Como a riqueza vai destruir a democracia, por Antonio David Cattani

Enviado por Antonio Ateu

https://www.youtube.com/watch?v=x0X9lKVuyRU width:700 height:394

Do Extra Classe

Podres de ricos investem no desastre social

Por Flavio Ilha

Economista, professor e um dos mais respeitados pesquisadores sobre a concentração de riqueza no mundo, Antonio David Cattani está lançando um novo livro. Em Ricos, podres de rico (Tomo Editorial, 64 páginas), disseca de forma didática e acessível – “sem economês”, salienta – como o aumento da riqueza nas mãos de poucas empresas ou pessoas é um risco à democracia, além de uma ameaça ao próprio capitalismo. “A crise de 1929 foi provocada pelo mesmo fenômeno que estamos observando agora. Em um, dois anos, vamos ultrapassar aquele patamar de concentração. É a crônica de um desastre anunciado”, diz nesta entrevista ao Extra Classe.


Fotos: Igor Sperotto

Extra Classe – O senhor estuda a concentração de riqueza nas mãos de poucas pessoas há pelo menos dez anos. A que conclusões chegou nesse período?
Antonio Davi Cattani – Meu argumento é que a concentração de renda com a existência de multimilionários é nefasta para a economia e para a democracia. Para a democracia parece evidente, gera corrupção, tráfico de influência. Mas na economia persiste uma discussão sobre a importância de se acumular riqueza antes de distribuí-la. Em outras palavras, a tese de que a concentração de renda criaria mecanismos de maior eficiência econômica para investimentos produtivos que gerassem mais empregos e oportunidades. Bem, dez anos depois posso afirmar que isso é uma falácia. Uma mentira deslavada. Um discurso dos ricos, que querem apenas justificar seus rendimentos e seus privilégios.

EC – Não se trata de um fenômeno do capitalismo brasileiro?
Cattani – Não, de jeito nenhum. Em nenhum capitalismo, em nenhum lugar, a acumulação volta para a sociedade. Em outro livro (A Riqueza Desmistificada, 2007) eu analiso a situação dos Estados Unidos, onde há uma redução de impostos para os mais ricos, desde o primeiro governo de Bill Clinton (a partir de 1993) até o Barak Obama. Mostro ali que, ao contrário do que justificam os teóricos da concentração, não há mais investimentos, mas apenas mais especulação, o que gera instabilidade econômica e mais consumo de produtos de alto luxo, iates, jatinhos, viagens ao espaço. Os podres de rico têm tanto dinheiro que em determinado momento surge a seguinte questão: investir mais para quê? Para se incomodar contratando mais gente? Se eu posso ganhar dinheiro, muito dinheiro, com isenções, com privilégios fiscais? No caso brasileiro, que você menciona, o agravante é que a concentração de riqueza permite comprar, entre outras coisas, o próprio Congresso. Dou o exemplo da JBS, que investiu milhões de reais, centenas de milhões de reais, em todos os partidos, por uma razão bem objetiva: defender seus privilégios. Os bancos, a indústria farmacêutica, o ensino particular, o agronegócio, todos usam essa estratégia. Isso é um atentado à democracia.

EC – Qual a relação possível dessa concentração de riqueza com a nossa atual crise política?
Cattani – Total. O golpe do ano passado foi todo financiado por essa concentração, por esse poder econômico nas mãos de poucos. Não estamos falando do empresariado em geral, há empresários sérios e comprometidos com resultados, que cumprem as leis, mas do grande capital, dos grandes conglomerados que têm um controle estrito sobre a política e também sobre a mídia.

