Identificação das ossadas: “Perus é um tema do presente”

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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São pelo menos 39 desaparecidos políticos entre mais de mil corpos encontrados na vala clandestina. Grupo de Trabalho dependerá de atuação criteriosa e alinhada.

Jornal GGN – Diante de 1.049 caixas que guardam remanescentes ósseos de desaparecidos da ditadura, o Grupo de Trabalho Perus já sabia, desde as primeiras reuniões, o desafio que teria que enfrentar, e que muitas perguntas só seriam respondidas ao longo do processo.

Além de inédita no Brasil, a mobilização da equipe multidisciplinar responsável pela identificação dos corpos – descobertos em 1990, na vala clandestina de Perus, no cemitério Dom Bosco – requer estreito alinhamento para suportar o peso da responsabilidade: familiares esperam uma resposta há mais de vinte anos.

Leia mais: Perus: o desafio de resgatar os mortos sem identidade

Integrar áreas tão distintas, como historiadores e antropólogos, sociólogos e geneticistas, é apenas um dos desafios. Chegará o momento em que terão que definir prioridades. “Perus não é um tema do passado, Perus é um tema do presente”, resumiu o antropólogo José Pablo Baraybar, ao GGN. “É muito complicado separar, no caso de Perus, os desaparecidos políticos dos demais. Porque são todos cidadãos brasileiros, todos! E talvez não!”, expressou o perito.

Também em entrevista exclusiva, Rogério Sottili, secretário de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura de São Paulo, estimou um mínimo de 39 desaparecidos políticos que tiveram seus corpos abandonados na vala de Perus. “Mas as outras ossadas também são do período da ditadura militar, de pessoas pobres, indigentes, que também foram assassinadas pelo esquadrão da morte, pelo mesmo método da ditadura, e que ainda hoje persiste na periferia de São Paulo”, disse, enfatizando que identificar essas pessoas é “questão de direitos humanos”.

José Pablo expressou a dificuldade de, entre mais de mil caixas, encontrar essa lista de quase 40 pessoas que têm nome e sobrenome. “Tudo que está aqui é Perus. É como uma urna do passado. Pouquíssimas são as pessoas que têm algo que as identifiquem automaticamente: um dente de ouro, um marca passo, etc. Não é apenas pegar o DNA e pronto! Tem que ser um processo comparativo, se não, nada identifica”, disse, explicando que é preciso fazer um cálculo de probabilidade entre a amostra do corpo e a de um antecedente.

E nesse processo, a comparação está em todas as etapas, incluindo o trabalho ante mortem, no qual historiadores e arqueólogos do comitê científico são como “ratos de biblioteca”, descreveu José Pablo, levantando todas as informações das pessoas enquanto estavam vivas, de possíveis indícios de morte até estatura, sexo e idade. Fotografias, entrevistas com familiares, prontuários médicos, fichas odontológicas, tudo é utilizado. “Havendo uma coincidência, temos mais um passo adiante”, disse o médico legista e coordenador científico do grupo, Samuel Ferreira.

“A identificação humana pode ser trabalhada por vários métodos, por odontologia, antropologia, genética, impressões digitais, e não existe um que seja melhor. Na realidade, o melhor método é aquele que se tem a informação”, contou Samuel.

O médico e geneticista forense explicou como o processo é feito. No caso de identificação por DNA, coleta-se material ósseo ou dentário, dependendo das condições do corpo. Esse material é comparado com o banco de perfis genéticos, trabalho de responsabilidade da equipe ante mortem. Também pode ser feita por odontologia, se houver informações da arcada dentária de determinada pessoa enquanto viva.

O resultado deste trabalho depende das condições em que as ossadas se encontram, da afinação entre as diferentes equipes do Grupo de Trabalho de Perus, dos procedimentos criteriosos adotados pelos profissionais e de situações nem sempre controláveis. “Por melhor que seja um perfil genético de um resto mortal antigo, se não tiver os dados de familiares, não consegue a identificação. Por isso a importância desse equilíbrio e de buscar as informações ante mortem e pós mortem”, afirmou Samuel.

O segundo passo é identificar, além do desaparecido, a causa de sua morte – o que depende dos estudos traumatológicos dos restos mortais. Uma perícia feita de “maneira criteriosa, objetiva, detalhada, minuciosa”, nas palavras do coordenador. Nesse campo, existem vários tipos de traumas que deixam marcas, como armas de fogo, armas brancas, entre facas e objetos. Descobrir a causa do óbito está dentro dos objetivos do grupo.

Ainda que difícil e extremamente delicada, a tarefa de identificação começou. E deixa nos técnicos e profissionais esperanças além de seus campos de atuação.

Para Samuel, o legado que deixará na Ciência e Medicina Forense mundial, com repercussão já sendo observada nos Congressos internacionais que participa. “Todas essas informações estão registradas e fazem parte de documentos que poderão ser utilizados para pesquisa. Como a perícia é uma atividade extremamente padronizada e com critérios objetivos de análise, esse material todo está sendo consolidado. E é um registro, não só técnico e científico, mas, ao mesmo tempo, histórico”.

Para José Pablo, a perspectiva está nas responsabilidades penais geradas com as descobertas. “Eu espero que as investigações, documentos que sejam feitos, possam viabilizar, não somente o tema de dar respostas às famílias, porque elas têm direito de saber. Mas percebe-se que, alguns casos, o Estado interferiu no corpo, abriu-o. É, de alguma maneira, a marca do Estado. Um corpo interferido e sem identidade. É um tema complexo e leva aos procuradores uma questão de responsabilidades penais”, espera.

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Assista os depoimentos dos especialistas:

https://www.youtube.com/watch?v=bDsA0vdmjPo&feature width:700 height:394

Imagem e edição: Pedro Garbellini

Entrevista concedida a Luis Nassif, Patricia Faermann e Pedro Garbellini

Acompanhe as próximas reportagens da série “Ossadas de Perus, a difícil transição”.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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