A crise do Covid-19 e as cadeias de suprimentos

Para a FAO, há desafios logísticos para a movimentação de alimentos entre regiões e países. Em síntese, alerta a FAO, “em abril e maio, esperamos ver interrupções nas cadeias de suprimento de alimentos”.

A crise do Covid-19 e as cadeias de suprimentos

por Prof. Dr. Rodrigo Medeiros

Prof. Dr. Luiz Henrique Faria

Prof. Dr. Rafael Buback Teixeira

Profa. Dra. Cíntia Tavares

Os autores são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Passamos todos por um momento histórico dramático, cheio de complexidades e dificuldades. A necessidade de salvar vidas humanas modificou rotinas sociais em diversas escalas e dimensões em diversos países que enfrentam a grave crise do Coronavírus (Covid-19). Nesse sentido, o termo “economia de guerra” circulou na imprensa brasileira e merece considerações [1]. Sobre a crise, em sua coluna na Folha de S.Paulo, publicada no dia 20 de março, o jornalista Vinícius Torres Freire ponderou que “esperar que a escassez também se espalhe de modo epidêmico é jogar com a morte”. Em síntese, nossa preocupação central diz respeito ao choque nas cadeias de suprimentos de bens essenciais à manutenção da vida humana durante a crise.

Mais recentemente, matéria publicada no UOL aponta que “o choque negativo provocado pela pandemia do novo Coronavírus pegou a economia brasileira num ritmo de crescimento igual ao visto entre 2017 e 2019, com avanços próximos de 1,0% no Produto Interno Bruto (PIB) e, por isso, não pode ser culpado pelo desastre econômico”, afirmou o pesquisador Claudio Considera, coordenador do Monitor do PIB, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV) [2]. O choque da pandemia do Covid-19 atingirá a já fragilizada economia brasileira. A agropecuária e o comércio varejista de bens essenciais, como os supermercados, serão afetados. Portanto, salvar vidas e garantir o abastecimento contínuo de bens necessários à manutenção da vida humana se tornarão desafios cruciais na atual crise.

Em nota anterior publicada no Jornal GGN, fizemos um paralelo entre a grave crise atual e o choque ocorrido nas cadeias de suprimentos na crise dos caminhoneiros em 2018 no Brasil [3]. Houve impacto inflacionário então, com destaque para os alimentos. Afirmamos que “em uma sociedade de desigualdades sociais extremas, históricas e estruturais, como é o caso brasileiro, garantir o amplo acesso aos itens básicos para a manutenção da vida humana merece a atenção e a ação preventiva dos gestores públicos e das autoridades responsáveis”. Esse é um grande e complexo desafio logístico em tempos de “economia de guerra”, que demandará, por sua vez, a coordenação institucional geral de esforços e uma boa dose de centralização de planos e ações governamentais. Nesse sentido, causa preocupação o vácuo de liderança e coordenação deixado pelo governo federal, que fez com que os governos estaduais buscassem preencher o espaço.

Como se não bastasse o contexto de descoordenação da parte do governo federal, nos últimos anos, segundo as informações disponíveis, foram praticamente zerados os estoques estratégicos de alimentos no Brasil [4]. Estoques públicos servem para viabilizar um programa fundamental para os momentos de crise: a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM). Para que esses estoques estratégicos sejam formados, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) precisaria ter funcionado efetivamente. Não há dúvidas de que a grave crise do Covid-19 expõe as muitas fragilidades brasileiras, inclusive as fragilidades e vulnerabilidades que cresceram com a agenda das reformas liberais desde 2016: deterioração geral da qualidade dos serviços públicos, informalidade laboral e desigualdades sociais. Essas mesmas fragilidades e vulnerabilidades cobrarão um preço alto na atual crise, quando consideramos o longo e trágico processo de desindustrialização precoce da economia brasileira, que reflete perdas e ausências de capacidades produtivas domésticas mais sofisticadas. As perdas e ausências de capacidades produtivas domésticas mais sofisticadas dificultarão processos de reconversão industrial para o efetivo enfrentamento da crise do Covid-19 no Brasil.

Há uma questão sensível do ponto de vista social e que merece a nossa atenção em um contexto de “economia de guerra”. Conforme foi divulgado pelo Ibre/FGV, o Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M) avançou 1,24% em março, sendo que a principal contribuição para o resultado veio do subgrupo alimentos processados [5]. O índice de Bens Intermediários (ex), obtido após a exclusão do subgrupo combustíveis e lubrificantes para a produção, subiu 1,39% em março, contra 0,30% em fevereiro e o índice do grupo Matérias-Primas Brutas acelerou de 0,36% em fevereiro para 4,77% em março. O Ibre/FGV citou ainda que o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) variou 0,12% em março, com o grupo Alimentação apresentando acréscimo em sua taxa de variação (0,28% para 0,86%). Para esse tipo de quadro geral, devemos adotar a responsável perspectiva do princípio da precaução.

Do ponto de vista global, no que diz respeito às preocupações com a produção de alimentos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, em inglês) avaliou os impactos da crise do Covid-19 [6]. Para a FAO, há desafios logísticos para a movimentação de alimentos entre regiões e países. Em síntese, alerta a FAO, “em abril e maio, esperamos ver interrupções nas cadeias de suprimento de alimentos”. Não são esperados picos de preços nos principais setores quando houver oferta, estoques e produção intensiva em capital. Elevações de preços são mais prováveis para commodities de alto valor, carne e peixe no curto prazo e commodities perecíveis. Ainda segundo a FAO, embora o Covid-19 provavelmente represente um choque deflacionário para a economia global, o custo real de uma dieta saudável pode aumentar devido ao aumento no custo de produtos perecíveis, algo que teria um impacto particularmente adverso sobre as famílias de baixa renda. Como recomendação geral da FAO, destacamos que os países devem buscar atender às necessidades alimentares imediatas de suas populações vulneráveis e, portanto, devem aumentar os seus programas de proteção social.

Considerando o princípio da precaução, avaliamos criticamente que o levantamento do Instituto Ilos nos traz sinais ambíguos, porém preocupantes do ponto de vista da efetiva resiliência das cadeias de suprimentos no Brasil [7]. Esse levantamento, que é atualizado periodicamente, mostra como já estamos enfrentando diversos tipos de problemas nas cadeias de suprimentos, inclusive na logística doméstica de abastecimento de alimentos, principalmente porque há uma descoordenação institucional geral de planos e ações no âmbito federativo brasileiro.

Para finalizar, entendemos que é importante responder àqueles que questionam como devemos pagar pela injeção de gastos públicos na crise do Covid-19, principalmente para buscarmos proteger uma população mais vulnerável. O professor emérito Robert Skidelsky, da Warwick University (UK), diz que “o que um governo pode pagar é limitado apenas pela quantidade de recursos reais que pode comandar, e não por restrições financeiras autoimpostas” [8]. Uma “economia de guerra” é uma economia de escassez na qual não se pode simplesmente ter mais armas e mais manteiga ao mesmo tempo. Segundo Skidelsky, “a manteiga deve ser racionada para produzir mais armas”. Nesse sentido, as reais possibilidades de reconversão de sistemas produtivos para a “economia de guerra” deveriam estar sendo objeto de mapeamentos, planos e ações no Brasil. Ainda segundo Skidelsky, o consumo privado precisa ser reduzido, seja por preços ou tributos mais altos, preferencialmente pela tributação progressiva. Em uma economia de guerra contra a pandemia do Covid-19, a coordenação central de esforços do governo federal se faz necessária no Brasil.

 

Notas

[1] TORRES, V. Economia de guerra contra o corona. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2020/03/economia-de-guerra-contra-o-corona.shtml> Acessado em: 23/03/2020.

[2] NEDER, V. FGV: coronavírus não pode ser desculpa; economia não ia acelerar como imaginado. Disponível em: < https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/30/fgv-coronavirus-nao-pode-ser-desculpa-economia-nao-ia-acelerar-como-imaginado.htm > Acessado em: 31/03/2020.

[3] Disponível em: < https://jornalggn.com.br/economia/ha-risco-de-desabastecimento-na-crise-do-covid-19/ > Acessado em: 31/03/2020.

[4] MATIOLI, V.; PERES, J. Coronavírus: Brasil não tem estoques de alimentos para enfrentar desabastecimento. Disponível em: < https://outraspalavras.net/ojoioeotrigo/2020/03/coronavirus-brasil-nao-tem-estoque-de-alimentos-para-enfrentar-desabastecimento/ > Acessado em: 31/03/2020.

[5] IBRE/FGV. Disponível em: < https://portalibre.fgv.br/navegacao-superior/noticias/igp-m-avanca-para-1-24-em-marco.htm > Acessado em: 31/03/2020.

[6] FAO. Disponível em: < http://www.fao.org/2019-ncov/q-and-a/en/ > Acessado em: 31/03/2020.

[7] ILOS. Disponível em: < https://www.ilos.com.br/web/30-03-impactos-do-coronavirus-na-logistica-pelo-mundo/ > Acessado em: 31/03/2020.

[8] SKIDELSKY, R. What Would Keynes Say Now? Disponível em: < https://www.project-syndicate.org/commentary/keynes-how-to-pay-for-war-against-covid19-by-robert-skidelsky-2020-03 > Acessado em: 31/03/2020.

Redação

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