“Cordão da Mentira” coloca frente à frente ditadura de ontem e de hoje

Foi diante da sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), local símbolo da repressão do Estado durante o regime Civil-Militar contra os movimentos sociais, que quase dois mil ativistas se reuniram, na noite deste 1o. de abril. O ato, chamado “Grande Desfil&scracho do Cordão da Mentira”, começou a tomar forma por volta das 18h, no Largo General Osório, no centro antigo de São Paulo. Com samba e batucada, o grupo protestou não apenas contra as iniciativas de “comemoração” aos 50 anos do Golpe que afundou o país em 21 anos de ditadura, mas contra o legado que ainda perdura – principalmente contra o subúrbio, os negros e os pobres.

“A Ditadura acabou, mas esqueceram de avisar a polícia”, bradou Débora Maria da Silva, representante do Movimento Mães de Maio, grupo criado como resposta a uma série de chacinas ocorridas em São Paulo em maio de 2006, e que tenta por fim à tática policial da “resistência seguida de morte”. O discurso emocionado marcou a abertura do ato, ainda durante a concentração. Entre músicas e palavras de ordem, os participantes traziam informações referentes aos números de mortos nas periferias e as táticas mantidas pelas forças repressivas do Estado, nos tempos democráticos.

Em entrevista à reportagem após o discurso, Débora Maria da Silva disse ainda que o Cordão “lava a alma” e “desmascara a mentira”. “As Mães de Maio vêm aqui como símbolo da falsa democracia”. Além da desmilitarização das polícias, Débora afirma que é necessário haver uma reforma do Poder Judiciário. “O [Poder] Judiciário é um dos que perpetuam a impunidade. Ele não age com um revólver que sai bala, mas sim com uma canetada”, afirma. Além disso, ela diz que as principais vítimas da polícia militarizada são pobres, negros e moradores das periferias, pois o Brasil é “produtor de Mães de Maio”. “Estamos fazendo o escracho e dizendo ‘nós estamos vivos, nossos mortos têm voz e estamos aqui para lutar por eles’”, diz.

Débora Maria da Silva, representante do Movimento Mães de Maio (foto: Mário Bentes).

Ancestralidade”

“Podemos ir além e dizer que estão aqui também toda uma geração de ancestralidade. O genocídio nesse país não começou nem em 64, nem em 2006, ele é histórico, ele é da fundação dessas terras, desde os povos negros, os povos indígenas que sofreram. A história desse país deve ser contada pela luta dos povos e sua resistência, não pelas suas derrotas. Adolescentes cumprindo medida socioeducativa em unidades da Fundação Casa, em São Paulo, são constantemente agredidos, castigados e torturados”, afirmou Ruivo Lopes, também durante discurso.

“Numa recente tentativa de fuga, dois adolescentes foram encontrados mortos no Rio Tietê. Foi em 2014, não foi em 1964. Cláudia Silva Ferreira foi baleada por policiais militares no Morro do Congonha, onde morava. Mal socorrida na viatura, seu corpo foi arrastado e esfolado por 350 metros. Os policiais militares envolvidos na morte de Cláudia têm histórico de execuções sumárias e violência policial. Foi em 2014, mas poderia ter sido em 1964”, prosseguiu.

Quem também discursou foi Alípio Freire, jornalista, ex-preso político e diretor do documentário “1964 – Um Golpe Contra o Brasil”. Ele afirmou que o “terror do Estado” no país é antigo, estando presente em diversas épocas da história, como na Colônia, Império e República, e toma como “fundamental” a desmilitarização das polícias. “Nós sabemos que, desde o fim da ditadura até hoje, milhares de brasileiros foram assassinados nos campos e nas cidades. Nenhum assassinado nos Jardins, no Pacaembu, em Higienópolis ou no Morumbi”, diz.

A Rua General Couto de Magalhães foi rebatizada: Rua Carlos Marighella (foto: Mário Bentes).

Contra a mentira

Reiterando os discursos abertos, Thiago Brandimarte Mendonça, um dos organizadores do ato, também falou com a reportagem. “A força do cordão, está na forma como ele sai nas ruas. A batalha a partir da estética para ressignificar a política. Isso é tão poderoso que faz com que os grandes meios de comunicação prefiram ignorar o cordão, mesmo com milhares de pessoas nas ruas, semanas depois de dar uma ampla cobertura a uma esvaziando marcha de maníacos pedindo um novo golpe”.

