Entrevista do ex-presidente do BC argentino

Do Valor

Cristina tomou o BC argentino para financiar seu governo, diz Redrado

Daniel Rittner, de Buenos Aires
18/05/2010

Ex-presidente do BC diz que modelo econômico da Argentina é insustentável

Pivô de uma crise institucional no início do ano, o economista Martín Redrado está convencido de que a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, resolveu “tomar o Banco Central para financiar o restante de seu mandato”. À frente da BC argentino, ele foi o último a saber da manobra. Era manhã de segunda-feira e Redrado respirou aliviado com a notícia de que o resgate da Dubai World trouxera calma aos mercados. Ligou o celular. Havia um recado do secretário de Cristina. Convocava-o para uma reunião às 11h30, na Casa Rosada.

No gabinete presidencial, Redrado tomou conhecimento, apenas meia hora antes do anúncio público por Cristina, do decreto deDaí em diante, seguiu-se o confronto já conhecido, com a resistência de Redrado em liberar as reservas, um novo decreto com sua demissão (apesar da lei que assegurava a autonomia do BC), liminares judiciais, embargos nos EUA, brigas com o Congresso. Redrado finalmente renunciou no fim de janeiro, a oito meses de completar seus seis anos de mandato. Desde então, conversa com lideranças do peronismo rompidas com Cristina e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. É um potencial ministro da Economia da oposição.

“Aos 48 anos, minha carreira não terminou aqui”, disse ao Valor no escritório no elegante bairro da Recoleta em que lidera um grupo de economistas e amigos animados em elaborar um projeto para o país. “A Argentina precisa de um plano e de uma equipe confiável.”

Nesta entrevista, sua primeira à imprensa brasileira após a crise no BC argentino, Redrado alerta sobre a iminência de descontrole da inflação no país. Explica por que se opôs tanto ao uso das reservas. E diz que o Brasil deverá crescer 7% neste ano e se tornar “a garota sexy do bairro”. Não vê problemas no déficit em conta corrente brasileiro, mas pede “cautela” com o câmbio e mais “esforço” do governo na área fiscal. “Não se deve dar apenas ao BC o peso de resolver tudo com a política monetária”, avisa.

Valor: O sr. hoje critica duramente a política econômica do governo, mas fazia parte dele desde o início da gestão dos Kirchner. Por que não expôs essas divergências antes?

Martín Redrado: Eu as expus. Até o dia 14 de dezembro, minhas posições haviam sido acatadas pelo governo. O BC conseguiu evitar alguns ataques às reservas. Em 2006, quiseram usá-las para reestatizar a YPF. Dissemos que não, e o governo concordou. Não era necessário sair vociferando, o importante nunca foi cantar vitória. Em 2007, houve uma sondagem para usar as reservas no financiamento de um plano de infraestrutura e de obras públicas. Em 2008, a intenção era pagar o Clube de Paris. Depois, em 2009, planejaram financiar a venda de carros populares. Tomei posições profissionais e críticas, marcando o espaço do BC no que se refere à gestão das reservas, à taxa de câmbio e à política de juros. Fora disso, que fizessem a política econômica que quisessem. Mas que não invadissem o meu metro quadrado. Eu não mudei. O governo é que decidiu tomar o BC para financiar o restante de seu mandato.

Valor: O BC foi cúmplice da maquiagem do índice de inflação pelo Indec [Instituto Nacional de Estatística e Censos, o IBGE argentino], que ocorre desde 2007?

Redrado: A palavra do presidente do BC deve ser escassa, reger-se pela lei de oferta e demanda. Deve-se falar pelos relatórios. Lamentavelmente, o relatório de inflação não tem uma divulgação ampla, mas, desde que houve problemas com o Indec, deixamos de usar seus índices. Não havia um sinal mais contundente do que esse. Recordo também que, em 2007, numa conferência na Alemanha, falei exatamente sobre isso. Gerou uma confusão enorme, o ex-presidente Kirchner se irritou muito e me acusou de ter lançado o tema da inflação no meio das eleições, que eram em outubro. Não falávamos muito, mas demarcávamos território nas conversas pessoais que tínhamos, nas reuniões de governo, nos poucos discursos que fazíamos.

Valor: Por que o sr. se opôs, afinal, ao uso das reservas?

