Tenho hoje a idade que meu pai tinha quando morreu, por Pablo Villaça

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

 
Por Pablo Villaça
 

Tenho hoje a idade que meu pai tinha quando morreu.

Passei a vida inteira pensando neste dia. Temendo-o. Temendo-me. Concebia esta virada de década como algo muito maior do que mais um aniversário; seria um marco simbólico. Eu enxergaria o mundo a partir de um ponto de vista similar ao do homem cujo rosto conviveu fragmentado em minhas memórias com incidentes cuja veracidade não posso garantir. Caímos mesmo de bicicleta quando Lassie, nossa dobermann, partiu em disparada ao avistar um gato, puxando a coleira que se encontrava amarrada no guidom? Quando me lembro da sensação de ser jogado para cima por braços fortes, estes pertenciam ao meu pai (como gosto de acreditar) ou a algum tio? A imagem que tenho de brincar de autorama com papai é uma lembrança ou uma mera projeção a partir de uma das poucas fotografias nas quais aparecemos juntos?

Sei apenas que ele partiu jovem demais. Olho para Luca e Nina, com seus 11 e 6 anos de idade, e imagino como papai enxergava seus filhos: eu tinha 5 anos e minha irmã, apenas um. Se meus pequenos são minha principal razão para levantar todos os dias, quando a velha depressão gostaria apenas que eu cedesse aos seus apelos sedutores, teríamos sido Jeanne e eu a razão de papai? Ou uma delas? Como ele se sentia ao se olhar no espelho? Sentia-se deprimido? Realizado? Será que sequer pensava nestas questões?

Quem era ele, afinal?

É uma pergunta ambiciosa e provavelmente sem resposta, já que eu não saberia responder esta pergunta nem com relação a mim mesmo. Sei que não sou o mesmo idiota que era há cinco anos e torço para não ser quem sou hoje daqui a outros cinco. Por outro lado, se ainda for, já será uma vitória.

“40 são os novos 20”, me disseram hoje.

Oh, eu espero que não. Ter 40 anos não me incomoda; há algo de reconfortante em envelhecer e em passar a enxergar o mundo com óculos que trazem o filtro da experiência. Ok, aquele vinco profundo no meio da testa não me faria falta, mas ando me acostumando com ele.

Menos fácil é me acostumar com a ideia de que certas experiências não serão repetidas.

Quando fui carregado por minha mãe pela última vez, não me dei conta de que não voltaria a ser suportado por seus braços. Quando vi meu pai antes de sua derradeira viagem, não sabia que jamais o veria novamente. Quando desliguei meu velho Atari em certa ocasião, não imaginei que aquela havia sido minha última partida.

Como certamente não me darei conta quando tiver acompanhado meu último por-do-sol. Assistido a O Poderoso Chefão pela última vez. Abraçado meus filhos. Gargalhado de um velho episódio de Friends. Beijado minha sobrinha. Escutado The Sound of Silence. Comido pizza. Sorrido. Chorado. Suspirado.

Meu pai não sabia, naquele junho de 1980, que havia se despedido de minha mãe e dos filhos para sempre ao partir em sua viagem final. Não sabia, quando fechou a porta do passageiro do carro, que jamais voltaria a abri-la.

Não sabemos de tantas coisas, mas supomos tanto. Estarei no festival ano que vem, claro. Sim, vamos reunir a velha turma algum dia. Semana que vem te ligo. Publicarei um texto sobre isso amanhã.

Que amanhã? Que semana ou ano que vem? Estas datas são meras hipóteses projetadas no calendário. Basta um coágulo ou um caminhão na contramão ou um tropeço ou um algo qualquer para que estas hipóteses jamais se concretizem.

Enquanto isso, sigo entristecido ao ver como papai se foi quando ainda tinha tanto para ver, sentir e ser. E tento me acostumar com o fato de que a idade que passei a vida inteira esperando pareceu chegar tão de repente.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

9 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Caro Pablo,
    Que coincidência.

    Caro Pablo,

    Que coincidência. O meu também se foi aos seus 40 e aos meus 5. Dia das mães, aneurisma, eu longe, ele partindo, minha grávida, meu irmão nascendo. Só senti a permanência da ausência quando o comprador do fusca 63 veio buscá-lo. Pra mim, capô de fusca é a imagem de um menino lutando, aos berros, para segurar a presença do pai na garagem…

    “Se o carro está ali, uma hora ele aparece…”. A menos que levem o carro.

    “Este carro é do meu paaaaaai!” 

    E as memórias daquela idade viram lampejos distantes como aquele fusca sumindo na Av. Sumaré.

    Este aniversário é, de fato, uma virada. É quase um “deixa que eu continuo de onde você parou”. Você se dá conta que ficou mais velho que seu pai. Quando passei pelos 40, passei pelo pai. Revivi. Sei lá… foi especial.

    Parabéns!

  2. Eu tb estu com a idade que a

    Eu tb estu com a idade que a minha mãe tinha quando se foi. E coisas como as que o Pablo mencionou tb passam pela minha cabeça algumas vezes..

  3. Acredito que somos guiados

    Acredito que somos guiados por esses incriveis e misteriosos sentimentos que nos forjam. E é triste saber dos que não os tem.

  4.  Camus, em sua biografia:

    Albert Camus inspira-se em sua biografia para escrever O primeiro homem, em que descobre o “pai caçula”. O filho que visita o túmulo do pai tinha 40 anos, enquanto este morrera com 29. “E NA VERDADE NÃO HÁ ORDEM, MAS SOMENTE A LOUCURA E CAOS QUANDO O FILHO É MAIS VELHO QUE O PAI.”

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador