Desordem cambial

Do Valor

Desordem cambial

Por Jose A. Ocampo
19/04/2010

É essencial a criação de financiamento confiável de larga escala para os países em desenvolvimento durante crises

Dois aspectos preocupantes na recuperação econômica em curso são a natureza deprimida do comércio mundial e o renascimento precoce dos desequilíbrios nos pagamentos internacionais em nível mundial. Estimativas do FMI e da ONU indicam que o volume de comércio internacional em 2010 ainda ficará de 7% a 8% abaixo de seu pico em 2008, ao mesmo tempo em que muitos países, ou a maioria deles, inclusive os países industrializados, estão buscando reforçar suas contas correntes.

De fato, se acreditarmos nas projeções do FMI, os superávits em conta corrente acumulados na economia mundial deverão crescer quase US$ 1 trilhão entre 2009 e 2012! Isso é, naturalmente, impossível, pois superávits e déficits devem estar em equilíbrio na economia mundial como um todo. Isso reflete simplesmente a força recessionária (ou deflacionária) da fraca demanda mundial que paira sobre a economia mundial.

Nessas condições, o crescimento de grandes economias impulsionado por exportações é uma ameaça à economia mundial. Isso é verdade para a China, Alemanha (como Christine Lagarde, ministra das Finanças francesa tem lembrado), Japão e EUA.

Países com excedentes devem adotar políticas expansionistas e valorizar suas moedas. Mais amplamente, na medida em que os principais países de mercados emergentes continuarão a liderar a recuperação mundial, eles deveriam reduzir seus superávits em conta corrente ou até mesmo gerar déficits, para ajudar, por meio de um aumento nas importações, a difundir os benefícios do seu crescimento mundial.

Mas, embora isso implique que as moedas de mercados emergentes sejam valorizadas, apreciações desordenadas fariam mais mal do que bem. Para usar um ditado americano, isso pode significar jogar fora o bebê (crescimento económico) com a água do banho (apreciação cambial).

Consideremos a China, responsável, de longe, entre as economias emergentes, pela maior parcela do comércio mundial. Uma valorização real do yuan é necessária para uma recuperação econômica mundial equilibrada. Mas uma apreciação desordenada pode afetar seriamente o crescimento económico chinês, ao perturbar suas indústrias exportadoras, o que geraria importantes efeitos adversos em toda a Ásia Oriental.

A China necessita uma grande reestruturação interna, assumindo menor ênfase em exportações e investimentos, seus dois motores de crescimento nas últimas décadas, e maior peso em consumo pessoal e governamental (educação, saúde e proteção social, nesse último caso). Mas essa reestruturação tende a reduzir, e não aumentar, a demanda de importações, pois exportações e investimentos são muito mais intensivos em importações do que consumo.

Além disso, uma forte valorização do yuan criaria um risco de deflação interna e de crise financeira. As autoridades chinesas certamente parecem ter em mente essa interpretação das raízes do problema japonês ao procurar evitar uma valorização rápida.

O único cenário desejável, portanto, é uma economia chinesa que transmita seu estímulo ao resto do mundo, principalmente mediante um aumento das importações geradas por rápido crescimento econômico (ou seja, o efeito renda sobre a demanda de importações), em vez de apreciação cambial (o efeito substituição). Isso exige manter um crescimento rápido e, simultaneamente, empreender uma grande reestruturação interna, para o que uma apreciação gradual é muito mais adequada.

Agora, considere outros importantes mercados emergentes. Aqui, a valorização da moeda já está ocorrendo, produzida por enormes entradas de capital desde o segundo trimestre de 2009, e em alguns casos já podem ser consideradas excessivas (por exemplo, no Brasil).

Esses países podem, naturalmente, resistir à pressão ascendente sobre suas moedas mediante acumulação de reservas cambiais, como fizeram antes da crise financeira mundial. O resultado é, obviamente, paradoxal: os fundos privados que afluem para esses países são reciclados – ao ser convertidos em títulos do Tesouro EUA -, mediante investimento das reservas acumuladas. Por que deveriam os bancos centrais dos países de mercados emergentes empreender essa peculiar intermediação financeira, que representa um custo substancial, pois o rendimento dos recursos privados é superior ao das reservas.

A implicação, aqui, é a seguinte: confiar em que a livre circulação de capitais promova a valorização do câmbio e crie déficits em conta corrente pode gerar uma infinidade de problemas, entre eles maior lentidão do crescimento econômico e risco de bolhas e de crises financeiras nesses próprios países. Portanto, deve ser considerada uma forma mais ordenada para induzir déficits em conta corrente sem criar riscos de turbulência no crescimento das economias emergentes.

Uma solução (já defendida por alguns, inclusive eu, e adotada em certa medida por alguns países) é uma utilização mais ampla de regulamentação da conta de capital. Surpreendentemente, no entanto, essa questão tem estado completamente ausente dos atuais debates mundiais sobre reforma financeira. Felizmente, o FMI abriu as portas para a discussão dessa questão em recente texto explanando a posição do quadro do FMI.

Igualmente importante, um cenário mundial desejável é, possivelmente, aquele em que a maioria dos países em desenvolvimento incorra em déficits em conta corrente. Mas isso requer grandes reformas no sistema financeiro mundial para reduzir as vulnerabilidades que esses déficits geraram no passado, e que se refletiram em grandes crises financeiras nos países em desenvolvimento.

Essas crises passadas deram lugar a uma forma de ” autosseguro ” nos países em desenvolvimento, mediante um acúmulo de reservas. Isso ajudou muitos deles a resistir à recente turbulência, mas também contribuiu para desequilíbrios nos balanços de pagamentos mundiais.

Recentes reformas no FMI são apenas um passo no sentido de tentar criar melhores instrumentos financeiros para ajudar esses países. É essencial, em particular, a criação de financiamento confiável de larga escala para os países em desenvolvimento durante crises, mediante um mix de emissões de direitos especiais de saque contracíclicos e de financiamentos emergenciais sem condições onerosas.

Jose Antonio Ocampo professor da Columbia University, foi subsecretário-geral para Assuntos Econômicos e Sociais da ONU e ministro das Finanças da Colômbia

Luis Nassif

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