Reflexão sobre o novo Regimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, por Marcelo Santa Cruz

O Ministério Público Federal e os familiares tem a obrigação de levar essa questão ao STF e a Corte Interamericana da OEA.

Foto Antonio Cruz – Agência Brasil

Reflexão sobre o novo Regimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos

por Marcelo Santa Cruz

A Comissão Especial de Mortos E Desaparecidos Políticos (CEMDP) foi criada pela Lei 9.140/95 , no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Reconheceu, inicialmente, 136 casos de pessoas dadas como desaparecidas por motivação política como mortas. São atribuições da CEMDP, vide art. 4 da Lei 9.140/95  inciso I – proceder ao reconhecimento de pessoas :                                              

  1. a) desaparecidas, não relacionadas no anexo I desta Lei;    
  2. b) que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham falecido por causas não naturais em dependências policiais ou assemelhadas; (alínea com redação dada pela Lei 10.875 de 01/06/2004). 
  3. c) que tenham falecido em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados por agentes do poder público. 

II – determina “envidar esforços para localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados”   

III – também é competência da CEMDP, “emitir parecer sobre os requerimentos relativos à indenização que venham a ser formulados pelas pessoas mencionadas no art. 10 desta Lei”.

A Comissão Especial dos Mortos E Desaparecidos Políticos, conforme demonstrado foi criada pela Lei 9.140/95, portanto, só pode ser revogado ou alterada por uma outra Lei. É óbvio que um Decreto e muito menos um regimento servem para alterar ou modificar seus dispositivos legais. É sabido que o regimento tem o fim específico de disciplinar normas de funcionamento da comissão, sem nenhuma relevância no ordenamento jurídico. Assim sendo, cabe dizer que não há nenhuma irregularidade de ordem jurídica na CEMDP, e que a mesma tem atribuição legal para apurar as circunstâncias das mortes e desaparecimentos e reconhecer, oficialmente, que ocorreram por causas não naturais, em dependências e diligências policiais, ao passo que os titulares dos pedidos de reconhecimento das mortes tem legitimidade para requerer a lavratura do assento de óbito. 

E de observar que a Lei 9.140/95, é especial e prevalece em relação à Lei de Registros Públicos. O assento do óbito não indicava a causa morte e pode ser retificada na esfera administrativa, na forma do art 110, inciso I, da Lei 6.015/73. Outrossim, a Corregedoria da Bahia, reconheceu que a retificação tem fundamento na Recomendação 07 da CEMDP e somente diz respeito à causa morte, sem imputar a autoria a pessoa determinada. É fundamental para um melhor entendimento das retificações dos assentamentos de óbitos, examinar  a publicação da decisão e do parecer contido no Processo de númer : 1045782.43.2019.8.26.0100 (549/2019) Registro Civil de Pessoas Naturais.- Retificação administrativa de assento de óbito lavrado na forma da Lei 9.140/95- Declaração, pela CEMDP, de que o falecimento decorreu de morte causada pelo Estado brasileiro – anterior submissão da matéria a Egrégia Corregedoria Nacional de Justiça que reconheceu a regularidade das retificações promovidas com fundamento em atestado emitido conforme Resolução 02/2017, da referida comissão .  

Não se pode passar ao largo de que a Lei 12.528/2011, instituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instalado oficialmente em 16/05/2012. A instalação contou com a participação de todos os ex-presidentes da República, desde o restabelecimento da democracia após a ditadura militar (1964 – 1985), portanto, foi uma comissão de Estado. Objeto da CNV, esclarecer as violações de direitos humanos praticados no período de 1964 a 1985.                                            

Em 10/12/2014, entregue relatório da CNV, a Presidenta da República, Dilma Rousseff , fazendo 29 recomendações, destacando-se a 27 e 7, explicitadas, MANUTENÇÃO DA BUSCA POR CORPOS – o grupo entendeu que não foi possível esgotar todas as possibilidades de investigação até sua conclusão. Por isso, recomenda o prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas para sepultamento digno dos restos mortais dos desaparecidos políticos. Observe a recomendação número 7 – MUDANÇAS NOS REGISTROS DE ÓBITO DAS VÍTIMAS – “a alteração de registros de causa de óbitos de vítimas do regime militar”, é outra das recomendações da CNV.  

Objetivo é tornar oficial que diversas pessoas morreram em decorrência de violência – de agente do Estado e não por suicídio. Outrossim, não se pode olvidar de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, condenou o Brasil por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na Guerrilha do Araguaia  e determinou que sejam feitos todos os esforços para localizar os corpos dos desaparecidos.

Observe que a Corte considerou que as disposições da Lei de Anistia brasileira (lei 6.683 de ( 28/08/1979), não podem impedir a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos. A decisão embora refira-se a Guerrilha do Araguaia, alcança outros casos, quando a sentença diz que “as disposições da Lei – podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos “. Este entendimento torna insustentável a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou que a Lei da Anistia de 1979, também teria beneficiados agentes do Estado que praticaram torturas e assassinatos.

Por fim, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, identificou 434 casos de mortes e desaparecimentos de pessoas sob a responsabilidade do Estado brasileiro; 377 agentes públicos envolvidos em distintos planos de participação: responsabilidade político institucional, responsabilidade pelo controle e gestão de estrutura e procedimento e responsabilidade pela autoria direta de conduta que materializaram as violações. Ressaltamos que os crimes de torturas, desaparecimentos forçados são imprescritíveis, pois são considerados crimes contra a humanidade. 

É fundamental que a CEMDP observe que há Tratados Internacionais, conforme o Estatuto de Roma, de 1998, ratificado pelo Brasil, que tornaram esses crimes imprescritíveis e não sujeitos a anistia (Lei 6.683 de 28/08/1979).

Em síntese, afirmamos que o novo regimento da CEMDP, não tem nenhuma sustentação jurídica, desprovida de força legal para alterar, modificar ou revogar dispositivos e atribuições da Lei 9.140/95, bem como, interferir em sua composição e em seu prazo de vigência da lei em comento.

Portanto, cabe a CEMDP, prosseguir nas investigações dos mortos e desaparecidos forçados, na terminologia internacional. É  ainda de sua atribuição e responsabilidade  coordenar, implementar todos os esforços que garantam as investigações, diligências e realizações das pericias nas ossadas encontradas na vala clandestina, que estão sendo analisadas no laboratório em São Paulo e na Holanda, identificando-se 42 desaparecidos políticos. Esta questão encontra-se judicializada e é acompanhada pelos familiares, entidades de direitos humanos, monitorado pelo Ministério Público Federal e a Ordem dos Advogados/SP.   

Resta dizer que o impasse que se encontra  CEMDP é de inteira responsabilidade do Presidente da República, o qual jurou em sua posse respeitar e cumprir o que a Constituição determina, sendo responsável pelos atos praticados pelos seus subordinados. O Ministério Público Federal e os familiares tem a obrigação de levar essa questão ao STF e a Corte Interamericana da OEA.

Redação

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