De apaziguador, Geisel passa a comandante do extermínio da ditadura

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Após a análise geral do GGN sobre estes arquivos, a série “Relações Internacionais dos Estados Unidos” revela sistemática comunicação avançada dos EUA em governos ditatoriais pelo mundo e táticas de violações de direitos humanos
 
 
Jornal GGN – As linhas da história brasileira devem mudar a partir de agora. Denominado até então como o apaziguador da ditadura do regime militar no Brasil, o general Ernesto Geisel, que esteve ao mando entre 1974 e 1979, ordenou o extermínio e a tortura um mês após assumir o país, quando decidiu com o então diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), general João Baptista Figueiredo, a tática para a manutenção das violações de direitos humanos. 
 
Segundo a apuração do GGN nos arquivos da CIA, os documentos foram abertos publicamente pelo Departado de Estado Americano em 2015, mas a boa parte deles publicados em formato de série em 2017, com volumes divididos em categorias e governos norte-americanos, desde a gestão de Richard Nixon a Gerald Ford. Outros nove arquivos foram divulgados este ano, sobre relações internacionais pelo mundo. E há o planejamento para novas publicações neste e nos próximos anos.
 
São dezenas de volumes que expõe, detalhamente, os relatórios da CIA, feitos mensal ou anualmente, com a ajuda de embaixadores dos Estados Unidos nos países e informes de reuniões. As transcrições destes encontros e a comunicação por correspondência também foram divulgados na mesma série.
 
Mas foi um, em especial, que chamou a atenção da imprensa brasileira nesta semana. O pesquisador da FGV, Matias Spektor, divulgou em suas redes sociais que a leitura de determinado arquivo das documentações da CIA “é o mais pertubador” que ele já havia lido em 20 anos de pesquisa.
 
“Recém-empossado, Geisel autoriza a continuação da política de assassinatos do regime, mas exige ao Centro de Informações do Exército a autorização prévia do próprio Palácio do Planalto”, informou Spektor, no Twitter, com o link para a publicação.
 
Trata-se de uma pequena porção de todas as revelações da CIA desde 2015, que, aos poucos, vão saindo da escuridão dos arquivos das ditaduras pelo mundo. Após a análise geral do GGN sobre estes arquivos, a série “Relações Internacionais dos Estados Unidos” revela um cenário, como um todo, de uma sistemática comunicação avançada e parcerias de governos ditatoriais com o setor de inteligência norte-americano. 
 
Não se trata, apenas, de compartilhamento bilateral de informações entre os países, com consecutivas graves violações de direitos humanos. Mas uma grande organização esquematizada, com acompanhamento e fiscalização assíduos, e petições dos Estados Unidos sobre estes governos. Não seguir tais demandas dos EUA, vistas como obrigações por estes países, implicava em medidas econômicas, com o fechamento de relações comerciais, por exemplo.
 
Para se ter uma ideia do conteúdo bibliográfico do material divulgado pela CIA, o pequeno trecho exposto pelo pesquisador gerou repercussão em todos os jornais do país. De abrandador da ditadura do regime militar, o general Ernesto Geisel aparece como o comandante do extermínio e da tortura no período.
 
Os quatro parágrafos divulgados pela CIA são trechos do memorando que relata o encontro entre Geisel, o então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), João Batista Figueiredo, e os generais Milton Tavares de Souza e Confúcio Danton de Paula Avelino, então chefes do Centro de Inteligência do Exército (CIE).
 
Era o primeiro mês do governo Geisel, e o general Milton, que comandava o Centro de Inteligência durante o comando de Emilio Garrastazu Médici, “delineou o trabalho da CIE contra o alvo subversivo interno”. “Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e disse que métodos extra-legais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos. A este respeito, o General Milton disse que cerca de 104 pessoas nesta categoria foram sumariamente executadas pela CIE durante o ano passado, aproximadamente”.
 
Os métodos “extra-legais” eram as torturas, execuções e graves violações de direitos humanos. As 104 pessoas foram mortas em decorrência dessas violações no último ano do governo Médici.
 
“Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade”, trouxe o memorando. Mas em resposta a isso, Geisel inicialmente “comentou sobre a gravidade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre se ele deve continuar”. 
 
A decisão do então presidente ditador foi de “que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados”. E iniciou-se uma política de execuções, em que os alvos foram consultados diretamente e antecipadamente pelo então mandatário.
 
“O Presidente e o General Figueiredo concordaram que, quando a CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe da CIE consultará o General Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O Presidente e o General Figueiredo também concordaram que a CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral da CIE será coordenado pelo General Figueiredo”, concluiu o memorando.
 
O documento foi retirado do Escritório do diretor de inteligência da Cia, no setor “Assunto dos Arquivos: Job 80M01048A, Caixa 1, Pasta 29: B – 10: Brasil. Segredo”.
 
Em reação a essa divulgação, o advogado Pedro Dallari, que foi o último coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), disse que se tratava de um documetno “estarrecedor”, “porque descreve com minúcia uma conversa que evidencia práticas abjetas e que um presidente da República com sua equipe tratou do extermínio de seres humanos”, disse ao G1.
 
“O documento apenas comprova aquilo que a Comissão da Verdade já havia apurado e consta no relatório. As graves violações foram conduzidas pelos governos militares. Foi uma política estabelecida e conduzida pelos gabinetes presidenciais”, continuou, ensejando que as Forças Armadas devem reconhecer “a responsabilidade institucional pelo que houve no passado”.
 
“As Forças Armadas têm que vir a público para dizer: ‘Isso aconteceu’. Têm que superar a argumentação que foram casos isolados e sem coordenação. Têm que vir à luz para reconhecer que ocorreu, não deveria ter ocorrido e não vai mais ocorrer”, concluiu.
 
Ainda sobre os trabalhos da Comissão da Verdade, na data de hoje relacionados à revelação da mensagem, foram 89 os executados ou desaparecidos por motivos políticos, segundo o relatório da CNV, que se enquadrariam então nessa “categoria” de alvos determinados pelo governo do general Ernesto Geisel.
 
 
 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

11 Comentários

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  1. Mais um ataque à soberania nacional

    Trechos do artigo de Fernando Rosa:

    https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/para-fernando-rosa-ataque-extemporaneo-a-geisel-pretende-evitar-que-setores-do-exercito-defendam-a-soberania-nacional.html

    O que incomoda o comando externo do golpe, levando seu braço midiático interno a explorar esse tipo de informação, totalmente extemporânea, e a CIA a se expor dessa maneira?

    É apenas uma vacina preventiva contra algum sopro de nacionalismo nas casernas, ou identificaram algo mais grave no “céu de brigadeiro” do golpe?

    (…)

    Atacar Ernesto Geisel é investir contra a memória de nacionalismo, desenvolvimentismo e compromisso com a infraestrutura nacional das Forças Armadas brasileiras.

    É afrontar a história do período em que o país mais investiu na Petrobras e construiu as bases da Eletrobras, agora sendo entregues vergonhosamente aos interesses externos.

    O objetivo da divulgação da informação nada tem a ver com “denúncia” de atos criminosos da ditadura, defesa dos direitos humanos ou, ainda, da democracia.

    Trata-se apenas, novamente, de “fake news” diversionista do jornalismo de guerra alinhado à CIA para tentar paralisar, nos setores patrióticos e dentro das Forças Armadas, qualquer movimento de defesa da soberania nacional.

    1. Mais um ataque a soberania nacional
      Perfeito!
      Geisel era nacionalista!

      Mas talvez o tiro da CIA saia pela culatra, afinal os militares podem começar a acordar e ver que o vilão é o tio Sam.

  2. Vendo os jornais…

    Depois da divulgação destes papéis da CIA e vendo hoje alguns jornais mundo a fora, conclui-se que o Brasil virou um saquinho vagabundo de supermercado, cheio de água vazando por todos os lados e cada vez mais. Muito rapidamente estará vazio e sem importância alguma.