EC – O que isso tem a ver, por exemplo, com a condenação do ex-presidente Lula? Há alguma relação?
Cattani – Sim e não. Por um lado, a concepção da chamada República de Curitiba segue esse padrão concentrador: um pessoal forjado nos Estados Unidos, com uma mentalidade antipopular e elitista, cuja visibilidade se deve ao apoio dos grandes grupos econômicos, que contamina principalmente a classe média. Dou um exemplo: a indústria farmacêutica não suportou a ideia de uma medicina preventiva, desenvolvida nos governos do PT. O ideal, para esse segmento, é deixar as pessoas adoecerem para vender remédios. Outro exemplo: o ingresso de alunos das classes mais baixas na universidade pública, que provocou indignação em muitas áreas específicas. Isso evidentemente está associado com concentração de renda e espírito elitista. Mas não é uma exclusividade brasileira, a concentração de renda ocorre em todo o mundo, até na Suécia – que era um modelo clássico de distribuição – o que não remete à criminalização do ex-presidente Lula. De modo geral, a concentração está se acentuando nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra.

EC – Desde quando?
Cattani – Desde os anos de 1980. Basicamente devido à mobilidade do capital financeiro obtida a partir da tecnologia da informação. O poder desse pessoal, o poder desses podres de ricos, só aumentou. Eles compram, corrompem, criam leis, privilégios, isenções. E quando tudo dá errado, dão um golpe de Estado ou, se não for possível, mandam o dinheiro para fora e o reintegram à economia quando as coisas estiverem melhores. Essa história de que os investidores estrangeiros estão voltando ao país, por exemplo, é mais uma balela. É tudo capital brasileiro, nacional, capital que está lá fora, que foi obtido de forma ilegal, que está sendo repatriado.

EC – Por que tão poucos pesquisadores estudam a riqueza na academia?
Cattani – Porque é muito mais fácil trabalhar com a pobreza, com os pobres. Entrevistar um papeleiro, um operário, um gerente de fábrica, é tranquilo. Agora, vai tentar entrevistar um grande empresário, vai perguntar ao (Jorge) Gerdau por que ele levou a sede do seu grupo econômico para Amsterdã (Holanda). Primeiro, você não chega perto dele nem com uma agenda especial, de pesquisador. Depois, a informação essencial é protegida, não se torna pública de jeito nenhum. Eu escrevi um artigo sobre fraudes corporativas e apropriação de riqueza que não consegui publicar no Brasil, apenas no México (na revista Convergência), em 2009. Isso que tinha apenas informações públicas.

Podres de ricos investem no desastre socialEC – Qual é a metodologia dos muito ricos para ficarem cada vez mais ricos?Cattani – Primeiro, os muito ricos se protegem mutuamente. Ou seja, transparência (de informações) só vale mesmo para o Estado, para os governos. Nas empresas deles, não mesmo. Segundo: fomentam ideologicamente a ideia de meritocracia, a ideia de que a pobreza é um problema, e a riqueza, em contraponto, é solução. É claro que não é a solução, a concentração da riqueza agrava o problema da desigualdade. Isso é óbvio. Mas essa falsa meritocracia acaba prevalecendo, as pessoas acham que os ricos são, ou ficaram ricos, porque são competentes. Não é verdade, tirando as exceções de praxe. A maioria dos grandes empresários, por sinal, frauda as regras da concorrência, do livre mercado, quando fazem aquisições, quando compram os concorrentes. Para os grandes empreendimentos, essas regras simplesmente não existem. Outra conclusão possível é de que a riqueza não é abstrata, não está por trás de uma marca, de um conglomerado. Esses impérios são comandados por pessoas, por pessoas físicas, o dinheiro vai para a conta dessas pessoas. É a personalização da riqueza, com nome, endereço e conta bancária. Os privilégios, portanto, estão tanto no nível corporativo quanto no nível pessoal. Uso um exemplo bem simples e clássico para mostrar isso: quem ganha um salário, digamos, de R$ 5 mil aqui, paga imposto de renda compulsoriamente numa alíquota de quase 30%. Já o dono de uma empresa, pessoa física, que ganha R$ 5 milhões de pró-labore, não paga nada, nem um centavo, porque essa renda é lançada como lucro e dividendo – que é isento na nossa legislação. Proporcionalmente, essa pessoa física deveria pagar cerca de R$ 1,4 milhão de imposto de renda sobre esse montante. Mas não paga porque temos uma legislação, criada por um lobby empresarial, determinando essa isenção. As pessoas acham que o fulano é rico porque é competente. Mentira: é rico porque compra privilégios.

