Série Riocentro: O trabalho incansável do Ministério Público Federal

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – “Toda transição é diferente. Todavia, não importa onde se concretize, a verdadeira justiça de transição só se realiza quando traz justiça para as vítimas”. Essa é a abertura do relatório do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, criado pelo Ministério Público Federal para investigar os crimes da ditadura militar. Um dos braços fortes de atuação está no Rio de Janeiro, onde vem desenvolvendo um meticuloso trabalho com o obetivo de trazer a verdade e promover a justiça sobre o caso Riocentro. (Anexo 1)

Em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso Gomes Lund, por não investigar e levar à justiça criminal os responsáveis pelo desaparecimento de 62 militantes do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia, entre 1972 e 1975. O caso da Guerrilha do Araguaia fica para outro especial, mas foi essa condenação que obrigou o país a apurar e julgar todos os crimes da ditadura militar. 

Em 2012, diversos Grupos de Transição (GT) do MPF espalhados pelo Brasil iniciaram as investigações. (Anexo 2)

Depois de entrevistar Procuradores da República e ter acesso a documentos de investigação do MPF, o Jornal GGN traz com exclusividade detalhes dos bastidores da luta incessante, até que o GT do Rio de Janeiro conseguisse reabrir e recontar uma história guardada há 33 anos, e intocada há 15.

No dia 30 de abril de 1981, durante um show em homenagem ao Dia do Trabalho que reunia 20 mil pessoas no estacionamento do Riocentro, uma bomba explodiu antes da hora, quando o sargento Guilherme Pereira do Rosário, do Destacamento de Operações de Informações do 1º Exército (DOI-1) carregava o explosivo no carro. O atentado seria uma forma de deter o processo de abertura política que se iniciava, durante o governo de João Figueiredo (1979-1985).

Os trabalhos que descrevemos, a seguir, possibilitaram o MPF denunciar na Justiça, em fevereiro deste ano, três militares – o coronel reformado Wilson Luiz Chaves Machado e os generais reformados Nilton de Albuquerque Cerqueira e Newton Araujo de Oliveira e Cruz  – e o ex-delegado Claudio Antonio Guerra por crime de homicídio doloso tentado, associação criminosa e transporte de explosivo. Além deles, o general reformado Edson Sá Rocha responde por associação criminosa armada e o major reformado Divany Carvalho Barros por fraude processual.

Reabertura do caso

Com cerca de cem investigações sobre a ditadura militar – só o Rio de Janeiro concentra quase 70% dos casos –, a equipe conseguiu novos documentos para desvendar outro: o desaparecimento do deputado Rubens Paiva. Entre eles, uma agenda do coronel assassinado Júlio Molinas, em Porto Alegre, que trazia nomes relacionados ao crime do Riocentro. Essa foi a chave para encontrar as novas provas.

Leia mais: Caso Rubens Paiva: trabalho do MPF é reconhecido pela justiça brasileira

Investigações anteriores

Em 2012, o grupo tinha em mãos um inquérito policial de 1999, conduzido pelo então general Sérgio Ernesto Conforto. Muitos nomes levantados na investigação eram de militares que estavam na ativa. Ao final, Conforto chegou a indiciar o capitão Wilson e o general Newton Cruz, entretanto, apenas o general foi processado por falso testemunho, conseguindo, posteriormente, um Habeas Corpus no STF, concedido pelo ministro Marco Aurélio. O inquérito foi, então, arquivado sem apontar responsáveis pela explosão da bomba.

Mas, ainda assim, alguns avanços foram obtidos em relação ao primeiro inquérito, aberto pelo Supremo Tribunal Militar, no mesmo ano de 1981, e que explicitamente foi uma farsa, inferindo que o sargento Rosário, falecido, e o capitão Machado, que ficou gravemente ferido, eram vítimas e não autores dos atentados.

Algumas peças do inquérito dos anos 90 foram utilizadas pelos procuradores para as novas denúncias. Mas, por uma questão de metodologia investigativa, aquele comandado pelo general Conforto não utilizou comparativos de fotografias ou desvendou codinomes – ainda que tivessem suporte e conhecimento, fato comprovado em documentos nos autos do MPF, de que o Exército conhecia os codinomes.

Outra diferença apontada pelos procuradores é que nos anos 90 as pessoas ainda não se sentiam à vontade para depor, ao contrário de agora, quando o novo inquérito contou com número expressivo de depoimentos.

Primeiro passo: codinomes

Diante do material do inquérito de 99 e com a agenda do coronel Molinas, o grupo começou a mapear figuras que nunca tinham aparecido nas investigações e que nos documentos da agenda estavam com codinomes.

É comum entre os militares usarem o nome de Guerra, que geralmente é um dos sobrenomes. Mas, no período do regime militar, entre os órgãos de inteligência foram usados codinomes, muitas vezes totalmente distintos do original. E o desafio do Grupo de Transição era descobrir o nome verdadeiro aos correspondentes codinomes listados.

Foi, então, preciso fazer uma reconstrução, a partir de uma aranha de informações do comando do DOI em 1981, com todas as seções e subseções daquele órgão de inteligência, tentando identificar – por meio de outras informações apresentadas a seguir – as pessoas referidas na agenda. O próprio coronel Júlio Molinas, por exemplo, era chamado por seu codinome: doutor Fernando.