Redrado: Eram três pontos. O primeiro era judicial e envolvia a questão dos processos movidos pelos credores. Eles buscam demonstrar, nos tribunais, que o BC pode ser considerado um alter ego do Tesouro e pagar os títulos [ainda em situação de moratória]. Em segundo lugar, porque significa usar o BC para emitir moeda. Na economia, não há mágica. Alguém paga a conta, e a Argentina está pagando a conta com mais inflação. Por fim, porque o Congresso deveria ter opinado. Não reivindico ser o dono da verdade. Para mim, as reservas são fundamentalmente para cuidar do bolso dos argentinos, a última peça do dominó quando todo o resto cai. Mas a minha visão pode ser equivocada. As repúblicas exigem debates, e um presidente da nação, por mais iluminado que seja, não pode definir por decreto o que se faz com as reservas.

Valor: Qual foi o momento mais tenso dessa crise? Quando a polícia o impediu de entrar na sede do BC?

Redrado: [Para uns dez segundos e pensa] Foi no dia 7 de janeiro, uma quinta-feira, quando recebi o decreto da presidente [Cristina Kirchner] me demitindo do cargo. Ali havia que decidir o que fazer: se brigar ou se ir embora em silêncio. Decidi que era preciso seguir mecanismos legais, mas foram umas cinco ou seis horas tensas, desde as sete da noite, convocando advogados, redigindo uma demanda judicial que apresentamos no dia seguinte. Outro pico de tensão, sem dúvida, foi quando colocaram a polícia. Quis demonstrar o autoritarismo do governo, já que não havia nenhuma ordem judicial. Para evitar um show na segunda-feira de manhã, um escândalo midiático e desnecessário, decidi aparecer no domingo à noite – quando barraram a minha entrada.

Valor: A maioria dos economistas prevê inflação em torno de 25% na Argentina em 2010 e o governo já admite taxa de dois dígitos. Há risco de uma espiral inflacionária?

Redrado: No ano passado, qualquer indicador confiável mostrava uma taxa de 12% a 13%. Hoje estamos com 25%, com tendência de ir a 30%. O BC deve ter muito cuidado com a gestão da política monetária. Veja a transferência ao Tesouro dos lucros contábeis do BC, de 23,5 bilhões de pesos neste ano, dos quais 10,5 bilhões foram lucros com a valorização de títulos. Ao fazer isso, o BC dá mais que os 3 bilhões que constava na nossa programação monetária de setembro. Ou seja, multiplicou-se por oito a quantidade de pesos que o Tesouro está absorvendo. Além disso, há a transferência de reservas para pagar a dívida. A emissão de moeda superou a demanda monetária e isso gera pressões inflacionárias.

Valor: A inflação continuará subindo, então?

Redrado: Eu estava vendo as negociações salariais em curso. Os trabalhadores do setor plástico tiveram reposição de 29%. No setor de alimentos, estão pedindo 38%. Se os sindicatos que já fecharam acordos voltarem a abrir negociações antes de terminar o ano, há uma chance de espiralização. Tudo depende da pauta salarial e da pauta monetária. Eu já dou a pauta fiscal como fora de controle. As despesas crescem 40% ao ano, enquanto a arrecadação aumenta 31%. Mas o governo pensa que, gastando mais, recuperará a popularidade. Está equivocado.

Valor: Costuma-se pintar um retrato catastrófico da Argentina, como sendo um modelo esgotado, mas o país tem crescido a taxas altas.

Redrado: É uma economia que pode ser comparada a um avião com duas turbinas. Uma delas está superaquecida, que é a do consumo. Outra está muito fria, que é a do investimento. Com isso, é um avião que voa bastante inclinado e pode terminar caindo. A balança comercial tem superávit, graças à boa colheita, principalmente de soja. Isso gera uma oferta de dólares que a Argentina nunca teve e dilata as tensões ao longo do tempo. Mas vão se somando inconsistências de política econômica.

Valor: Quais?

Redrado: Hoje claramente se está usando a taxa de câmbio como âncora para não aumentar as expectativas de inflação. Mas a combinação de um câmbio semifixo, como o que existe desde que fui embora do BC, e uma inflação de 30% é inconsistente. Cedo ou tarde, haverá uma complicação.

Valor: E por que ela não apareceu até agora?

Redrado: A Argentina tem estoque de poupança, mas boa parte dele foi sendo comida rapidamente. O governo comeu 130 bilhões com a estatização das administradoras dos fundos de pensão, comeu o que havia no Banco de la Nación e então avançou no BC.

Valor: O que resta para comer?

Redrado: Resta o compulsório dos depósitos em dólares que estão no BC. Há US$ 5 bilhões disponíveis. O governo aventou, em meados de 2009, a possibilidade de que os bancos trocassem obrigatoriamente o compulsório por um título público. Eu me neguei a fazer isso. Mas agora o BC responde às ordens do governo.

Valor: No Brasil, teme-se que esteja ocorrendo um processo de desindustrialização e crescimento das exportações baseado em commodities. Isso é temeroso?

