A Adin do salário mínimo, por Werneck Vianna

Do Valor

O salário mínimo e a judicialização da política

Luiz Werneck Vianna
28/02/2011

A controvérsia sobre o salário mínimo escapou dos gabinetes palacianos, onde foi objeto de acordo, em 2007, entre o governo Lula e as centrais sindicais, ganhou o Parlamento, submetida à votação nas duas Casas congressuais, e por pouco não atingiu as ruas. Agora, tudo indica, a se confiar nas declarações transcritas pelos jornais de líderes políticos da oposição, que mudará de arena, migrando para o Poder Judiciário por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) a ser impetrada por eles no Supremo Tribunal Federal.

A matéria dessa ação não diria respeito aos aspectos substantivos – o valor do salário mínimo -, e sim aos procedimentais, uma vez que o artigo 3º da lei aprovada delega ao Executivo, nos próximos três anos, mediante decreto, a fixação do mínimo conforme fórmula prevista nesse novo diploma legal. Na leitura dos partidos minoritários, tal delegação significaria uma usurpação de poder do Legislativo em favor do Executivo, vindo contra disposições expressas da Constituição, que, no seu artigo 7º, inciso IV, dispõe que o salário mínimo deve ser fixado por lei. A maioria defende a constitucionalidade da nova lei, sustentando que os futuros decretos presidenciais sobre o valor do mínimo apenas cumpririam a vontade já expressa do legislador. 

ComoComo se vê, a controvérsia imprevistamente mudou de forma, deslocando-se do plano econômico-corporativo para o político-institucional, quando passa a admitir a arbitragem do Judiciário, o Tertius constitucional. Mais um caso, entre tantos, na moderna democracia brasileira, do assim chamado processo de judicialização da política, recurso hostilizado por alguns em nome de presumidas filiações ao republicanismo da Revolução Francesa de 1789, que teria fixado como princípio dogmático o império da vontade majoritária. Além do fato de que esse princípio não foi consensual entre os revolucionários franceses, os contestadores do controle de constitucionalidade das leis por parte do judiciário desconsideram outra robusta tradição republicana, a da revolução americana, que trouxe consigo a sua institucionalização.

Mas, sobretudo, não levam em conta a inequívoca vontade do legislador constituinte brasileiro de abrigar esse instituto no sentido de proteger sua obra de eventuais mutilações, respaldada por uma teoria democrática que admite, como intérpretes da Constituição, filha da soberania popular, entre outros, atores originários da sociedade civil, como os partidos, e as associações empresariais e de trabalhadores.

Certamente este é o caso do ilustre presidente do Senado, José Sarney, o ex-presidente da república sob cujo mandato foi elaborada e promulgada a Carta de 1988, que, ao criticar a iniciativa da oposição, declarou que “chamarmos o Supremo como uma terceira via é uma coisa que deforma o regime democrático”, sentenciando “que as questões políticas devem ser resolvidas dentro do Parlamento” (Valor, 25/02/2011, p.10). Essa não é, sem dúvida, uma opinião isolada, merecendo ser ouvida, embora a questão em tela esteja longe de ser bem encaminhada com soluções ao gosto do senso comum.

A emprestar alcance universal ao que preconiza essa declaração, a segregação racial nos Estados Unidos poderia ter resistido, sabe-se lá por quanto mais tempo, às sucessivas tentativas dos parlamentares que combatiam aquele odioso sistema. Notório que, diante dos impasses e das divisões reinantes no sistema político americano, foi o Judiciário quem cortou o nó górdio daquele litígio com suas evidentes, na conjuntura da época, ameaças de guerra civil, em uma solução típica de judicialização da política, que, como se verificou, criou um ambiente de paz nas relações raciais daquela sociedade.

Como anota um conhecido especialista no assunto, a judicialização da política somente encontra campo para sua manifestação em países de regime político democrático, diante de um Judiciário autônomo das instâncias do poder e de franquia, garantida constitucionalmente, das liberdades civis e públicas. A propósito, nessa outra margem do Mediterrâneo, onde agora se alastra o levante de povos inteiros contra regimes autocráticos, vigem mecanismos institucionais que permitam a seus cidadãos exercer o controle de constitucionalidade das leis?

A floração do constitucionalismo democrático nos países de sistema da “civil law”, coincide, não por acaso, com a derrota, em 1945, do nazi-fascismo, e com a convicção, então generalizada na opinião pública internacional, de que um sistema de poder com as características desumanas daquele não deveria se repetir. Como se sabe, na Alemanha de 1933, a ascensão do nazismo ao poder transitou sob a chancela do princípio do voto majoritário. A partir daí, sob a inspiração da Declaração de Direitos Humanos, firmada pela ONU em 1948, as democracias ocidentais passaram a positivar em suas constituições determinados valores, materiais e procedimentais, constituindo o que alguns denominam o núcleo dogmático das constituições, e, como tais, não passíveis de derrogação por eventuais expressões da vontade majoritária.

Mas, esse é apenas um dos aspectos das atuais mutações por que passam as relações entre os poderes republicanos, com a emergência, em escala mundial, do fenômeno da judicialização da política. Outro, decisivo, tem sede na própria ação do legislador que, por imperativos da complexidade das sociedades contemporâneas, produz leis com cláusulas de caráter aberto e indeterminado, admitindo o juiz no papel de legislador implícito. E mais tantos outros, inclusive o fato, só na aparência trivial, de que o instituto das ações de controle de inconstitucionalidade “pegou” no Brasil: são cerca de 200 Adins ao ano, e, aliás, o PT, hoje, partido no governo, quando na oposição, foi um dos grandes campeões na sua propositura.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio. Escreve às segundas-feiras

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Luis Nassif

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