EC – Que dados o senhor usa em suas pesquisas, diante da dificuldade de se obter informações confiáveis do mundo corporativo?
Cattani – Temos de usar apenas dados públicos, pois não há outra maneira. Temos que usar o que aparece por aí, reportagens, balanços, estudos. Algumas ONGs fazem trabalhos ótimos de investigação. Um desses levantamentos, por exemplo, conseguiu identificar evasão de divisas por grandes empresas exportadoras: as companhias que comercializam commodities vendem oficialmente por um preço abaixo da cotação internacional e recebem a diferença, digamos 20%, 30% do valor de face, diretamente em contas no exterior. Exportam com subfaturamento e recebem a diferença diretamente em paraísos fiscais.

EC – Isso não é lavagem de dinheiro?
Cattani – Sim. E corrupção também, porque é uma operação que precisa ser camuflada de alguma forma.

EC – Operações como Lava Jato e Zelotes podem ajudar a moralizar esse ambiente empresarial?
Cattani – Essa é uma outra questão que precisamos desmistificar: qual foi, por exemplo, o rombo causado na Petrobras apurado pela operação Lava Jato? R$ 10 bilhões? Mas qual o montante de sonegação das grandes empresas brasileiras, a cada ano? É da ordem de R$ 300 bilhões, segundo o sindicato dos auditores fiscais. Talvez R$ 500 bilhões, não se sabe ao certo. Por ano. Na fusão do Itaú com o Unibanco, uma taxação superior a R$ 25 bilhões acabou de ser anistiada pelo Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) porque os conselheiros consideraram que não houve ganho de capital na transação. O Carf é o mesmo órgão onde foram registrados inúmeros casos de compra de votos, que envolvem, entre outros, grupos de mídia como RBS e Globo. É claro que isso nunca vai ser manchete porque eles, incluindo a mídia, se protegem. É um quebra-cabeças. Por que a Gerdau, que já mencionei aqui, foi para Amsterdã? Porque é um paraíso fiscal e, dessa forma, se resolve a questão sucessória. Aqui o imposto de transmissão patrimonial varia de 6% a 8%. Baixíssimo. Nos Estados Unidos, é de 40%. No Japão chega a quase 60%. Em Amsterdã é zero. Ou seja, nossos super-ricos não querem nem pagar o mínimo que a legislação do Brasil exige na transmissão de poder e de capital para os sucessores. Isso é lavagem de dinheiro, uma forma de manutenção da riqueza. É como se houvesse um mundo paralelo ao nosso, do qual nem chegamos perto. O problema é que esse mundo está acabando conosco.

EC – Além das cifras bilionárias, esse mundo paralelo envolve mais o quê?
Cattani – Impunidade, principalmente. E problemas de ordem moral, pois historicamente esse pessoal se safa em todos os processos, sejam administrativos, sejam criminais. Problemas ambientais, também, como a devastação da Amazônia. Pequenos posseiros existem desde sempre, mas o problema começa de fato quando há um grande investimento. Porque ele dificilmente não respeita as leis ambientais, e em geral corrompe a fiscalização. O posseiro que matou uma onça vai para a cadeia; o empresário que devastou quilômetros e quilômetros de floresta está viajando de jatinho para Miami. A concentração de renda se retroalimenta porque cria impunidade e privilégios em várias áreas.

EC – Nesse cenário, qual a perspectiva de solução?
Cattani – Precisamos de formação e de informação. As pessoas não sabem o que acontece, o trabalhador que paga impostos compulsoriamente acha que todo mundo paga também. A solução é simples: basta os ricos pagarem os impostos que devem.