  3. Como dizia o Brizola: a Globo

    Como dizia o Brizola: a Globo foi o sustentáculo da Ditadura. Portanto, todos esse crimes têm também as digitais do Roberto Marinho e de seus jornazistas. Esses caras tinham o Domínio dos Fatos. Pegar trechos de reportagens, entrevistas e notícias publicadas na mídia cúmplice dos assassinatos é como um soco estômago, dá vontade de vomitar.

  4. Nossa, que novidade!

    Ruim mesmo é a chamada do texto: De apaziguador a exterminador.

    É mesmo?

    Alguém algum dia imaginou que geisel teve um papel diferente (“apaziguador?”) no regime assassino?

    Vou repetir:

    – 1976: Morte da Manoel Filho;

    – 1975: Morte de Vlado;

    E tome mais “abertura”:

    – 1980: Atentado a OAB;

    – 1981: Caso Riocentro;

    Isso é o que apareceu ou veio à tona.

    Esse é o período de “distensão” inaugurado por geisel e figueiredo!

    Quem acreditou nessa patacoada?

    Acho que quem acredita nisso são os mesmos que acreditam que o stf tem solução, que somos um povo inclinado a democracia, e que não somos racistas, nem violentos, ou que as eleições trarão o país de volta…de volta a quê mesmo?

     

    1. Não foi uma mentira

      Geisel nunca foi um apaziguador, mas não é mentira que a linha dura do regime desejava sua deposição, por não considera-lo violento o suficiente. Sabe-se lá qual seria nosso destino se ele fosse substituído pela turma do Frota. Figueiredo pelo menos era um bobalhão, o que facilitou a derrocada do regime.

  5. Ditadores e imperialistas

    Qual a razão, o motivo de os EUA divulgar estes papéis? Que  país que tem tal atitude? A Rússia soviética  ou a de Putin(uma república democrática) irá algum dia abrir seus arquivos , mesmo que parcialmente, como os americanos?

  6. Nassif, 
     
    Duas informações

    Nassif, 

     

    Duas informações sobre o Spektor (que divulgou isso): é membro do Council of Foreign Relations (CFR) e escreveu recentemente artigo atacando o Almirante Othon. 
    Não sejamos ingênuos. 
    Procurem saber quem é o cara que está divulgando isso aí.

     

  7. Tem caroço nesse angú

    Interessante a transcrição dos diálogos entre Geisel, Tavares, Danton e Figueiredo. O americano estava lá gravando ou taquigrafando? Era conviva contumaz? Voltou para registrar após os 2 dias de reflexão do Geisel? Dá pra imaginar a estupidez dos generais de tratar um assunto cabeludo desse na presença de estrangeiro? Sei não. Tambem não acreditava nas armas quimicas do Sadam e ví a palhaçada dos gases mortíferos do Al Assad. Americano inventa muito.

  8. Sacrificando a torre para salvar a rainha
    Muito estranha essa “revelação”. A estória provavelmente é verdadeira, mas porque a CIA revelaria isso agora, mais de 40 anos depois, exatamente em um momento crucial para o Brasil como esse, quando estão se definindo os candidatos?
    Essa notícia enfraquece a candidatura do Bolsonaro, visto que ele tem forte associação com a ditadura militar. Por mais que eu seja anti-bolsonaro, acho esse movimento estranho.
    A direita precisa se unir em torno de um candidato forte, com boas chances de vitória. Apesar dos bolsominions serem muito barulhentos, alguns direitistas mais astutos já perceberam que o “mito” não tem chances reais de ganhar, porque sua rejeição é muito grande.
    Essa jogada parece ter como objetivo enterrar a candidature do Bolsa, na tentativa de unificar a direita em torno do Alkmin, que tem menos rejeição.

  9. Boa noite, Pessoal
     
    Isso é o

    Boa noite, Pessoal

     

    Isso é o melhor exemplo do que possa se entender por “Domínio do Fato”!

    Abraços.

     

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