O desafio macroeconômico brasileiro

O grande desafio macroeconômico: a expansão do espaço fiscal e a busca da eficiência dos investimentos e gastos públicos

Joaquim José Guilherme de Aragão

O sonho e o feijão (e o desespero dos leigos)

Vira e mexe deparamos com a distância que separa nossos desejos e nossas possibilidades. A sua mais recente expressão, na palavra da presidenta, é o desafio de garantir crescimento com controle inflacionário. A necessidade de consolidar o orçamento muitas vezes contraria a necessidade de ampliar os investimentos públicos, dependendo da conjuntura econômica concreta. Especialmente em época de choques inflacionários (muitas vezes produzidos por fatores externos), o desafio se apresenta quase que como invencível: a contenção de custos, a pressão pela subida de juros, a decorrente valorização cambial, a manutenção do processo de crescimento e a continuidade dos investimentos parecem tendências e tarefas difíceis de se harmonizar.

Evidente, existem modelos e teorias cada vez mais sofisticados, capazes de compreender os diversos ciclos econômicos e indicar, em cada momento, as políticas adequadas. Entretanto, eles não são nenhuma receita de bolo, e os interesses em conflito permitem leituras divergentes; a briga começa já na academia, onde se defrontam “escolas de pensamento”.

O leigo mesmo que informado fica, nesse momento, perdido, não sabendo a que linha de pensamento aderir, buscando premissas um pouco mais sólidas para continuar seu raciocínio e planejar suas propostas (e pitacos na mesa de bar e nos blogues). E como cidadão dessa categoria – sou um mero engenheirão “bota-na-lama”, e não um refinado economista aderente a alguma escola – me permito alguns desvaneios construídos em constatações do óbvio. 

Uma delas é o ganho de eficiência dos empenhos públicos, que está sendo pregada por diversos economistas de plantão;  a própria presidenta, também economista, já avisou: fazer mais com menos. Entretanto, o desafio é transformar as frases fortes em ações efetivas.

Conceito de espaço fiscal

Um conceito interessante que está sendo desenvolvido na Economia de Desenvolvimento é o Espaço Fiscal. Nas palavras do economista Heller, do FMI, esse espaço poderia ser definido como o espaço que o governo possui para prover recursos para os fins desejados sem prejudicar a sustentabilidade da posição financeira do governo. Assegurando o aumento do espaço fiscal, um conjunto maior de investimentos e gastos meritórios poderia ser atendido (inclusive incentivos e redução fiscal).

Esse conceito é ainda controverso, e existem definições menos “fiduciárias” de espaço fiscal. No entanto, fiquemos com esse conceito mais restrito, para desenvolvermos os argumentos.

Quais maneiras existiriam para aumentar o dito espaço fiscal, assim definido? Os recursos públicos podem ser aumentados por diversas vias: pelo aumento da tributação ou pela melhoria da arrecadação; selecionar e gerenciar de forma mais eficiente os projetos e gastos. O endividamento surge, aqui, como outra opção, mas ele tem de ser eficientemente gerenciado para que não entre em um “regime de Ponzi”. Ganhos de senhoriagem e de fontes externas são os restantes caminhos para encher o sacolão governamental.

Até aí, não disse nada além do que está escrito nos rasteiros manuais de finanças públicas. Quero, na verdade, me concentrar na melhoria da eficiência das despesas, que passa pela melhor seleção das ações e de sua gestão.

Truques contabilísticos para esconder a indisciplina fiscal?

A propósito, existe toda uma pressão para ampliar as despesas, e muitas vezes esse aumento vem acompanhado com o bilhetinho: é essencial para o desenvolvimento social, nacional, e sobretudo se traduz em crescimento econômico, e portanto da própria arrecadação fiscal. Ou seja, enquanto investimento, se pagaria por conta própria.