Redrado: Hoje a Ásia emerge como primeiro polo de atração em termos de investimentos e financiamento, e a América do Sul em seguida, obviamente com o Brasil à frente. A indústria automotiva está mostrando um forte crescimento. No que diz respeito a alimentos, deve-se olhar muito mais as cadeias de valor, não apenas a produção de commodities. A região está conseguindo fazer isso. Antes dizíamos ser a horta do mundo. Eu digo agora que é preciso ser o supermercado do mundo. Exportar macarrão em vez de farinha, exportar óleo em vez de soja em grão. É um grande desafio, mas temos boas possibilidades de não cometer o mesmo erro do século XX, de sermos fornecedores de matérias-primas.

Valor: Como está vendo o desempenho da economia brasileira?

Redrado: O Brasil pode crescer 7% este ano. Fez uma política de inserção internacional muito inteligente e virou a garota sexy do bairro, aquela com quem todo mundo quer sair. Isso gerou fluxos de investimentos muito importantes. Uma questão importante, reflexo disso, é como administrar a taxa de câmbio para não tirar competitividade dos setores produtivos.

Valor: E como administrar a taxa de câmbio, então?

Redrado: Com cautela. Os processos de apreciação violentos não são bons. Deve-se ter muito cuidado com o capital especulativo e diferenciá-lo do capital produtivo. No futuro, pode ocorrer o fenômeno inverso, de fuga de divisas em busca de segurança. Países como os EUA ainda estão com muletas fiscais e monetárias. Uma hora isso vai acabar. Pode haver um aumento das taxas de juros no mundo, o que estimularia uma saída de capitais semelhante à que vivemos no último trimestre de 2008, com depreciação nas moedas dos emergentes.

Valor: Isso já pode acontecer por causa da crise da Europa?

Redrado: Não pela crise europeia. É mais pelo que pode haver nos EUA. O presidente Obama não pode ter outro pacote de estímulos fiscais. O pacote de quase US$ 800 bilhões, votado no ano passado, termina em 2010 e ele não tem base suficiente no Congresso para renová-lo.

Valor: Quanto tempo o Brasil pode aguentar, sem a necessidade de ajuste, uma sequência de déficits em conta corrente?

Redrado: Não gostaria de falar sobre a situação do Brasil, em particular. Mas a história econômica e os estudos acadêmicos indicam que um país entra na zona de risco quando se cristaliza um déficit em conta corrente de 5% ou 6% do PIB. Pode haver algumas incertezas, como sempre acontece em um período pré-eleitoral, mas parece que as linhas de política econômica no Brasil estão marcadas. Ninguém espera mudanças bruscas. Uma coisa que eu sempre recomendo é fazer políticas anticíclicas. Quando estamos em um processo de expansão tão forte, há que se gerar fundos para o momento de escassez.

Valor: Este é o momento de economizar?

Redrado: Claro. Crescendo de 7% a 7,5%, o Brasil poderia fazer um esforço fiscal e guardar um excesso de superávit, separá-lo para uso no futuro, para o caso de uma interrupção súbita do fluxo de capitais. A conjuntura está muito favorável, mas devemos nos preparar para um mundo cada vez mais volátil.

Valor: O Brasil tem hoje autonomia operacional do BC, mas ainda não independência legal. A crise que o sr. protagonizou ensina algo a respeito?

Redrado: Não gosto de transportar os casos. A realidade argentina não pode ser aplicada ao Brasil e vice-versa. Mais, além da discussão da autonomia, certas decisões que fazem parte da estrutura do BC devem passar pelo Congresso e ter aprovação parlamentar. Acredito muito no sistema de freios e contrapesos.

Valor: No Brasil, a discussão que já chegou à campanha eleitoral é se o presidente da República deve limitar as altas de juros ou forçar sua queda quando discorda da diretoria do BC…

Redrado: Mais do que a decisão do presidente, a questão é como se pode coordenar a política monetária com a política fiscal. Isso requer bastante diálogo entre o presidente do BC e o ministro da Economia. Todos têm o seu papel. Não se deve dar apenas ao BC o peso de resolver tudo com a política monetária. Se há aplicação de políticas anticíclicas, seguramente é mais fácil baixar as taxas de juros. necessidade e urgência (similar à medida provisória no Brasil) que previa o uso de US$ 6,5 bilhões das reservas internacionais do país para pagar dívida e liberar assim dinheiro do orçamento para despesas do governo. Ele discordou, mas nem teve tempo de argumentar. Ainda conseguiu sussurrar, caminhando rumo à saída do gabinete, para o ministro da Economia, Amado Boudou: “Você foi o animal que fez isso?”. “Martín, era muito pior”, teria dito Boudou.

Luis Nassif

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