A Casa das Garças e os projetos nacionais

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As discussões sobre programas de partidos políticos têm sido bastante enriquecedoras no Blog, pelas informações que trazem e, também, por externar dúvidas existentes em muitas cabeças esclarecidas.

Uma delas é sobre modelos de desenvolvimento.

Ontem, nosso Jotavê defendeu o modelo apresentado pela Casa das Garças – o centro da ideologia financista, dirigido pelo ex-heterodoxo Edmar Bacha: corte nos gastos públicos para gerar recursos para investimentos. Pergunta Jotavê: qual o caminho alternativo de gerar recursos, se o governo – segundo ele – está tomado pelo corporativismo do funcionalismo público.

É um bom tema para discussão.

Primeiro, o tal modelo defendido pela Casa das Garças.

O corte de despesas que propõe é de custeio. Custeio são gastos com saúde, educação, políticas sociais, inovação, pesquisas, universidades públicas, com equipes de saúde da família, com professores, com segurança, tudo o que não é investimento.

Toda essa demonização do custeio é uma forma indireta e propor cortes em políticas sociais e políticas essenciais. E aí o Estado foge de sua missão principal, que é levar o bem estar ao cidadão.

É simples tirar a prova dos nove. Tentem encontrar qualquer estudo da Casa das Garças, do Raul Velloso, Giambiagi e companhia que aborde a questão dos juros pagos pelos títulos públicos.

Qualquer análise de empresas privadas em dificuldade contempla, em primeiro lugar, a conta mais pesada – no caso da empresa Brasil, o pagamento de juros. Depois, sugere maneiras de reestruturar a dívida, ou reduzir o custo do serviço da dívida.

A maneira mais objetiva de liberar recursos para investimentos públicos é justamente a redução dos juros da dívida pública. Por que, nesses centros de excelência econômica, nunca se questiona o nível dos juros? Por que ora se diz que os juros são altos porque a dívida é alta e no momento seguinte os juros são altos porque se baixar volta a inflação? Não há uniformidade sequer nas desculpas para manter juros elevados.

Porque o tema, prezado Jotavê, sai da ciência econômica e entra na economia política, aliás muito mais fácil de ser compreendido pelos filósofos: é uma disputa pela apropriação dos excedentes do Estado.

Em qualquer parte do mundo, os juros são função exclusiva do risco – economias com maior vulnerabilidade fiscal pagam mais juros, e vice-versa, O investidor recebe um prêmio pelo risco da aplicação. Aqui é o único caso em que as contas fiscais são sólidas e os juros elevados.

O limite para o pagamento de juros é o da solidez das contas públicas. Quanto maior o superávit primário, maior a zona de conforto para manter juros estratosféricos, porque consegue-se manter sob controle a relação dívida/PIB sem a necessidade de reduzir os juros e sem correr riscos de calote.

Se houvesse de fato preocupação com a responsabilidade fiscal, os estudos estariam focados em formas de diminuir o custo da dívida.

Portanto é ingenuidade supor que o modelo da Casa das Garças permitiria gerar excedentes para financiar políticas públicas. Seu objetivo é apenas abrir mais espaço para manter juros altos.

Desperdício público

Não significa que o Estado brasileiro seja eficiente. E aí se entra na parte relevante da história.

A lógica desse povo da Casa das Garças é falsa. Sofisma da seguinte maneira:

1. O Estado é ineficiente.

2. Cada centavo gasto por nele gerará mais ineficiência.

3. Logo, a maneira de reduzir a ineficiência é cortar os gastos.

Qualquer estrutura desorganizada, mais desorganizada ficará se houver cortes de receita sem uma reestruturação prévia. Cortar gastos de custeio da saúde significará oferecer menos remédio para a população, ou menos atendimento médico.

É da mesma natureza sofística a demonização do salário dos funcionários públicos. Se o produto fundamental do Estado são os serviços prestados, se esses serviços são prestados por funcionários públicos, como supor que o problema resida no seu salário? Não bate.