Colocar frente à frente as ditaduras – a de 1964 e as que persistem até 2014 – é outro objetivo do ato realizado pelas ruas de São Paulo. “A força do cordão é de dizer que a ditadura não acabou e não vai acabar enquanto não enfrentarmos de frente os grupos econômicos e políticos que foram vitoriosos em 64 e que continuam no poder. Não enfrentarmos a forma como se manifesta a violência do Estado, que serve para manter o status quo”, conclui.

Escracho pelas ruas

Após a concentração no Largo General Osório, no centro antigo da capital, no Memorial da Resistência, o grupo seguiu pelas ruas ao som de samba e batucada, passando pelo 3º Distrito Policial e Largo do Paissandu – neste ponto, um momento de tensão: parte do grupo gritou palavras de ordem a um grupo de PMs que estava a postos em duas viaturas. Os policiais não reagiram, e, em seguida, entraram nas viaturas e saíram do local – para frenesi do grupo.

Ao longo do trajeto, os ativistas e foliões fizeram várias intervenções artísticas com forte teor político. A rua General Couto de Magalhães, por exemplo, foi rebatizada com o nome de Rua Carlos Marighella – nome de um dos líderes da resistência contra a Ditadura Civil-Militar no país, e que acabou morto em 1969 em uma emboscada.

Nomes como “MC Daleste”, funkeiro de apenas 20 anos que foi assassinado durante um show em Campinas, no ano passado; “Vladimir Herzog”, torturado e assassinado pela Ditadura, “Cláudia Silva Ferreira”, a moradora do Morro do Congonha que foi baleada pela PM e ainda teve o corpo arrastado por 350 metros. Todos eles foram grafados nas ruas e faixas de pedestres, como protesto contra a violência policial.

Ativistas grafaram o nome de vítimas das ditaduras (foto: Mário Bentes).

Tentativa de intimidação

Após a passagem do grupo pela Praça da República, de acordo com Thiago Brandimarte, houve o que ele classifica de tentativa de intimidação “ostensiva e desnecessária” por parte da Tropa de Choque da PM, que passou a acompanhar o grupo a parti dali. “Respondemos formando um cordão de proteção a todos os manifestantes/foliões. Cordão que dançava e cantava em resposta à violência do Estado. Postura contrária à que a polícia teve na Marcha da Família, onde desfilaram juntos. A lógica era causar medo, mas ao contrário, fortaleceu o sentido de estarmos nas ruas”, disse.

Ainda assim, a adesão foi grande, tomando mais corpo à medida em que o grupo andava. Thomaz Barbeiro Gonçalves, de 24 anos, estudante de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), diz que o Cordão da Mentira tem a potencialidade de trazer a questão da violência estatal ocorrida no passado, na ditadura militar, e no presente, no assassinato de jovens pobres, negros e periféricos. “A estrutura do Estado existe desde a época da ditadura civil-militar, que mantém as desigualdades muito fortes. A violência da periferia aumentou, mas muito em consequência pelo fato de não haver punição aos torturadores no passado”, afirma.

A instrutora de informática Sara Maria da Silva, 35, diz que ficou sabendo do evento através de um amigo, no Facebook. Para ela, o Cordão significa um protesto das camadas marginalizadas da sociedade. “O Cordão da Mentira é um basta do povo cansado, lutador, guerreiro, oprimido, do gueto, da favela, negro, GLS, o povo que corre pra ter o mínimo de dignidade e que está cansado de toda essa presepada que está ocorrendo em nossa política hoje”, conta.

O ato terminou por volta das 22h, após ainda passar pelo Elevado Costa e Silva, Rua Maria Antônia, ruas Sabará e Piauí e encerrar à frente da sede do enfraquecido grupo da TFP – Tradição, Família e Propriedade, organização que foi um dos pilares que ajudaram a formar o cenário do Golpe.

Redação

1 Comentário

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  1. “repressão do Estado durante

    “repressão do Estado durante o regime Civil-Militar contra os movimentos sociais” não eram contra movimentos socias eram contra comunistas e somente .

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