EC – Mas como fazer isso?
Cattani – Sensibilizando a população, já que pela via legislativa ou pelo poder do Estado não tem como. Não com esse Congresso nem com esses governos. As pessoas têm que saber o que está por trás de determinadas decisões políticas. Um exemplo: pequenos empresários que aderem a essas campanhas por menos impostos precisam saber que os grandes empresários, que são seus ídolos, não pagam imposto. Quem paga é ele. Se todo mundo pagasse seus impostos corretamente, dentro dos padrões capitalistas normais, o equilíbrio seria muito maior.

EC – Para onde esse comportamento vai nos levar, na sua opinião?
Cattani – Para o desastre.

EC – Desastre? De que tipo?
Cattani – Um empobrecimento brutal da população trabalhadora ou desempregada, que já estamos vendo aí pelas ruas. A queda para a pobreza é rápida, em um, dois anos, o pessoal que perde emprego se afunda. A parte mais vulnerável da sociedade sente isso rapidamente, há um enorme contingente que voltou a passar fome, que voltou a viver na rua, com mais violência, mais crimes. Um desastre social. Ao mesmo tempo, com o aumento da distância entre ricos e pobres, veremos ainda mais concentração de renda. Isso é muito sério, pois fica cada vez mais difícil combater esse modelo.

EC – Há um risco de convulsão social?
Cattani – Aí a análise é mais complicada. Veja bem: o sistema vai crescendo, crescendo, vai jogando gente para fora. Chega um ponto em que todo esse capital concentrado não consegue a rentabilidade necessária porque não tem quem o sustente. Não há mais consumidores. Isso parece óbvio: mais pobres, menos consumo. Mas aí temos de nos deter num detalhe: o sujeito que tem muito dinheiro não tem medo de arriscar. Ou seja, transforma a economia num cassino, que vai criando o que chamamos de volatilidade econômica, ou seja, um colapso global.

EC – Já não vivemos isso em 2008, com recuperação?
Cattani – Aquilo foi um ensaio, apenas. Uma brincadeirinha, uma reacomodação. A crise de 1929, a maior dos tempos, foi provocada justamente pela concentração de riqueza nas mãos de cada vez menos pessoas. Depois do crash, durante 45 anos os mais ricos, até mais ou menos 1980, se mantiveram num patamar relativamente seguro de estabilidade para o sistema. O que vemos hoje, não há dez anos, é que estamos chegando ao nível de concentração proporcional ao que se podia observar em 1929. Vai passar desse nível, mais um ano ou dois, não mais, vai passar. E isso não é funcional para a economia. Há uma série de legislações favorecendo a concentração. Ao mesmo tempo, as camadas médias, os serviços prestados pelo Estado, já não dão conta de manter o sistema em relativo equilíbrio. O que estamos vendo, então, é uma transferência de recursos sem controle que nunca ocorreu antes. Nos Estados Unidos, os executivos de grandes empresas triplicaram seus rendimentos, seus bônus anuais, nos últimos 30 anos. Não sou eu quem está dizendo isso, mas a (revista) The Economist. Eles estão dizendo que vai arrebentar, eles estão pedindo para parar. E ninguém para. O que pode ocorrer, na minha opinião, é uma quebra ainda maior que em 1929. Estamos vivendo a crônica do desastre anunciado. A ganância não tem limites: quanto mais dinheiro, mais forte. Quanto mais forte, mais ganancioso. É um círculo vicioso que só estica mais e mais essa corda. É uma luta ideológica cruel porque nós, os 99% que não temos quase nada, não conseguimos nos sobrepor aos 1% que detém a riqueza do planeta.

Redação

15 Comentários

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  1. Pessoas burras e alienadas

    O problema que o sistema eh mto bom em construir uma massa de burros e alienados. 95% das pessoas hoje sao zumbis, ramsters nas rodinhas, n tem raciocinio critico nenhum, acreditam em qualquer enlatado que a entregam, sao soldados do sistema.

