Maria Antonia e a vida cultural durante o golpe militar

Tatiane Correia
Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.
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Sugerido por Gilberto Cruvinel

 

Maria Antonia

José Miguel Wisnik

De O Globo

Em 64 a repressão desarticulou o sistema político, perseguiu a esquerda, investiu contra os sindicatos, mas deixou funcionando uma vida universitária e artística que era majoritariamente oposta ao regime

É sabido, embora muitas vezes esquecido e confundido, que depois do golpe militar de 1964, e até o AI-5, no final de 1968, viveu-se no Brasil um período de exuberante cultura pública. Em 64 a repressão desarticulou o sistema político, perseguiu a esquerda, investiu contra os sindicatos, as organizações operárias, mas deixou funcionando uma vida universitária e artística que, de modo contraditório, era majoritariamente oposta ao regime. A rotina da censura prévia só se instalou a partir de 1969. Antes disso aconteceram os festivais da canção, o show “Opinião”, o Teatro Oficina, o Arena, o Tuca, o cinema novo, o tropicalismo. A garotada da classe média formada na escola pública durante o intervalo democrático de 45 a 64 tinha o que dizer ao Brasil, do Brasil, e encontrou espaços para isso. 

Entrei no curso de Letras da USP, que funcionava na Rua Maria Antonia, em 1967. Calculo que grande parte dos acontecimentos marcantes a que me referi, os festivais, os teatros, além dos cinemas exibindo Glauber Rocha, aconteceu num raio não maior do que o de dois quilômetros em torno da faculdade. O público estudantil era o combustível daquela efervescência, e se sentia no umbigo do mundo em que o vietcongue derrotava o império. As aulas se comunicavam com o que acontecia nas ruas, nas casas de espetáculo e na televisão. A universidade em que tantos se formaram, como é o meu caso, foi a de dentro das salas de aula e a desse entorno. 

Os dois anos cruciais, 67 e 68, fermentaram a passagem de muitos militantes do movimento estudantil para a luta armada. Outros viriam a passar, na década de 1970, para a guerrilha existencial também chamada desbunde, cujas armas eram as drogas psicodélicas, e cujo horizonte era não a revolução socialista, mas a utopia comunitária, ecológica e sexual. As duas linhas se opunham e se comunicavam de algum modo, como disse Zé Celso em depoimento ao GLOBO. Podem ser vistas como vertentes de uma mesma crença febril, alimentada na florescente sociedade de consumo do pós-guerra ocidental, em uma transformação radical das relações humanas. A terra estava em transe. 

No movimento estudantil da faculdade, o Partido Comunista Brasileiro era a ponta mais à direita do mundo politicamente admitido. O Partidão, no qual militava clandestinamente meu tio Elson Costa, em meios operários, recusava a via armada e apostava numa ampla aliança de classes como saída da ditadura, que iria dos trabalhadores das fábricas e do campo à classe média progressista e à burguesia nacional, opostos idealmente ao inimigo externo (o imperialismo) e ao inimigo interno (o latifúndio). Essa concepção clássica da esquerda brasileira, nacional-populista e aliancista, que ressoava na fé festiva, expressada nos festivais da canção, de que a ditadura cairia muito em breve graças à força popular (tantos hinos de protesto disseram isso), se contrapõe à dos grupos que desacreditaram dessa visão e partiram para a vanguarda da guerrilha urbana e rural. O alarme da radicalização estética, que ecoava polemicamente a radicalização política, foi dado pelas canções tropicalistas (como “Divino maravilhoso” e “É proibido proibir” em ambiente de festival) e rebatido por “Pra não dizer que não falei das flores”, com a sua cantilena processional de chamado para a luta (“Vem, vamos embora/ que esperar não é saber”). 

Mais do que um pretenso resumo histórico, escrevo para relembrar colegas de pouco mais de 20 anos que mergulharam tragicamente na luta armada, no redemoinho da época. Helenira Nazareth, bela jovem negra de fibra e inteligência inesquecíveis, morta não em combate, como se alega, mas depois de presa no Araguaia. Suely Yumiko Kanaiama, doce japonesinha cujo olhar de partida ainda está em meus olhos depois de décadas, e cuja visita de silenciosa despedida, numa tarde do início dos 70, só compreendi muito depois. Intrigante depoimento de um militar diz que seu corpo metralhado foi enterrado e mais tarde, quando exumado por eles mesmos para ser levado para uma vala comum estratégica, irradiava estranha e intacta brancura. Sinto Diadorim, a donzela guerreira, a menina de lá. Sobre a admirável Iara Iavelberg acaba de estrear um documentário. Elson Costa, que se opunha à luta armada, como eu já disse, foi preso em 1975, barbaramente torturado e desaparecido com métodos parecidos aos que acabam de ser ostentados pelo torturador Paulo Malhães, em depoimento à Comissão da Verdade. 

A grandeza sacrificial de uns, com tudo que possa ter havido de ilusão nas suas apostas, e quem somos nós para dizer isto, se choca com a baixeza torpe assumida pelo outro como programa de vida.

 

Fonte: O Globo – 29/03/2014

Tatiane Correia

Repórter do GGN desde 2019. Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), MBA em Derivativos e Informações Econômico-Financeiras pela Fundação Instituto de Administração (FIA). Com passagens pela revista Executivos Financeiros e Agência Dinheiro Vivo.

1 Comentário

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  1. Que piegas.

    Cara, a ditadura foi horrenda. Mas sinceramente, o culto à imagem “idílica” da USP, da Maria Antonia, é de dar nos nervos. Pior é que o texto fala de tudo e nada ao mesmo tempo, não toca realmente no tema.

    É bom lembrar de forma reiterada: o reitor da USP em 1963 foi o mesmo que redigiu o AI-5, promulgada em dezembro de 1968.

    Ainda em 1964, como reitor da USP, Gama e Silva cria um “grupo secreto de investigação contra atividades subversivas”. Quarenta por cento daqueles apontados como “subversivos” eram da Faculdade de Medicina.

    Sem bendizer o passado (longe disso!), eu pergunto: na USP, como se está de presente?

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