Autor de “O Fim da História” agora defende Estado forte

Por Oscar Pilagallo | Para o Valor, de São Paulo

A história de Francis Fukuyama parece longe do fim. Execrado pela esquerda, por causa da visão triunfalista da democracia associada ao liberalismo econômico, o cientista político americano agora cutuca a direita ao defender a importância de um Estado forte. Ele ganhou proeminência mundial em 1989 ao escrever um artigo, meses antes da queda do Muro de Berlim, sobre o colapso do comunismo no Leste Europeu, o que consagrou o modelo político ocidental, colocando um ponto final nas disputas ideológicas – esse o sentido de “O Fim da História”, título do livro em que elaborou o argumento e que o transformou em celebridade.

Mais rigoroso e denso, “As Origens da Ordem Política” teve recepção comparativamente discreta. Fukuyama mantém a convicção de duas décadas atrás, mas sem o mesmo otimismo. Embora não vislumbre um recomeço da história, identifica ameaças ao modelo hegemônico no Ocidente.

Considerado guru da direita americana nos anos 90, Fukuyama atualmente está mais para grilo falante do Tea Party, o movimento neoconservador que se fortaleceu nos últimos anos nos EUA. Tal posição foi esboçada em suas críticas à política externa de George Bush, sobretudo em relação ao Iraque. Não que ele condene a intenção de exportar os valores americanos. Apenas acredita que o convencimento, e não a guerra, seria o canal de transmissão da democracia.

Para Fukuyama, a ordem política moderna está assentada sobre o seguinte tripé: um Estado eficiente, atuando sob o primado da lei e administrado por um governo obrigado a prestar contas aos cidadãos (ou governo “responsável”, como a edição brasileira preferiu traduzir “accountability”). O autor relata, por vezes mais minuciosamente do que o necessário para demonstrar a tese, que, embora vários países tenham contado com um ou dois desses elementos ao longo da história, a combinação dos três só ocorreria pela primeira vez no século XVIII, na Inglaterra.

A coexistência dos três conjuntos de instituições é um milagre da política moderna, segundo Fukuyama. Afinal, defende o autor, enquanto o Estado forte concentra o poder, o Estado de direito e o governo responsável atuam em sentido contrário, limitando seu poder. E, no entanto, logo depois de nascer na Inglaterra, esse sistema, o embrião da democracia liberal, foi bem-sucedido em alguns países, como na Escandinávia e nos EUA.

Hoje, na avaliação de Fukuyama, a Dinamarca é o país que melhor se equilibra sobre os três pilares. “Chegar à Dinamarca” é a metáfora repetida pelo autor para significar atingir o Estado ideal. Trata-se de “um lugar mítico, por suas boas instituições políticas e econômicas: é estável, democrático, pacífico, próspero, inclusivo e tem níveis baixos de corrupção”.

Fukuyama preferiu ignorar os modelos grego e romano da Antiguidade, argumentando que o republicanismo (ele evita a expressão “democracia”, por causa da limitação dos direitos civis na época) só funcionou bem em sociedades pequenas e homogêneas, tanto que as cidades-estados gregas foram conquistadas e a república romana deu lugar ao império. Assim, passando por cima dos paradigmas clássicos, o autor começa a contar a história a partir da China do século 3 a.C., que ele identifica como precursora do Estado moderno, de acordo com a definição de Max Weber, por ter instituído o monopólio da violência legítima sobre o território onde antes havia tribos em guerra.

O livro pode ser lido como alerta aos conservadores que propugnam um Estado mínimo. “Segundo a fantasia da ausência de Estado, predominantemente de direita, de alguma forma a economia de mercado tornará o governo desnecessário e irrelevante”, diz. Aliás, ele se corrige com uma provocação: não se trata de fantasia, mas de realidade em certas partes do mundo, como na África subsaariana, descrita, com ironia, como um “paraíso libertário”, uma “utopia de baixos impostos”.

O prestígio da democracia liberal não está em questão, segundo o cientista social. Evidência disso é que regimes autoritários pagam tributo à democracia, encenando eleições para se legitimarem. O problema é de execução: poucos governos são responsáveis e eficazes “porque as instituições são fracas, corruptas, carentes de capacidade ou, em alguns casos, totalmente ausentes”. Fukuyama exemplifica com a situação da democrática América Latina, onde o primado da lei é “extremamente fraco, do policial que aceita suborno ao juiz que sonega impostos”.

O livro advoga que a legitimidade da democracia liberal está condicionada a seu desempenho, que, por sua vez, depende de sua capacidade de manter um equilíbrio adequado entre a forte ação do Estado e as liberdades individuais. Essa, em sua opinião, é a ameaça ao liberalismo. A falha dominante das democracias modernas seria “provavelmente a fraqueza do Estado”.

“As Origens da Ordem Política” vai além das observações destinadas a interferir nos debates contemporâneos. Fukuyama também interpela historiadores e filósofos do passado ao se debruçar sobre os vários aspectos da formação do Estado, num recorte histórico que vai das sociedades primitivas às vésperas da Revolução Francesa (os dois séculos seguintes serão objeto de um prometido segundo volume). Nesse esforço, põe em xeque o papel da Igreja Católica na construção do Estado e o legado dos primeiros teóricos liberais modernos, para citar dois exemplos.

Fukuyama rebate, ainda que indiretamente, a acusação de que a igreja teria freado o desenvolvimento do capitalismo em função da posição contrária à cobrança de juros elevados. Para o autor, ao contrário, a igreja foi decisiva na formação do Estado e das corporações ao eliminar sistematicamente, a partir do século 6, as possibilidades de as famílias deixarem herança aos descendentes, o que aumentou a doação de terras e imóveis à própria igreja. Em consequência, a organização tribal foi abalada na Europa Ocidental enquanto o vasto patrimônio da Igreja exigiu a criação de uma hierarquia gerencial, dois fatos que prepararam o terreno para o desenvolvimento da economia.

Quanto aos teóricos liberais, ele discorda de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, que, para além das divergências entre si, tinham em comum a descrença de que o homem pudesse ser naturalmente social. O autor fica com a visão de Aristóteles, para quem os seres humanos são políticos por natureza. Tal percepção, diz ele, é hoje corroborada pela biologia e antropologia modernas. Fukuyama chega a concluir pela validade do conceito de darwinismo social. Embora critique o “caráter intolerante e racista” da teoria e evite julgamento de valor, afirma que “as sociedades que conseguem se adaptar costumam superar as que não o fazem, assim como os organismos individuais”.

A história de Fukuyama não terminou. Nem a polêmica que ele provoca.

“As Origens da Ordem Política”

De Francis Fukuyama (tradução: Nivaldo Montigelli Jr.). Rocco, 592 págs. R$ 69,50

Oscar Pilagallo é jornalista e autor de “História da Imprensa Paulista” (Três Estrelas) e “A Aventura do Dinheiro” (Publifolha).

Luis Nassif

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