Depois de um mea culpa tardio e meio amarelado, de que seus remédios têm matado muito paciente, especialmente os investimentos essenciais para os países reencontrarem o rumo do crescimento e da saída da falência fiscal, o FMI passou a admitir uma regra de exceção para o sua draconiana receita de regime fiscal; Sem ainda desenvolver critérios mais aprioriados, admite separar ditos “investimentos produtivos” da conta do dever superavitário. Mas Ter-Minassian, economista da casa, externou sua preocupação que isso pudesse abrir portas para truques contabilísticos, incluindo na lista de exceções gastos muito ordinários do Governo.

De fato, ultimamente, muitos gastos/investimentos no Brasil têm sido martelados com essa justificativa. A idéia inicial de retirar do calculo do superavit determinadas despesas/investimentos que pudessem contribuir para o crescimento econômico (idéia inicial do PPI, acordado com o FMI) foi “batizada” com vários investimentos definidos politicamente como necessários (saneamento, educação, saúde, e finalmente, todo o PAC). Tudo passou a ser “investimento”.

Nada contra esses e outros investimentos, nem quero postular que toda a decisão tem de passar por um rigoroso teste fiduciário, principalmente porque as opções de oplíticas públicas devem ser antes de mais nada políticas. Mas exercitar esse teste ajudaria um pouco entender as nossas despesas e até melhorar o seu rendimento.

Medindo a sustentabilidade fiscal de projetos públicos: o papel dos estudos de impactos econômicos e fiscais

Portanto, uma questão que se coloca quando queremos garantir a eficiencia dos investimentos/gastos para aumentar o espaço fiscal, é em que medida esses investimentos/despesas são fiscalmente sustentáveis. Em outras palavras: em que medida eles asseguram a capacidade do governo de manter a solvencia em virtude dos impactos econômicos e fiscais?

Precisando um pouco mais a pergunta: em que medida as despesas sob análise provocarão impactos econômicos suficientes de forma a produzir, ao longo da vida do respectivo projeto, um fluxo de arrecadação que garanta a solvência interna do projeto e não impacte, em algum momento, o endividamento público para além de uma medida estabelecida pelo planejamento fiscal?

Já existem, de forma tentativa, estudos de impactos econômicos e fiscais de projeto. Essa técnica ainda está circulando na comunidade acadêmica, e os gestores públicos ainda relutam em aplicá-la de uma forma sistemática. Primeiramente, os desafios técnicos são grandes, e sobre eles falaremos numa próxima intervenção. Em segundo lugar, há interesses poderosos em esconder as contas: enquanto os dedos acusatórios apontam sempre para os gastos sociais, não se deve abrir para o público o quanto determinados “investimentos” sobretudo em infra-estrutura, mas também em projetos urbanos são ineficientes.

É aliás interessante verificar que os primeiros estudos de impacto econômico fiscal foram promovidos por movimentos sociais contra determinados projetos ambiciosos de desenvolvimento urbano (leia-se especulação imobiliária) e de infra-estruturas, dos quais os políticos prometiam crescimento e sobretudo empregos. Foi o caso de fazendeiros americanos cada vez mais apreensivos com projetos de condominios residenciais e empresariais em áreas antes destinadas à agricultura. Mas também a academia tem se utilizado dessa ferramenta para justificar o investimento em universidades. Poucos governos têm se utilizado dela para mostrar ao público contribuinte a racionalidade de suas ações; o estudo de impacto econômico e fiscal do aeroporto de Frankfurt-Hahn é uma dessas exceções.

Contabilizando os efeitos econômicos e fiscais dos projetos

E o que mediriam, esses estudos de impactos econômicos e fiscais? Primeiramente, alguns conceitos: todo projeto não está isolado no espaço econômico, e sim situado no fluxo dos processos econômicos. Assim, um projeto deve atender necessidades reais da economia, e o respectivo montante constituiria sua demanda final. Para atendê-la, ele precisa se suprir de diversos recursos humanos, materiais e financeiros. Assim sendo, o projeto produz diferentes efeitos:

a) efeitos diretos: que é o atendimento de um determinado mercado, do qual retira sua remuneração direta. Essa renda direta serve para pagar os recursos humanos, os serviços gerais providos pelo Governo (sim, o governo produz e não é apenas um ente parasitário, como rezam certos discursos ideológicos), os recursos financeiros e toda uma série de bens e serviços consumidos, adicionando-se ainda  a renda da terra. Os empregos gerados, os salários pagos, a remuneração do capital e os impostos pagos perfazem os efeitos diretos. Muitos preferem contabilizar os empregos e salários diretamente gerados e pagos nos efeitos induzidos (ver abaixo).

b) os efeitos indiretos, que correspondem às demandas que esse projeto provoca nos fornecedores, e esses, por sua vez. em seus próprios fornecedores e fornecedores de fornecedores, e por aí vai. Sobre o calculo desses efeitos, isso discutiremos em uma próxima intervenção. Novamente, esses efeitos ampliam os ganhos de capital e a arrecadação fiscal.

c) efeitos induzidos: esses dizem respeito ao total de empregos e renda gerada pelos efeitos diretos e indiretos e como essa é canalizada ao consumo e à demanda de diversos setores produtores de bens e serviços de consumo. Novamente, esses efeitos geram novos empregos, renda do capital (e da terra), impostos e novas demandas ao longo das respectivas cadeias de suprimento.

d) efeitos catalíticos: muitos projetos, especialmente os de infra-estrutura, mas também grandes projetos industriais (rafinarias, siderurgias, fábrica de automóveis, etc.) geram vantagens locacionais para uma série de empreendimentos que, a rigor, não pertencem à cadeia produtiva do empreendimento e do atendimento das necessidades de consumo da respectiva mão-de-obra. Mas a qualidade da infra-estrutura, as economias urbanas e outros efeitos atraem novos investimentos independentes. Por exemplo, um grande aeroporto internacional pode chamar uma série de investimentos em hotelaria (ver o aeroporto de Guarulhos). Como esses investimentos são fortuitos, é preferível não contar com eles na avaliação dos impactos econômicos e fiscais, avaliação essa que deve ser “prudentemente conservadora”.
 
A sustentabilidade fiscal reduzida (frequentemente negativa) dos projetos de infra-estrutura

A contabilização de tantos efeitos de um projeto pode deixar a impressão que grandes projetos de infra-estrutura, rezados como essenciais para o crescimento, seriam muito provavelmente fiscalmente sustentáveis. Na verdade, raramente o são, mesmo levando em consideração os efeitos indiretos e induzidos. Isso é que demonstram os estudos já existentes.

Isso não implica, claro, que tais investimentos não devem ser realizados. O que ocorre é que, na maior parte dos casos, as infra-estruturas geram crescimento sobretudo pelos efeitos catalíticos, não contabilizáveis, porque não previsíveis. No economês, se fala de externalidades e criação de vantagens locacionais e economias espaciais. E estudos econômicos mais gerais (as famosas regressões estatísticas) comprovam os efeitos globais dos investimentos em infra-estrutura para o crescimento. Isso não implica, claro, que todo o projeto, isolado, seja rentável em termos de efeitos econômicos, mas sim o conjunto deles.

O que ocorre? O governo (administrador financeiro do dinheiro do contribuinte, diga-se de passagem) via de regra consegue equilibrar suas contas de investimento pelo crescimento e o correspondente aumento de arrecadação. Isso, se não houver um excesso de investimento (ver o caso de Portugal). Só que ele não costuma controlar o resultado econômico e fiscal de cada projeto. Os estudos de viabilidade focalizam o beneficio dos usuários e beneficiários indiretos, confrontando os benefícios com os custos. Só que esse estudo não aborda o impacto fiscal específico, nem detalha a análise dos efeitos econômicos mais concretos.