Hoje em dia, há consenso nacional entre especialistas em educação – seja do MEC, de ONGs amparadas por empresas privadas, em educadores de todos os naipes – que ponto central para um ensino de qualidade é a recuperação do salários dos professores, transformando a profissão em algo atraente. Todos os governadores de Estado dizem ser impossível essa melhora, em função dos limites orçamentários. Apostam, aliás, no Fundo do Pré-Sal para melhorar essa política.

Pergunto: qual a receita da Casa das Garças para essa questão, se seu receituário único é o de corte das despesas correntes?

A maneira de tornar o país eficiente não é demonizando as despesas correntes, mas introduzindo métodos de gestão que as torne mais eficientes.

Qualquer programa de melhoria de gestão tem que partir das seguintes etapas:

1. Definir indicadores claros de qualidade dos serviços prestados à população.

2. Definição de metas de melhoria desses indicadores.

3. Definição de melhorias de gestão, racionalização de processos, mas sempre tendo como parâmetro esses indicadores. Não poderá haver queda da qualidade. Com o tempo se perceberá que é possível fazer mais com o mesmo.

4. Instituição de sistemas de avaliação e da premiação da meritocracia no serviço público, não o achatamento linear dos salários.

Mesmo o aumento da eficiência dos serviços públicos não reduzirá as despesas correntes porque o ampliação da cidadania levará a um aumento cada vez maior das exigências pela universalização e melhoria desses serviços.

Na entrevista que fecha “Os Cabeças de Planilha”, FHC admite que sempre serão crescentes as demandas por serviços públicos. É inerente ao processo de inclusão social e de ampliação da cidadania.

Se ao Estado compete prestar serviços de qualidade, de que maneira garantir os investimentos necessários para o desenvolvimento?

De um lado, reduzindo o desperdício – sem prejuízo dos serviços prestados. De outro, melhorando o ambiente econômico para atrair investimentos privados para áreas prioritárias – como infraestrutura.

Enfim, é uma longa discussão.

Mas o fato de sofismas desse nível terem se tornado tão arraigados – inclusive em cabeças pensantes de primeiro nível – mostra a eficácia da ideologia no pensamento de um país. Ideologia é uma praga. Tira qualquer senso de racionalidade.

Clique aqui e leia o post O nó doutrinário do PT, de Jotavê. 

Clique aqui e leia o post O PSDB e o fim do modelo da Nova República.

Clique aqui e leia o artigo O PSDB hoje é uma nau sem rumode Renato Janine Ribeiro, publicado no Valor.

Clique aqui e leia o post Sobre o futuro do PSDB, de Jotavê.

Por Jotavê

Oi, Nassif

Antes de mais nada, uma correção. O que eu disse sobre os intelectuais da Casa das Garças foi que eles formam “um grupo respeitabilíssimo, que tem produzido alguns dos textos mais interessantes de interpretação do Brasil nos últimos anos”. Nâo quer dizer que eu concorde com eles. Quer dizer que eu gosto do que eles escrevem – como gosto de Platão, Descartes, Berkeley, Kant, Wittgenstein e uma porção de outros autores, concordando ou não com o que eles disseram. Vamos por partes, então. No que eu concordo e no que eu discordo?

Discordo da proposta de reduzir a carga tributária brasileira. Os governos FHC e Lula aumentaram  consistentemente os impostos, até trazê-los aos níveis atuais, próximos aos da Europa. O que os liberais argumentam é que isso é disfuncional para a economia, na medida em que diminui a poupança PRIVADA e desestimula investimentos. Além disso, parte do pressuposto (puramente ideológico, eu acho) de que a iniciativa privada é capaz de alocar recursos de modo mais eficiente do que o Estado. Não tenho como avaliar os aspectos econômicos da questão – sigo o debate entre vocês, e vou fazendo minhas opções pelo meio, quando tenho certeza de que existe uma discordância irredutível a questões de fato. De um ponto de vista político, acho a ideia insustentável na Europa e mais insustentável ainda no país que tem as desigualdades gritantes que tem o Brasil. Num país em que as pessoas vivem na beira do esgoto, o Estado não tem que pensar duas vezes. Tem que arrancar impostos de quem tem dinheiro e redistribuir renda da forma mais racional e inteligente possível. O nível de impostos, portanto, é esse, mesmo – por volta de 35% do PIB. É esse o preço, e a sociedade brasileira tem que pagá-lo.