    Quando o mundo for dominado de fato por coorporacoes e as pessoas entenderem onde se meteram ja sera tarde demais…

    O filme Matrix nada mais era do que um rascunho da nossa realidade.

  2. Bem por aí. E o pior é que as

    Bem por aí. E o pior é que as pessoas são tão burras que nem percebem que são tratadas como burras pelos podres de rico.

  3. Um bunker pra chamar de seu

    Não à toa, os super-ricos estão se preparando para o juízo final do sistema econômico e de qualquer ordem ou estabilidade. O fim do mundo, enfim.

    http://www.newyorker.com/magazine/2017/01/30/doomsday-prep-for-the-super-rich

    Doomsday Prep for the Super-Rich

    Some of the wealthiest people in America—in Silicon Valley, New York, and beyond—are getting ready for the crackup of civilization.

     By Evan Osnos   

    An armed guard stands at the entrance of the Survival Condo Project, a former missile silo north of Wichita, Kansas, that has been converted into luxury apartments for people worried about the crackup of civilization.Photograph by Dan Winters for The New Yorker

      

     

  4. Venho dizendo isto em outras

    Venho dizendo isto em outras palavras já há um bom tempo: a concentração desmedida é um buraco negro na economia, parteja a monarquia feudal da super burguesia e termina, como consequência, no genocídio de boa parte da humanidade inútil. Se isso não for contido de alguma forma melhor: ou guerra total, ou a pior escravidão que este mundo já presenciou.

  5. Boa parte da verdade está no

    Boa parte da verdade está no texto. A seguir por essa estrada, o desastre é certo. A grande questão é saber o que virá depois, a queda do 1% ou o totalitarismo de uma sociedade 100% controlada pelo 1%. 

  6. Sugestão: Permanecer em Destaque por alguns dias.

    e um ou outro post-título, como o da Dilma,por exemplo.Tem gente que nem vê no fim de semana,tem gente que só vê no fim de semana,tem gente que só vai ver de madrugada(não sabemos das estatísticas de dias mais visitados e dos tempo decorri-dos de cada internauta pelo blog.Então,fica a sugestão.A unificação de sábado + domingo é uma antiga sugestão que já dei,na prática,vejo que alguns títulos estão passando de um dia pro outro,em continuidade(e a gente perde quem deixou um ‘post’ como visitante,e um visitante ficamos esperando às vezes muitas horas ou o dia seguinte,até que a moderação,em plantão ou não, libere pra publicar ( Sniff…)

  7. Falta consciência de classe

    Cattani diz:

    “As pessoas têm que saber o que está por trás de determinadas decisões políticas. Um exemplo: pequenos empresários que aderem a essas campanhas por menos impostos precisam saber que os grandes empresários, que são seus ídolos, não pagam imposto. Quem paga é ele.”

    Será que Cattani acha mesmo que, quando os pequenos empresários descobrirem que os grandes não pagam impostos, vão votar – e levar a massa que “controlam” – em alguém que acredita na taxação dos grandes? Ou mais, acredita que os tais pequenos não sabem que os grandes não pagam impostos?

    Uma que é óbvio que os pequenos sabem que os grandes não pagam. E outra, claro que o que os pequenos querem é não pagar, também. Ainda mais pequeno doente, megalômano… Sim porque o ex-operário que aposentou-se e abriu uma cantina em frente à fábrica onde trabalhava, esse parece que tende a ter uma mentalidade um pouco menos doente, um pouco mais “conformado” em recolher impostos, porque já recolhia quando era assalariado, porque identifica-se com o trabalhador muito mais do que com o empresário. Mas e aquele pequeno que, fantasiando a si mesmo, identifica-se com o grande e o tem como ídolo? Sabe o que monta uma startup só para vender e, a partir daí, viver de renda?