Assim sendo, o governo toda vez decide às escuras no que tange os resultados fiscais. Ele constrói as infra-estruturas com base nesses estudos convencionais, e depois reza a Deus e São Pedro para que os agentes privados da economia sejam atraidos para a região beneficiada e nela invistam, de forma a promover o crescimento econômico geral (mensurados via de regra apenas pelo PIB e pelos empregos gerados).

Boa parte das vezes, as rezas dão certo (os estudos gerais o comprovam). Mas algumas vezes, podem dar totalmente errado (ver o post de ontem sobre os TAV chineses e as auto-estradas portuguesas), e o Estado se afundar fiscalmente por excesso de investimento.

Para completar, toda vez que o Estado se encontra em contigência para fechar o caixa, os investimentos são cortados, por mais promissores que eles sejam. E aí temos uma grande ineficiência da gestão fiscal.

Como melhorar o rendimento fiscal dos investimentos em infra-estrutura?

Em várias intervenções, tenho defendido que, pelas razões acima, os projetos de infra-estrutura deveriam ser “involucrados” em programas territoriais, onde eles são combinados com outros projetos produtivos, de rendimento fiscal garantido (e quando falo garantido, quero dizer que deve haver um compromisso, contratualizado, de investimento correspondente por parte da iniciativa privada!).

Cito sempre o caso do TAV, que não pode ser concebido como catapulta de executivos paulistas e cariocas de saco cheio do “apagão aéreo” (desculpem essa expressão chula e relativamente inverídica). Não são esses bacanas que vão justificar economicamente o projeto, e sim seus efeitos na região atravessada. Assim sendo, o projeto do TAV deveria ser inserido em todo um programa de desenvolvimento industrial e inovação, que seria o Eixo de Excelência Nacional (já escrevi isso, e o arquivo está no meu blog particular nas Brasilianas).

Proceder dessa forma traria diversas vantagens:

– Primeiramente, assegurar-se-ia a sustentabilidade fiscal dos empenhos públicos, na medida em que o bloco autosustentatado não prejudica a consolidação fiscal, apesar dos dos volumosos investimentos. Finalmente, a regra de excetuar determinados investimentos das metas superávitárias obteria uma base economicamente e não apenas politicamente justificada, afastando o risco de truques contabilísticos.

– Com isso, obter-se-ia uma considerável ampliação do espaço fiscal, e o Governo poderia aumentar sua capacidade de investimento, sem prejuízo da disciplina fiscal.

– Ademais, ao se procurarem, incentivarem a apoiarem objetivamente projetos produtivos, inseridos em programas territoriais integrados, com vistas a se procurar o fechamento fiscal dos apoios, reforçar-se-ia a política industrial não apenas politica e financeiramente, mas também com infra-estruturas, fiscalmente sustentáveis, de forma a reduzir os custos logísticos e a melhorar a competitividade do setor privado.

– Na medida em que tanto os projetos industriais quanto de infra-estrutura sejam abertos para a iniciativa privada, e a participação do Poder Público seja compreendida como subsidiária (até para facilitar a sustentabilidade fiscal do programa), abrir-se-ia um espaço para o investimento privado em ampla escala, até de importância internacional (os assim-chamados investimentos internacionais diretos), promovendo-se o equilíbrio do balanço de pagamentos. 

Aspectos técnicos e executivos dos programas territoriais

Muitos vão dizer: isso é “cumpricado”, isso é “defícil”, frases tão nossas… Infelizmente, muita conversa boa acaba por aí, quando se enfrentam as dificuldades técnicas e gerenciais de concepções novas e promissoras .

Claro que a feitura e a execução de programas de tal monta irão exigir uma nova engenharia de projetos. E é nisso aí que estou investindo nas minhas pesquisas: a concepção, o desenho e a gestão de programas territoriais com as características aqui descritas.

Mas como meu texto está ficando longo demais para uma intervenção blogueira (respeito os limites da capacidade de concentração de meus colegas de idade, sessentões), vou deixar essa discussão para a próxima intervenção.

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador