Energia entre América Latina e Europa

Do Portal Luís Nassif

Do Blog de Ronaldo Bicalho

Regulação: a construção de uma ponte sobre um oceano de distância

Por Luís Eduardo Duque Dutra

O determinismo geográfico é implacável, oceanos separam culturas, povos e países e, assim, vencer as distâncias ditadas pelos grandes mares exige dar passos ousados na direção do enfrentamento da diversidade cultural e da superação de traumas históricos. Apenas isto bastaria para saudar a iniciativa espanhola de reunir, em uma mesa de discussão, os reguladores de energia europeus e latino-americanos. Ao assumir a presidência rotativa da União Européia, a partir deste ano, o governo espanhol convidou alguns membros da Associação Ibero-Americana de Reguladores de Energia (ARIAE) para uma reunião com o Conselho Europeu de Reguladores de Energia (CEER); reunião que ocorreu 8 de abril passado. Além de marcar a chegada da Espanha à Presidência e de dar oportunidade à confrontação das experiências, a intenção foi preparar duas importantes reuniões que acontecerão em paralelo no final de abril: o Fórum Eu-Latam de energias renováveis em Berlim, dias 30 e 31, e o encontro anual da Ariae em Salvador, entre 28 e 30. A oportunidade não poderia ser melhor e poucos países poderiam assumir a liderança de fazê-la com tanta propriedade, como a Espanha.

Poucos conhecedores negariam que a história espanhola no século XX é o laboratório da experiência do ocidente – e da Europa em particular – em tudo que ela tem de trágico e passional em termos políticos. Poucos também negariam a influência desta história sobre os eventos que se passaram no além-mar, nas ex-colônias. Para o grande país ibérico, o século XX foi de transformações e radicalismo, que se iniciou com a perda de Cuba, em 1898, e que consolidou uma profunda e longa decadência política. O império colonial foi sepultado e o Reino se fechou sobre si, até a eclosão da sangrenta Guerra Civil, de onde emergiu uma ditadura franquista que, por mais de três décadas, silenciou do País Basco a Catalunha, passando pelas Astúrias e a Galícia, a riqueza cultural proporcionada por uma diversidade ímpar. Como pôde ocorrer tanta sombra, em país com tanto sol, não cabe aqui discutir e, sim, anotar que, das cinzas de Franco, nasceu uma nova Espanha, livre, democrática e profundamente européia. Mas, em Espanha nada se faz pela metade, tudo se faz com a paixão de uma tourada e com muitas luzes, como um quadro de Velásquez, ou de Goya. Talvez por isso tenha sido, entre todos os países da Europa continental, aquele que primeiro e mais profundamente se enveredou pelo liberalismo econômico do final do século passado e não surpreende, agora, ter sido aquele que foi o mais afetado pela presente crise econômica.

É por esses e outros motivos que não existe nação mais talhada para reconstruir, ou renovar as pontes sobre o Atlântico. E, a propósito da natureza ibérica, vale ressaltar símbolos e místicas, que parecem marcar as viradas de século, pelo menos no que diz respeito às transformações espanholas. No final do século XIX, a Espanha embarcava em uma decadência política sem volta, em que definitivamente o poder militar e naval ibérico era suplantado pelo anglo-saxônico. Contudo, a decadência foi em relação ao mundo. Recentes estudos sobre a história daquele país sublinham que não foi o que se constatou internamente, na economia e na sociedade espanhola[1]. As reformas sociais encontraram espaço, as empresas e os negócios cresceram, catalãos, bascos e madrilhenhos prosperaram sob a égide de um consenso entre as elites conservadoras e liberais. A rotação no poder apenas entre eles deu estabilidade às regras, ao mesmo tempo em que excluiu anarquistas, comunistas e radicais e, aos poucos, inseriu a classe média espanhola e metropolitana na Europa moderna. A profissionalização da justiça, em 1888, a edição do Código Civil, em 1889, e o início do sufrágio universal masculino, em 1890, foram avanços decisivos. Pode existir algo mais representativo desta inserção, ao mesmo tempo contraditória e integral, que a Barcelona construída por Anthony Gaudi, Lluis Domènech Montaner e Josep Puig i Cadafalch?

Um século depois, para simbolizar mais uma virada, as mudanças foram no mesmo sentido; isto é, na busca de uma Espanha moderna, no passo de seus vizinhos. Antes da virada do século XX, a economia do país foi marcada por importantes transformações: o ingresso na comunidade européia, a onda de privatização, que não deixou nenhuma empresa nas mãos do Estado, a abertura do país ao exterior, para muita além da Europa e, principalmente, pela redescoberta da América Latina por parte do grande capital espanhol. Foram as empresas de geração elétrica, gás natural, petróleo, telecomunicações, hotelaria e os bancos que lideraram a vaga de investimentos no Novo Continente. Na Península Ibérica, os avanços do liberalismo, na economia, e da democracia, na política, foram concomitantes, os processos se auto-alimentaram e se realizaram de forma acelerada e irreversível. Daí surgiu a liderança da Espanha na condução e na divulgação de uma regulação neo-liberal que, ainda hoje, defende a independência das agências, o papel único do mercado e a liberdade dos negócios. Barcelona novamente, sempre ela, simboliza a mudança à perfeição, pois reflete esta nova Espanha, transformada pelas Olimpíadas de 1992. Um país onde, do futebol ao despacho e transporte de energia elétrica, tudo pode se transformar em lucro, tudo pode ser cotado em bolsa. Esgotado este momento último de modernização, a crise recente foi proporcional ao impulso anterior: entre todos os países listados abaixo, a Espanha foi quem mais perdeu emprego. Uma reversão completa da conjuntura, em um país que se habituara a criar emprego, ano após ano, desde meados da década passada.

Luis Nassif

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