Histórico de Perus: “Não é mais possível viver com fantasmas do passado”

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Depois de passar por três universidades e vinte e quatro anos de descaso, mortos da ditadura brasileira enterrados em Perus terão respostas
 
 
Jornal GGN – A maior vala clandestina do Brasil foi encontrada em 1990. Localizada em São Paulo, no cemitério Dom Bosco, em Perus, foram desenterrados de lá 1.049 sacos com ossos, entre os quais estavam mortos e desaparecidos da ditadura brasileira (1964-1985). Desde que foram encontrados, somente agora, vinte e quatro anos depois, os corpos poderão ser identificados.
 
Além de retroceder a um dos momentos mais obscuros da história do país, falar em ossadas de Perus também remete aos anos de negligência em que o Estado teve chances para reparar os erros do passado. Os restos mortais de desaparecidos políticos e de pessoas pobres e indigentes, assassinados pelo esquadrão da morte naqueles anos, percorreu três universidades brasileiras, além de perícias da polícia científica do Instituto Médico Legal (IML).
 
“Sabemos que o foi feito antes não deu muitas respostas. O tema agora é que essa virada tem que ser a última virada! Não podemos dar o luxo de seguir voltando ao mesmo todo tempo”, enfatizou o antropólogo peruano José Pablo Baraybar, ao Jornal GGN
 
E o que foi feito começou na Universidade de Campinas (Unicamp), o primeiro local a que os remanescentes ósseos foram levados. Sob coordenação do médico legista Fortunato Badan Palhares, as ossadas seriam organizadas, catalogadas e periciadas, para se chegar às identificações. A falta de profissionais capazes de identificar corpos no Brasil fez a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos solicitar a ação de um grupo de antropologia forense argentina, o que foi negado pela Unicamp. 
 
Chegada das ossadas de Perus na Unicamp, em 1990“Ficou claro que no passado a falta do trabalho conjunto com profissionais estrangeiros e com os familiares é que fez com que a experiência não tivesse sido bem sucedida. No Brasil, hoje, nós não temos essa visão de que o trabalho de identificação não pode se dar só do ponto de vista da medicina forense, é preciso dos historiadores, antropólogos, é um trabalho conjunto. Essa visão nós não tínhamos”, explicou a reitora da Unifesp, Soraya Smaili. 
 
A partir daí, uma sucessão de erros de Badan Palhares na confirmação dos desaparecidos, denúncias de descaso e falta de cuidado no manejamento dos materiais por sua equipe fizeram os familiares pressionarem a Comissão por respostas, pedindo o afastamento de Badan. Mas as ossadas ficaram na Unicamp por sete anos. Nesse tempo, o trabalho resultou em seis identificações: Dênis Casemiro (1946-1971), Sônia Maria Lopes de Morais Angel (1946-1973), Antônio Carlos Bicalho Lana (1949-1973), Frederico Mayr (1948-1972), Helber José Gomes Goulart (1944-1973) e Emanuel Bezerra dos Santos (1943-1973).
 
O material chegou a ser enviado para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que se prontificou a ajudar nas perícias, mas nada encontrou. Em 1997, já de volta à Unicamp, sob o comando do legista Eduardo Zappa, o trabalho se deu por encerrado. O Ministério Público Federal encontrou as ossadas em estado de extrema precariedade.
 
Chegada das ossadas de Perus na Unicamp, em 1990Foi quando o MPF interveio e conseguiu que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo transferisse as ossadas de três pessoas suspeitas de serem desaparecidos políticos para o Instituto Médico Legal da Universidade de São Paulo (USP) – Instituto Oscar Freire, em 2001. Sob a coordenação do legista Daniel Muñoz, mais um período sem respostas. Foi também nesse momento que os corpos passaram pela Polícia Científica de São Paulo, com a superintendente Norma Bonaccorso e o diretor Celso Perioli. E mais silêncio.
 
O restante dos remanescentes ósseos foi encaminhado ao columbário do Cemitério do Araçá, em São Paulo, para serem examinadas posteriormente. Lá, permaneceram até 2014.
 
O passado de omissões trouxe consequências para o atual Grupo de Trabalho de Perus. “Quando se trabalha com ossos que foram exumados de maneira correta e estão bem preservados, certamente é mais fácil. O problema é quando tem mescla, ou quando a recuperação foi deficiente. E sabemos que a recuperação de Perus foi muito deficiente. Há partes que não estão, há partes de outras pessoas que foram mescladas, e tudo isso complica muito o assunto. É um desafio!”, disse o antropólogo José Pablo.
 
“No meu entendimento são vários fatores, e talvez teve uma parte de um certo descaso, descaso não digo, digo falta de prioridade do tema. O Estado não tratou com o cuidado devido, por um lado. Por outro, não cuidou talvez porque não soube lidar com a complexidade do problema”, afirmou o secretário de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo, Rogério Sottili, que lembra que, se antes o MPF era apenas um agente fiscalizador, hoje é um órgão fundamentalmente atuante, como coordenador do processo do Grupo de Trabalho de Perus. “Começa a mudar quando o prefeito Haddad assume o compromisso, isso foi um ponto de apoio importante”, completa.
 
A atuação do secretário também foi decisiva. Depois do episódio de novembro de 2013, em que vândalos destruíram parte do ossário do cemitério do Araçá, após uma homenagem a desaparecidos políticos realizada no dia Finados – ainda que não tenha prejudicado os corpos de Perus, o ato deixou muita desconfiança –, Sottili ligou para a então ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Maria do Rosário, para o presidente da Comissão da Verdade, José Carlos Dias, e para o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo e definiu: “ou a gente enfrenta de uma vez por todas a identificação das ossadas de Perus, ou a gente vai ver essa situação que aconteceu hoje se reproduzir”. 
 
Com a posse da ministra Ideli Salvatti, o elo entre o governo federal, a prefeitura de São Paulo e o Ministério Público Federal foi se sedimentando, até possibilitar a estrutura acompanhada hoje pela equipe multidisciplinar do Grupo de Trabalho.
 
“Nós estamos abrindo as caixas agora, então a gente não sabe exatamente o que vamos encontrar. Mas é importante olharmos para frente”, falou o médico legista e geneticista forense Samuel Ferreira, coordenador científico do grupo.
 
“Eu acho que o Brasil está vivendo um novo momento que quer dizer o seguinte: chegou a hora de virar essa página da história! Não é mais possível a gente viver com fantasmas de generais de reserva, se pronunciando a cada semana sobre uma barbaridade e amedrontando o Estado. Isso não é mais possível! Até porque, se a gente não contar essa história e não enfrentar essa verdade vamos ficar sobre fantasmas de pessoas que estão a beira de desaparecerem”, respirou Sottili.
 
***

Acompanhe o vídeo:

https://www.youtube.com/watch?v=h4bHatFM68Y&feature width:700 height:394

Imagem e edição: Pedro Garbellini

Entrevista concedida a Luis Nassif, Patricia Faermann e Pedro Garbellini

Leia as próximas reportagens da série “Ossadas de Perus, a difícil transição”.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

4 Comentários

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  1. Ossadas de Perus

    Ha anos ouvi de um ex-administrador do Cemiterio de Vila Formosa, que ali tambem existem ossadas de “subversivos”, desde a decada de 70, embaixo dos eucaliptos ali plantados na mesma epoca.

  2. Ossadas de Perus

    Ha anos ouvi de um ex-administrador do Cemiterio de Vila Formosa, que ali tambem existem ossadas de “subversivos”, desde a decada de 70, embaixo dos eucaliptos ali plantados na mesma epoca.

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