E quanto ao investimento público? Todo mundo (você, antes de mais ninguém) concorda que o nosso é baixíssimo. Anda aí pela casa de 1% do PIB. Teríamos (é o que se diz) que chegar a 3% ou 4% por cento em pouco tempo, para podermos sustentar com infraestrutura o crescimento do país nos próximos dez anos. A MINHA questão é – tirar de onde? Eles, lá do outro lado, respondem – basicamente, da conta da Previdência Social e do custeio (excluindo sempre gastos com saúde e educação – geralmente, têm o cuidado de tabular esse tipo de custeio separadamente, para mostrar). Acho que há o que cortar dos gastos com a Previdência, sim. Unificar os sistemas do funcionalismo público e da iniciativa privada ajudaria bastante – é no setor público que está o rombo. Planejar o sistema par que ele seja viável daqui a dez, quinze anos é uma necessidade. O que há de tão errado numa aposentadoria aos 65 anos para homens e mulheres?

Você fala em gestão. Eu acho ótimo. Só que, para isso, precisamos desengessar o regime dos servidores. Meritocracia significa, entre outras coisas, que você tem a possibilidade de premiar o mérito e TAMBÉM de castigar a ineficiência. Você é a favor de afrouxar as regras para a demissão no serviço público? Se isso vier acompanhado de um plano de gestão, como você propõe, eu sou. Onde houver inchaço, o que devemos fazer? Dadas as regras atuais, não podemos fazer quase nada. O que deve ser privilegiado, em todo caso? Novas contratações? Ou realocação do pessoal já contratado? Ninguém está defendendo demissão em massa, Nassif. Estou defendendo racionalidade na utilização da mão-de-obra já contratada e possibilidade de redesenhar o mapa das funções sem ter que enfrentar processos na Justiça do Trabalho. É só isso.

Você fala em juros. Muito bem. Aqui, uma confissão. Se algum dia eu pensei em votar em José Serra na minha vida foi em função de economistas como VOCÊ me terem convencido de que a ênfase deveria ser posta na espiral de juros altos e câmbio valorizado que fazem a festa dos rentistas. Concordo com você. Os liberais não põem a ênfase aí. Não é que não falem disso. Dizem que qualquer intervenção estatal pressupõe uma queda de braço com o mercado que, na melhor das hipóteses, desorganiza a economia, introduzindo um elemento de incerteza. Economistas como você e como José Serra dizem que não, e eu tendo a acreditar – ou, pelo menos, quero acreditar, pois a alternativa, como você bem diz, é tirar mais dinheiro da Previdência e do custeio.

Me diga, agora, Nassif. Quando foi que o governo Lula sinalizou algo remotamente semelhante a isso? Quando foi que Henrique Meirelles, presidente do Banco Central durante o governo Lula sinalizou alguma coisa remotamente semelhante a isso? Quando foi que Guido Mantega deu mais do que pálidos sinais de que poderia, quem sabe, fazer algo nessa direção, e fez alguma coisa além de ensaiar movimentos tímidos, de que está tentando matar um elefante com um estilingue? Vamos cortar os juros? Apoio qualquer candidato que se comprometa com isso, apesar de todas as ponderações do lado contrário. Quando você souber de um candidato comprometido com isso, me avise. Por enquanto, Nassif, ele só existe na sua e na minha imaginação.

Luis Nassif

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