Muitas testemunhas do MPF só conheciam os indivíduos por esse segundo nome. Mas, alguns militares se conheciam da Academia ou Escola Militar, ou tinham passado pelo Agulhas Negras, cursado as escolas de formação de cadetes. 

Foi assim, em um trabalho meticuloso com o amplo exame de todos os nomes e codinomes envolvidos, que o Ministério Público deu início às investigações do Riocentro.

Leia mais nas próximas reportagens da série Riocentro:

Série Riocentro: Como procuradores atuaram para levantar o caso

Série Riocentro: Novas provas, busca por suspeitos e dificuldades

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Anexo 1: Série Relatórios de Atuação – Grupo de Trabalho Justiça de Transição – Atividades de Persecução Penal desenvolvidas pelo Ministério Público Federal) 2011-2013

Anexo 2: NOTA TÉCNICA – Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Cumprimento dos pontos resolutivos 3 e 9 da sentença de 24 de novembro de 2010, relativos à obrigação de investigar e punir os autores de graves violações a direitos humanos durante o regime militar.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

12 Comentários

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  1. terrorista foi a ditadura

    Os saudosistas da ditadura militar gostam muito de justificar as torturas e assassinatos, alegando que os “militares combatiam terroristas da esquerda”, quando na verdade a maior ação terrorista do período foi exatamente essa, o Riocentro, ainda que abortada, já que seu objetivo principal era causar um grande número de baixas civis.

  2. Aos poucos, a verdade vem a

    Aos poucos, a verdade vem a tona. O processo da ditadura no BRAsil vai se concretizando, o que mais me preocupa é o que será registrado, o que os futuros brasileiros irão ler sobre essa passagem negra de nossa  história. 

  3. Tiro no pé

    Meus amigos, justiça foi feita: um dos terroristas morrreu no próprio local do atentado e o outro foi conduzido ao Hospital de Jacarepaguá, segurando as próprias tripas, pela neta de Trancreco e irmã do Aecinho, a Andréa.

    Portanto, justiça foi feita.

    Como positivo, o Atentado do RioCentro consolidou a polítical de Geisel, de distensão lenta e gradual.

    O RioCentro puniu seus algozes e acelerou a queda da ditadura.

    O que importa – e o lado saudável da Nação tem esse direito – é saber quem foram os autores intelectais do atentado frustrado, quando muito para que seus os filhos entendam que seus pais não foram os heróis de que se vangloriavam em casa, na hora do jantar.

      1. Sinto-me desconfortável com a

        Sinto-me desconfortável com a comparação. Tenho idade para ser pai de Elio Gáspari, que é um jornalista bem informado mas seus escritos trazem uma toxidade ideológica que os torna descartáveis.

  4. A questão é a verdade!

    Os agentes que tiveram o “acidente de trabalho” devem sim responder pelo ato, mas seus superiores e o canalha do general que conduziu o inquérito concluindo serem vítimas esses devem ser expulsos do Exército e irem para a cadeia de forma exemplar e quem sabe os secretários de seguerança pública de hoje não pensem duas vezes antes de também falsificarem inquéritos.

    Não sou otimista com isso, apesar do esforço do MP, nada vai mudar essa mentalidade sem uma violenta ação dos oprimidos.

  5. sorte nossa que esses caras eram muito burros…

    sempre desconhecem o principal…………………………..

    pelo bem, conforme eles entendem, da ideologia militarista, ninguém deve acordar um “dragão” que dorme

    1. impossível desvendar…

      quando são destruídos por dentro………………………………..

      ninguém deve esquecer que a prioridade da ideologia é a “segurança” social

  6. falta muita informação sobre a formação desses caras…

    da época e para a época……………………………

    tudo indica que não tem nada do que muitos imaginam como formação militar tradicional

  7. Nao entendi porque a serie se

    Nao entendi porque a serie se chama Riocentro se nem a palavra aparece nos dois anexos.  (assunto fora da minha experiencia, eu ja tinha saido do Brasil)

    Tambem, de novo, a (minha) confusao linguistica, mais que provavelmente traducao errada no Brasil, mas ficou bem feio.  Persecution nao eh prosecution, que eh o que o MPF faz!  DA’s NAO fazem “persecution”!

    Exemplo:  persecution eh o que o governo dos EUA faz comigo e o que a policia de SP faz com o MPL.  O MPF brasileiro faz prosecution!

    1. Ivan, essa é a primeira

      Ivan, essa é a primeira reportagem da série. Outras virão para contar mais detalhes sobre a investigação do MPF especificamente do caso Riocentro. Como matéria de abertura, explicamos em que contexto se deu esse caso: juntamente com outros que o MPF vem desenvolvendo nos Grupos de Transição espalhados pelo Brasil. Por isso, os dois primeiros anexos são (1) sobre o grupo em si e (2) sobre o caso Gomes Lund, quando a Corte IDH condenou o país pelos crimes da ditadura a encontrar os responsáveis. E foi esse caso que permitiu a abertura também do Riocentro. Agradeço pelo alerta da tradução. Mas esses documentos são oficiais, portanto, nada podemos fazer. Obrigada pela colaboração!

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