Ex-morador de rua, empresário construirá shopping no Alemão

Ruas íngremes e estreitas ladeadas por barracos e casas de alvenaria improvisadas. Fábricas abandonadas, pequenos botecos e uma população de mais de 69 mil pessoas que vivem em uma das áreas com os piores índices de desenvolvimento social da cidade do Rio de Janeiro.

Foi no cenário do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, que um empresário fluminense viu o local ideal para a construção de seu primeiro grande empreendimento: um shopping center.

Orçado em cerca de R$ 22 milhões, o novo centro comercial deve abrigar 500 lojas e tem previsão de inauguração para novembro. As obras ainda não começaram e o local exato onde será instalado o shopping ainda é incerto, mas uma característica já faz com que ele seja diferente dos mais de 800 empreendimentos do tipo espalhados pelo Brasil: 60% das lojas serão comandadas por moradores da favela.

O responsável pelo projeto também não é um empresário comum. Ex-morador de rua e de favela, produtor musical, escritor, documentarista, além de criador e ex-coordenador da CUFA (Central Única das Favelas) – uma das ONGs mais influentes do país -, Celso Athayde decidiu deixar de lado suas outras atividades para fundar a Favela Holding (FHolding), guarda-chuva que reúne dez empresas que atuam exclusivamente em favelas.

“A FHolding é uma holding (espécie de sociedade) de empresas que tem o objetivo de trazer oportunidades de negócios em que a favela é a protagonista, seja na produção de empregos, seja (no estímulo) ao empreendedorismo”, disse Athayde em entrevista concedida durante um passeio pelo teleférico do Complexo do Alemão.

Potencial

A ideia surgiu a partir da constatação do potencial de mercado das favelas aliada à dificuldade ou resistência de empresários para entrar nestes territórios.

Segundo um levantamento do DataFavela – parte da FHolding e fruto de uma parceria entre Athayde e o instituto de pesquisas Data Popular -, cerca de 12 milhões de pessoas moram em favelas no Brasil. Juntas, elas ganham R$ 56 bilhões por ano, uma renda comparável do Produto Interno Bruto (PIB) da Bolívia.

“As pesquisas estão aí, portanto ninguém mais duvida que tenha oportunidade. Mas como é que você (empresário) acessa essas oportunidades em um território que não é organizado? Então, mais do que reclamar, a favela precisa se organizar para poder aproveitar essas oportunidades.”

O chamado “favela shopping” é a cereja no bolo do projeto da FHolding, que inclui, entre outras iniciativas, o instituto de pesquisas, uma parceria com a editora Objetiva para a publicação de livros de autores de comunidades, uma fábrica de móveis e uma sociedade com uma produtora de eventos de MMA (artes marciais mistas).

Resultado de uma parceria entre Athayde e o empresário mineiro Elias Tergilene, da rede de shoppings populares UAI, segundo seus idealizadores, o centro comercial pode gerar 6 mil empregos diretos apenas na comunidade do Alemão. Athayde ainda prevê a criação indireta de outros 4 mil postos.

A receita para causar esse impacto é contratar 100% dos funcionários na própria comunidade, além de ter 60% das lojas do shopping comandadas por moradores do Alemão, por meio de um recurso que Athayde batizou de “franquia social”.

Classe média

Já que a imensa maioria dos habitantes de comunidades como o Complexo do Alemão não possui o capital para investir algumas dezenas de milhares de reais em uma franquia tradicional, a solução foi procurar diversas marcas para convencê-las a abrir mão desse investimento para que os moradores entrem na sociedade apenas com a força de trabalho.

Com as negociações ainda em andamento, Athayde prefere não divulgar os nomes das marcas que já aceitaram o acordo.

“São 60% (de lojas comandadas por moradores), considerando que há marcas que não têm como fazer franquias, como bancos, Casas Bahia… (As marcas) vão ter que abrir mão desse dinheiro e vão ter que qualificar esses novos sócios. É esse padrão que vai ser a particularidade do ‘favela-shopping’, um shopping que traz oportunidade de negócios para a favela e para o empresário.”

O contrato entre a marca e o franqueado ainda prevê o fim do negócio caso o morador deixe a favela. A seleção de quem irá comandar as lojas do shopping deve ser feita por meio de concursos, segundo Athayde.

“As pessoas me perguntam se essa holding me tirou do movimento social. Mais ou menos. Porque quando eu faço um shopping center, estou pensando não só em empregar 10 mil pessoas, mas em transformar 420 famílias de dentro da favela em pessoas de classe média alta ou de classe A, estou criando renda e trabalho para a favela”, diz.

Após a inauguração do novo shopping, a ideia é abrir mais quatro empreendimentos do tipo, em favelas pacificadas e não pacificadas por UPPs.

Social

Se o modo de administração das lojas do shopping será por meio de franquias sociais, o mesmo pode ser dito sobre as outras empresas da FHolding. Enquanto sócios como a Rede UAI, Data Popular e editora Objetiva entram com o capital, Athayde entra com sua experiência dentro das comunidades

“Não sou especialista em nenhuma dessas áreas específicas e nenhum desses especialistas nessas áreas específicas é especialista em favelas. Então, eu sou pós-graduado em favela, uma autoridade nesse assunto, e isso tem um valor”, diz.

Nascido em Nilópolis, na Baixada Fluminense, Athayde viu seus pais se separarem quando tinha sete anos. O divórcio fez com que ele, a mãe e um irmão fossem obrigados a morar na rua.

Parceiro, ou a gente distribui a riqueza, ou a gente vai ter que continuar a dividir as consequências da miséria

Celso Athayde

“Fiquei morando na rua até os 14. Literalmente na rua, debaixo do viaduto, vivendo de pequenos furtos, esmola… Aos 14 eu fui morar em um abrigo público, fiquei lá dois anos, até ir para uma favela, que é a favela do Sapo, sistema do Camará (zona oeste do Rio)”, conta.

Nos anos 1990, Athayde se tornou camelô no bairro de Madureira, zona norte, onde também organizava bailes debaixo de um viaduto. Foi por meio deles que conheceu o grupo de rap paulistano Racionais MC’s, de quem se tornaria produtor.

O contato com o mundo do hip hop desembocaria na criação, em 1999, da Central Única das Favelas (CUFA), junto com o também rapper MV Bill – com quem Athayde também escreveria os livros Falcão – Meninos do Tráfico e Falcão – Mulheres e o Tráfico.

A parceria com MV Bill também resultou na produção do documentário Falcão – exibido pelo programa Fantástico, da rede Globo, em 2006 e que, assim como o livro de mesmo nome, fala sobre participação de menores de idade no tráfico de drogas.

Com 50 anos completos no final de fevereiro, Athayde deixou oficialmente a coordenação da CUFA para assumir de vez seu lado empreendedor, embora não abandone o discurso social.

“Eu não estou falando de um shopping, eu estou falando de um início de um processo de valorização de um território, estou falando em criar desenvolvimento…. Se a favela não se desenvolver, só vai aumentar a distância entre o Brasil que se desenvolveu e ela. Parceiro, ou a gente distribui a riqueza, ou a gente vai ter que continuar a dividir as consequências da miséria.”

Luis Nassif

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