    É esse segundo “pequeno” que leva à Av. Paulista, em passeata, cartaz dizendo que sonegar é legítima defesa. Esse cara vai votar em quem protege os ricos mesmo ele não sendo da mesma classe, não conseguindo se safar dos impostos nem tendo tanto poder quanto o grande e nem tendo, ele próprio, que pagar no lugar dos grandes.

    ***

    O pessoal tem dificuldade em entender como é que São Paulo, a maior concentração do Brasil de balconistas de bares e lojas, atendentes de telemarketing, motoboys etc. elegeram um Dória. Mas basta pensar que essa turma, no lugar de se identificar com seus iguais, têm nos pequenos donos de lojas, por exemplo, coisa bem diferente de patrão, têm um ídolo, também. E imagina o papo desse empresário com seus empregados naqueles momentos em que ninguém entra na loja:

    – “Ah, vá… você trabalha aqui, na minha loja, num shopping. Você é fino demais para votar no PT, reeleger o Haddad…”

    – “Claro, chefinho. Sou quase como você, voto no Dória.”

  8. Uma sociedade com abismos de igualdade está fadada ao fracasso

    As palavras do professor Cattani calam fundo em quem tem consciência social e observa o mundo ao seu redor. Como ele ressalta não se trata de previsões, está acontecendo.

    A preocupação dos economistas, sociólogos e antropólogos, ou seja, dos estudiosos da sociedade humana, suas estruturas, dinâmicas e desenvolvimento, com a desigualdade causada pela concentração de riqueza vem sendo crescentemente discutida desde os anos 70, adquirindo especial destaque após 2008.

    Respeitados autores têm denunciado a desigualdade econômica e seus efeitos sociais e políticos. Os mais conhecidos são Joseph Stiglitz, Noam Chomsky e Naomi Klein, mas, há centenas de outros. No Brasil, o Instituto de Economia da Unicamp tem produzido farto material sobre esse tema, por diversos autores como Pedro Paulo Zahluth Bastos, Fernando Nogueira da Costa, Eduardo Fagnani e Luiz Gonzaga Belluzzo, apenas para citar alguns.

    Uma abordagem rápida de como a crise do capitalismo surge e se desenvolve, bem como, ao cenário que nos conduz baseada nas resenhas de 3 livros sobre o tema, pode ser vista em artigo da revista Foreign Affairs, Capitalismo em crise (BLYTH Mark. Capitalism in crisis – What went wrong and what comes next. Tampa (FL): Foreign Affairs; 2016 Jun. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/reviews/review-essay/2016-06-13/capitalism-crisis. Acessado em 19 de ago 2017).

    É inegável que o sistema capitalista está em crise. Fato! É inegável que a origem está no excessivo financismo, onde os fluxos monetários globais estão longe de qualquer controle das autoridades monetárias. Fato! É indiscutível que o dinheiro adquiriu “vida própria”, isto é, deixou de ter o destino original de retornar e se reincorporar como insumo financeiro ao ciclo real da economia, financiando investimentos nas estruturas produtivas de bens e serviços (oferta) e suportando o processo de geração de renda e de acumulação (consumo e poupança). Fato!

    Os excedentes financeiros não param de crescer ocasionando uma imensa bolha de liquidez. Segundo dados do MacKinsey Global Institute, BIS – Bank for International Settlements e Deutsche Bank, ao fim de 2015, os ativos financeiros globais montavam a US$ 294 trilhões, representando, 378% do PIB mundial. O mercado de derivativos, em dezembro de 2016, segundo relatório do BIS, movimentava contratos com um valor nominal total (notional amount) de US$ 483 trilhões com um valor bruto de mercado, o custo de resgatar todos os contratos a preços de mercado, que totalizava R$ 15 trilhões. A formação bruta de capital fixo, ou seja, o valor dos investimentos em bens de produção, em 2015, representava US$ 18 trilhões. Esses números dão uma medida da proporção dos ativos financeiros que ficam retidos no mercado especulativo, isto é, esterilizados como instrumentos de desenvolvimento e de fomento à atividade econômica.

    Em resumo, dinheiro gerando dinheiro. E, o dinheiro gerado é extraído da base da pirâmide para o topo aumentado a concentração e a desigualdade. Segundo o conhecido Relatório da Riqueza Global, 2016, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Credit Suisse, enquanto 33 milhões de indivíduos, representando 0,7% da população adulta, detém 45,6% da riqueza global, à base da pirâmide, com 73,2% do restante, são destinados apenas 2,4% da riqueza, implicando em um valor médio de US$ 1,7 mil por indivíduo.

    Não é necessário qualquer esforço especial em pesquisas ou na elaboração de teses de sociologia política para concluirmos que esse modelo é fadado ao desastre e que se encaminha à ruptura. A grande questão é saber como se dará e no que resultará.

    As possíveis hipóteses extremas são: a) uma conflagração mundial que reconfigure todo esse esquema e seu funcionamento; b) uma revolução de base em que as pessoas, tomando consciência de sua situação e do fato de constituírem uma absoluta maioria, assumam o protagonismo e forcem a mudança do sistema e; c) o poder no topo assumir tal dimensão que se transforme em uma plutocracia institucionalizada, suportada em poderio bélico-policial e submetendo pela força o restante da humanidade. No meio-termo se situa a alternativa de um rearranjo pragmático onde se abra algum espaço para maior mobilidade social e inclusão, mudando para manter.

    Até então, a posição hegemônica do topo tem se mantido com o êxito de uma longa campanha de propaganda onde se convenceu as pessoas de que há mérito no enriquecimento.

    Ricos são os que souberam trabalhar duro, perseverar contra as vicissitudes, construir oportunidades e vencer por todos os seus méritos.  Enquanto a pobreza não é mais do que o resultado da menor capacidade intelectual, da falta de iniciativa e da ausência de ambição, ou seja, só é pobre quem quer ou é “inferior”.

    Sobre essa ideia central se assenta outra, complementar, mas essencial para a perpetuação do modelo. É quando outro mecanismo entra em funcionamento. A exploração e a espoliação correm em sentidos inversos. A exploração é exercida do topo da pirâmide sobre a base, enquanto a espoliação segue sentido contrário, com a riqueza se transferindo da base para o topo. Ocorre que esse fenômeno, visto como um grande movimento social entre classes distintas, tende a se replicar no microcosmo da interação de pequenos grupos sociais e entre indivíduos.

    Também no aspecto pessoal há sempre uma assimetria de informação e de poder entre os indivíduos ou grupos criando previlégios, onde, os em posição vantajosa, se apropriam dessa vantagem para explorar e espoliar. Isso ajuda a criar uma escala de valor, um ranking de meritocracia entre os explorados/espoliados, o que valida e justifica o sistema.

    É, por exemplo, o que explica, em parte, a razão de uma classe média, que perde poder aquisitivo e qualidade de vida progressivamente, aderir e apoiar o modelo de funcionamento de um sistema que, também, a oprime.

    Parece serem esses os mecanismos que mantém as pessoas presas ao sistema e conformadas com uma sociedade que exclue, subjuga, destroi e corrompe bilhões de seres humanos. De acordo com as estimativas do Credit Suisse metade de todos os adultos no mundo possuem em média menos do que US$ 2.222 e 20% menos do que US$ 248. 

    Encontrar uma forma de alterar esse modelo é, talvez, o maior desafio com que a civilização humana já se deparou. Há uma enorme complexidade no equacionamento desse problema que envolve ainda uma crescente escassez de fatores como território, recursos naturais, alimentos, água potável e ar respirável, bem como, acesso a serviços essenciais de habitação, saúde, educação e justiça.

    Enfim, encontrar solução, se é que há alguma viável, passa necessariamente pela sensibilização, engajamento e união da sociedade na sua idealização e construção, o que, ante o cenário atual, parece ser algo improvável de ocorrer pacificamente.

     

     

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