Martin Wolf e o Brasil

Do Valor

Para Wolf, Brasil terá de administrar o ingresso de capitais

João Villaverde | De São Paulo
29/09/2010

Diante do enorme e crescente ingresso de capitais estrangeiros, a principal missão do próximo presidente brasileiro será administrar a valorização do real para evitar uma nova crise. A avaliação é de Martin Wolf, um dos mais influentes analistas econômicos do mundo, para quem “a nova crise econômica será num país emergente, e ela vai ocorrer dentro dos próximos dois anos”. A causa: o forte ingresso de capital estrangeiro em economias emergentes, cujo crescimento se destaca do países desenvolvidos.

Doutor honoris causa em ciência econômica pela London School of Economics (LSE) e vencedor, em 2000, do CBE (“Commander of the British Empire”) pelos serviços ao jornalismo financeiro, Wolf é editor e principal comentarista econômico do “Financial Times”, onde escreve uma coluna semanal, publicada pelo Valor às quartas-feiras. Para ele, o “destino” do Brasil está muito atrelado à China, graças a posição de grande produtor de commodities. “Os brasileiros estão aproveitando a admiração e adulação do resto do mundo, mas é melhor não ficar super confiante porque o boom de commodities é temporário”.

De acordo com Wolf, o ritmo atual de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), que segundo estimativas do governo será superior a 7% em 2010, é “claramente insustentável”. Além disso, o novo presidente terá a complexa tarefa de ampliar a competitividade do setor industrial, que “vem perdendo muito com a valorização cambial”.

AnovA nova administração no Brasil terá de conviver com um mundo que, segundo Wolf, vai beirar a anarquia. Ao longo dos próximos dez anos, o mundo desenvolvido passará por um processo lento de crescimento fraco e redução do endividamento público. Além disso, a China inicia agora sua mudança de modelos, do vigente, que estimula as exportações, para um que fortaleça o mercado doméstico. Para finalizar, Wolf preconiza que os Estados Unidos ingressarão num período em que não exercerão a liderança global a que estão acostumados desde o início do século XX. “Não veremos liderança em Washington, aliás, não veremos qualquer ação política coerente vinda de Washington pelos próximos dois anos.” 

Wolf, que conversou com o Valor no domingo, por telefone, de sua casa em Londres, virá ao Brasil na próxima semana. Na terça-feira, dia 5 de outubro, ele ministrará palestra em um seminário promovido pelo Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC) e a BM&FBovespa, em São Paulo. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O grande debate econômico do momento gira em torno do endividamento dos Estados. O consenso do encontro das 20 economias mais desenvolvidas, o G-20, realizado em junho, é de que é hora de retirar os estímulos monetários e fiscais e iniciar um aperto, com corte de gastos e aumento de impostos. Como será o desempenho dos países ricos iniciado esse aperto?

Martin Wolf: Em primeiro lugar é preciso esclarecer que não faço previsões. Todos os economistas que fizeram e fazem previsões erraram e erram de forma constrangedora. Qualquer pessoa que diga que sabe o que vai acontecer é claramente uma fraude. Há enormes, absolutamente enormes incertezas sobre como a economia e os mercados financeiros vão se comportar. Vivemos hoje uma situação que não encontra paralelo com nada que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial. Todas as crises que passamos nas últimas décadas, como as dos países latino-americanos, do Leste Asiático, a japonesa, nenhuma afetou de maneira profunda e severa os Estados Unidos e uma série de grandes países europeus. Esta afetou. Sabemos que todas as crises financeiras deixaram um legado, mas o legado que ficará desta será muito mais longo. Em todas as turbulências anteriores os países conseguiram escapar da recessão por meio das exportações, mas isso não parece plausível agora, uma vez que muitos mercados estão em crise ao mesmo tempo e há resistência entre os países que não estão, porque não querem incorrer em grandes déficits nas transações correntes.

Valor: A saída, então, passa por apertar as contas e diminuir o endividamento?

Wolf: Estamos no início de um longo processo de desalavancagem, de redução das dívidas das famílias, especialmente nos Estados Unidos. Esse processo vai durar muitos anos e durante esse período vamos ver a poupança das famílias aumentar, o que, consequentemente, vai deixar o setor privado mais cauteloso, uma vez que não saberá em que pé estará a demanda doméstica. Acredito que uma política monetária frouxa e como suporte uma política fiscal ativa serão necessárias por muito mais tempo do que a maioria das pessoas hoje reconhece.

Valor: Como expandir os gastos públicos se muitos Estados já ultrapassam os 100% da relação entre dívida e PIB?

Wolf: Alguns países, como Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e Itália não tem mesmo para onde ir, ou seja, terão de apertar gastos e reduzir o endividamento, porque o mercado já se virou contra eles. Já nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Alemanha a evidência é outra: eles estão conseguindo empréstimos facilmente, as taxas de juros estão em patamares historicamente baixos e a pressão do mercado para cortar estímulos não são fortes. No entanto, vejo o mundo ocidental entrando num processo parecido com o que passou o Japão após a crise de 1990. Se isso estiver correto, minha aposta é que todo esse aperto fiscal que está sendo defendido no mundo rico vai produzir uma fraqueza significativa nas economias desenvolvidas. Há um risco muito grande de estarmos cortando os estímulos cedo demais, e em pouco tempo veremos que essa decisão se constituirá num erro.

