A tese da armadilha da renda média

Do Valor

Renda média: armadilha ou percalço?

David Kupfer

A coluna anterior, publicada em 11 de março, menciona apenas de passagem a tese da “armadilha da renda média” (“middle income trap”). Essa tese vem sendo sugerida por estudiosos ligados ao Banco Mundial e outras instituições supranacionais como explicação para a inflexão no ritmo de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) experimentada pela maioria dos países emergentes após atingirem um nível intermediário de renda per capita. De acordo com essa tese, os países veem o processo de emparelhamento empacar quando a renda per capita atinge valores de US$ 10 mil a US$ 16 mil (em paridade de poder de compra, valores constantes de 2005).

A tese tem se revestido de grande atualidade porque subentende uma questão decisiva para os rumos da economia mundial: estará a China próxima de encontrar os seus limites dinâmicos e prestes a entrar em uma fase de crescimento (mais) lento?

Defensores da tese argumentam com algumas regularidades marcantes encontradas quando se compara os indicadores sócio-econômicos dos países que se deixam capturar pela armadilha. Primeiro, em termos da composição do PIB, a possibilidade de o esforço de formação de capital liderar a dinâmica da demanda agregada tenderia a arrefecer a partir de determinado nível de renda. A partir desse limiar, o impulso ao consumo de bens e serviços de maior elasticidade-renda passa a ser o elemento condicionante do ritmo de crescimento, requisito que se transmite também à pauta de bens exportados pelo país. Segundo, em termos da composição da estrutura industrial, após uma fase de rápida expansão apoiada em incorporação à matriz produtiva de atividades novas, as forças pró-especialização passam a predominar, levando inicialmente à interrupção e posteriormente a um retrocesso no grau de diversificação da economia. Terceiro, em termos da composição do mercado de trabalho, a rápida absorção de mão de obra de menor qualificação deixa de ser suficiente para alimentar a expansão produtiva, levando a requisitos crescentes de habilidades, capacidades e conhecimentos cuja disponibilidade tende a ficar aquém do exigido pela manutenção do crescimento rápido.

Discussão é decisiva para os rumos da economia mundial pois envolve a China e outros países emergentes

O problema com a tese não está na validade dessas regularidades e sim em tratá-las como uma armadilha. São, de fato, percalços inexoravelmente associados às profundas mudanças estruturais que caracterizam o processo de desenvolvimento. Armadilha corresponde a uma circunstância indesejada da qual é difícil se libertar. Pode-se, porém, evitá-la, contorná-la. Percalço é uma dificuldade inerente ao caminho. É um desafio que não pode ser evitado ou contornado. Ao contrário, deve ser enfrentado e superado.

A forma chinesa de lidar com os percalços do desenvolvimento se dá por meio de políticas ativas de indução de mudança estrutural, tal como é perfeitamente exemplificado pelo 12º Plano Quinquenal (2011-2015) ora em vigor. O plano propõe uma verdadeira guinada no modelo de desenvolvimento econômico do país, atacando frontalmente diversas das causas apontadas para a desaceleração do crescimento: a substituição do mercado externo pelo interno como motor dinâmico da economia; a diminuição da dependência do PIB ao esforço de acumulação de capital, por meio da redução programada do peso da formação bruta de capital na sua composição e, principalmente, a ênfase na inovação nativa e a aposta em algumas indústrias estratégicas emergentes que avancem na consolidação de uma robusta capacitação tecnológica nacional (descrita com precisão pelo mote “Made by China” em substituição ao “Made in China”).

A grande lição que a China dissemina pelo mundo pode ser sintetizada na verdadeira simbiose entre as políticas industrial e tecnológica implementadas no país.

Nos idos dos anos 1970, época em que o Brasil surgiu como modelo bem-sucedido de desenvolvimento, teve lugar aqui uma estratégia que pode ser expressa como a troca de mercado interno nacional, já bastante vasto e, principalmente, em rápida expansão, por capital externo. Não era então difícil justificar essa opção pois entendia-se que o capital era o fator escasso que restringia a sustentação do crescimento. Assim, parte importante do esforço industrial brasileiro foi capitaneado por empresas multinacionais, que transferiram para o país produtos e métodos de fabricação já em fase de difusão internacional, sem maiores preocupações em instituir efetiva capacidade de inovar no mercado local. O problema é que o capital é um animal alado. Com a estagnação da economia mundial do início da década de 1980, o capital externo bateu asas e voou, provocando uma crise macrodinâmica de longa duração, da qual o Brasil ainda hoje se ressente.

Anos depois, a China, também detentora de um vasto mercado interno e igualmente em rápida expansão, adotou uma estratégia em tudo diferente. Trocou seu mercado interno por tecnologia, exigindo das empresas transnacionais que lá se instalaram sólidos programas de transferência tecnológica. E a tecnologia é uma árvore, que lança raízes e cria externalidades que aprofundam ainda mais a sua fixação no território.

Não parece existir algo como uma armadilha da renda média. Existem sim os percalços – e são muitos – da trajetória de desenvolvimento rápido e sustentado e as políticas que visam enfrentá-los e superá-los. Pode parecer um exagero semântico mas essa disjuntiva é estruturante do debate sobre desenvolvimento econômico desde o seus primórdios. E faz toda a diferença.

David Kupfer é professor licenciado do Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ (GIC-IE/UFRJ) e assessor da presidência do BNDES.

Luis Nassif

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