatro décadas depois, quando a Comissão da Verdade se esforça para recuperar a memória de um tempo de trevas na história do Brasil, me soa ainda mais bela e comovente. E não poderia ser mais relevante e atual.

“Diz, Aparecida

Diz, conta o segredo

Diz e denuncia

Que a verdade escondida

É mentira, é medo”

E por onde andará Leila? E quantas outras histórias deste doloroso período da nossa história se mantêm anônimas?

Redação

2 Comentários

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  1. Os relatos sobre as marcas

    Os relatos sobre as marcas deixadas pelos torturadores da ditadura militar nos corpos de suas vítimas são tão intensos que o primeiro reflexo que nos atinge é o de revolta. Nos sentimos perdidos por não conseguirmos aceitar que chegaram a tanto, que os monstros conseguiram deitar as sequelas de forma tão definitivas. Percebemos, então, que as chagas encravadas nos corpos não curam jamais. Assim como um carro que tem tração apenas em uma roda dianteira tende a sempre andar em círculos, as vítimas carnais da ditadura têm de conviver com marcas tão dolorosas e circunstâncias de um passado tão trágico que o esforço para se manterem em frente é por demais extenuante. Suponho que um dos muitos inconformismos que sentem é o provocado pelo fato dos torturadores estarem livres, leves e soltos, com ares de escárnio quando são confrontados com seus crimes brutais, mantendo um sorriso cínico e desdenhando de suas vítimas. Esses monstros podem se dar ao luxo de manterem esse tipo de atitude, pois estão e sempre continuarão impunes, o que os enche de prazer. Confiam no Poder Judiciário que está lá, sempre pronto para abonar os seus crimes.

     

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