Valor: E então?

Wolf: Os países ricos terão de reverter os apertos iniciados agora em um ou dois anos. Ou mesmo antes disso.

Valor: Gostaria que o sr. explicasse a comparação com o que aconteceu com o Japão após 1990.

Wolf: A situação desses países é um pouco diferente, na realidade. A Alemanha, diferentemente do Japão de 1990, não tem um grave problema no sistema financeiro, então pode apelar mais facilmente às exportações. Ao mesmo tempo, o Japão, ao longo da década de 1990, tinha mercados que compravam suas exportações, o que ajudou a recuperar sua economia, que estava muito alavancada e endividada. O problema das exportações alemãs é que não há mercado, uma vez que o mundo como um todo está mais fraco. Em 1990, ninguém imaginava que o Japão iria entrar em crise – todos falavam que era a economia mais brilhante do mundo. A ideia de que os japoneses passariam por 20 anos miseráveis era inconcebível. Da mesma forma, assumimos que os EUA fizeram um bom trabalho nos últimos 20 anos, mas para isso acumularam um endividamento fabuloso, com um setor imobiliário totalmente alavancado. Acho que há um grande risco de as coisas nos países ricos seguirem caminhos parecidos com o Japão pós-1990.

Valor: Quer dizer que teremos uma década de baixo crescimento e lenta desalavancagem?

Wolf: Acredito que sim. Há grande dúvida quanto ao comportamento da demanda doméstica dos países ricos, diante de tamanho endividamento. Acho que há uma grande chance de que pelos próximos dez anos o crescimento dos EUA não será maior que 2% ao ano e no Reino Unido será ainda menor que isso. O desemprego continuará alto e o endividamento público cairá muito lentamente, com riscos maiores de deflação que de inflação. 

Valor: Como o sr. vê Brasil e China neste cenário?

Wolf: De maneira geral, se os países emergentes querem crescer rapidamente, eles terão de ser conduzidos por suas próprias demandas domésticas. É muito improvável que a demanda nos países ricos cresça além de sua oferta. A demanda final para o crescimento que os emergentes querem terá de ser interna. Isso significa que o consumo será, acima de tudo, a grande saída.

Valor: Mesmo na China, onde o modelo de crescimento é claramente orientado para exportações?

Wolf: Especialmente na China, onde o consumo ainda ocupa uma parte muito pequena do PIB. A política econômica chinesa terá de mudar para promover o consumo interno, permitir a valorização de sua taxa de câmbio e trocar o modelo orientado para exportações, que eles implementaram com sucesso nos últimos dez anos, para um que privilegie o consumo. Os chineses fizeram um grande programa de estímulos após a explosão da crise mundial e agora estamos no início desse processo de mudança de modelos na China. O capital privado está saindo do mundo desenvolvido para os emergentes, para o Brasil, para qualquer país que os receba melhor que as nações ricas, que estão em sérios problemas. Enquanto isso, os chineses estão intervindo no fluxo cambial e reexportando esse capital de volta ao mundo desenvolvido. Esse processo não é sustentável, uma vez que está gerando um nível inacreditavelmente alto de reservas, e também um tremendo problema político com os EUA.

Valor: Mas esse problema de fluxo de capitais migrando dos países ricos aos emergentes também pega o Brasil em cheio, inclusive com formação de grandes reservas internacionais oriundas de intervenções no mercado cambial.

Wolf: O Brasil é um exemplo, sim. O grande fluxo de capitais valoriza a moeda, reduz a competitividade da indústria doméstica e isso será um problema a ser administrado. Países como o Brasil terão de administrar essa entrada de capitais para evitar uma nova crise. A nova crise econômica será num país emergente, e ela vai ocorrer dentro dos próximos dois anos.

Valor: Qual país?

Wolf: Não sei dizer qual, hoje, mas garanto que será graças à entrada de capital estrangeiro nos países emergentes. Administrar esse fluxo será um grande problema. Particularmente no Brasil, que é um grande exportador de commodities. O destino do Brasil, aliás, está muito amarrado à China. Para os próximos dez anos estou razoavelmente otimista, porque a não ser que a economia mundial tenha um desempenho terrível devido aos países ricos, a China continuará crescendo muito fortemente e por causa disso a situação será muito boa para os exportadores de commodities.

Valor: Quais são os desafios para o Brasil?

Wolf: Basicamente, acho que o grande desafio para o Brasil está em administrar o ingresso de capitais estrangeiros. Não ficar apenas na exportação de commodities, mas também tentar construir o desenvolvimento do setor industrial, e isso será muito complexo, principalmente com a competição que vem da China e da Índia. Há grandes oportunidades para o Brasil, que, no entanto, também são grandes desafios.

Valor: Como o sr. vê o atual crescimento da economia brasileira, acima de 7% em 2010?

Wolf: O crescimento atual brasileiro é claramente acima do sustentável, não tenho dúvida disso. As pessoas que estão conduzindo a política econômica terão de garantir ao mercado que os erros do passado não serão repetidos. Essta será uma missão para o novo governo, que será, como se prevê, presidido pela candidata do presidente Lula. Ela terá de pensar bastante sobre essa fase boa que o Brasil está passando e tentar evitar os erros cometidos sempre que o país crescia fortemente.

Valor: Como o sr. vê toda a atenção internacional que o Brasil vem recebendo, fenômeno refletido na sucessão de matérias em publicações tradicionais sobre o país?

Wolf: Sempre há países que são o “sabor do momento”. E eles são o “sabor do momento” porque vivem um boom de crescimento insustentável, com setor público se endividando, setor privado alavancado e moeda se valorizando. A pior coisa que pode ocorrer com um país é ficar popular no mercado de capitais. O Brasil claramente já passou por explosão de bolhas no passado, e a estabilidade é algo relativamente recente, uma vez que passou apenas uma década desde a última maxidesvalorização, em 1999. Se olharmos os números, há um risco.

Valor: Qual?

Wolf: Não acredito, tendo os dados do Brasil em mãos, que um ritmo de crescimento do PIB superior a 5% seja sustentável. Dado o patamar dos investimentos, da poupança pública, da entrada de capital externo, não vejo uma situação que sustente algo além de 5%. Quando, no entanto, isso ocorre, há erros sendo feitos e isso pode levar a crises, e isso acontece com o câmbio se valorizando muito e o setor industrial perdendo competitividade.

Valor: Que balanço o sr. faz dos oito anos de governo Lula?

Wolf: Acho que o presidente Lula claramente fez um bom trabalho ao preservar o que herdou de Fernando Henrique Cardoso, em distribuir os benefícios do desenvolvimento para um número maior de brasileiros, o que é incrivelmente importante, dada a enorme desigualdade do país e fortaleceu a democracia. Então, acho que Lula foi um presidente muito valioso e importante para a história do Brasil e eu tenho grande respeito por ele. Mas muito dos problemas subjacentes da economia brasileira não foram resolvidos.

Valor: A que o sr. se refere?

Wolf: Em particular, ao alto grau de intervenção estatal em questões microeconômicas, à baixíssima poupança pública e a consequente dependência do capital estrangeiro. Essas fraquezas permanecem e acredito que ainda demorarão algum tempo para serem resolvidas. O boom que o país vem passando, especialmente por ser um grande produtor de commodities, é temporário. Diria que os brasileiros estão aproveitando a admiração e adulação do resto do mundo, mas é melhor não ficar super confiante, ao contrário, é preciso ficar ainda mais cauteloso e lembrar que se as coisas deram errado no passado, elas podem dar de novo.

Valor: Uma vez que vivemos a maior crise desde 1929, também originada nos Estados Unidos, o papel do governo americano será central na recuperação mundial. Como o sr. vê a situação política nos EUA?

Wolf: O calendário político foi muito diferente agora do que na última grande crise, de 1929. As eleições só ocorreram em 1932, com Roosevelt assumindo em 1933. Então, entre 1929 e 1932 eram os republicanos no poder e eles foram imediatamente ligados à depressão. Desta vez, a crise estourou poucos meses antes das eleições de novembro de 2008. Uma consequência disso é que essa profunda crise, que era inevitável, foi associada, em grande parte, ao atual governo, e não às pessoas que causaram a crise, que eram do governo anterior. Isso deu aos republicanos a chance de criticar o governo. Além disso, vemos uma maciça reação da extrema direita, de pessoas que se opõem à qualquer ação do governo de Barack Obama. A situação hoje está muito mais bagunçada do que estava nos anos 1930.

Valor: Os americanos vão liderar o processo de recuperação dos países desenvolvidos?

Wolf: Do jeito que as coisas estão lá, politicamente falando, fico muito preocupado. Vejo um governo totalmente ineficiente pelos próximos dois anos. Os republicanos, que devem ganhar força nas eleições para o Congresso em novembro, vão barrar qualquer programa ou ação do governo porque eles não querem que o presidente seja bem sucedido em nenhum aspecto. Veremos grandes debates sobre coisas completamente irrelevantes, como o corte de impostos, algo que não resolve problema algum na economia americana. As fraquezas americanas continuarão até as eleições presidenciais de 2012. Não veremos liderança em Washington, aliás, não veremos qualquer ação política coerente vinda de Washington.

Valor: Um papel fraco dos Estados Unidos compromete as relações internacionais, não?

Wolf: Devido à escala da crise mundial e ao papel dos EUA no mundo, acho que estamos numa situação muito perigosa, geopoliticamente falando. A estrutura política do mundo será uma anarquia, algo que pode dar certo, mas há grande risco de isso dar muito errado, especialmente as relações entre EUA e China. Quem pode saber qual será o próximo presidente dos EUA, que continuará sendo a nação mais importante do mundo nesta década? Ver o nível do debate político e econômico por lá, diante dessas circunstâncias, é perturbador. 

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador