O papel regenerador das urnas

Da Carta Capital

A urna sempre corrige

Delfim Netto 2 de abril de 2011 às 16:01h

A economia de mercado não foi inventada. Ela é produto de um processo que começou há 150 mil anos, quando os homens abandonaram a África para ocupar o resto da Terra. Sendo um processo, foi encontrando mecanismos flexíveis para satisfazer os objetivos sempre mutáveis dos homens. Esses, lentamente, transcenderam às suas necessidades materiais. É esse caminho da “humanização” do homem, a rigor explorado apenas nos últimos 300 anos, que permitiu sextuplicar a população mundial; que aumentou em mais de sete vezes a disponibilidade per capita de bens e serviços; e aumentou (graças à ciência e à tecnologia) sua expectativa de vida ao nascer, de 35 para 70 anos.

É claro que essa organização está longe de ser plenamente satisfatória, mesmo porque, sendo um processo, a cada momento criam-se novas “necessidades”: a civilização sempre exige mais civilização… Ela está longe de ser perfeita e terminada, mas todas as opções construídas por cérebros peregrinos que imaginaram construir a “sociedade perfeita”, habitada pelo “homem perfeito”, fracassaram miseravelmente. O século XX é um cemitério dessas aventuras. O século XXI promete mais alguns cadáveres…

Os economistas estão sempre atentos a relações entre eventos e, quando as encontram, inventam histórias para “explicá-las”. Uma história que tem sobrevivido desde Adam Smith (que esclarece bem o caso da Holanda e da Inglaterra) é que aquela “economia de mercado” só aparece e se desenvolve quando a sociedade aceita e dá dignidade à atividade exercida pelos que têm iniciativa e os benefícios de suas “inovações” podem ser apropriados por eles. Isso, obviamente, exige um Estado Indutor com mãos leves e amigável com relação a eles.

Certamente, isso explica melhor do que as “funções de produção” o fenomenal desenvolvimento da China a partir de 1978 e da Índia a partir de 1991. Os fatores de produção (terra, mão de obra e capital) e as funções de produção inventadas pelos economistas já estavam lá em estado latente há dezenas de anos e a produtividade total dos fatores, medida estatisticamente, era muito próxima de zero. O que faltava era um Estado Indutor que: 1. Respeitasse e dignificasse a atividade do setor privado. 2. Libertasse o “espírito animal” dos empresários para utilizar e dar mais oportunidades de progresso à mão de obra. 3. Garantisse que cada um poderia se apropriar dos benefícios de sua iniciativa.

O mesmo fenômeno talvez se repita na República Russa, onde o governo promete remover o “entulho” que sobrou depois da queda da URSS, quando a transferência da atividade estatal para o setor privado foi entregue aos feudos do velho Partido Comunista. Houve, até agora, simples transferência da ineficiência estatal para uma cleptocracia, que destruiu até os setores tecnológicos de ponta do país. Diante da necessidade imposta pelo resultado das eleições de 2012, Vladimir Putin apela para uma reabilitação moral da atividade econômica privada. A nova “meta” é dar dignidade ao lucro honestamente obtido e libertar o espírito empreendedor pela ampliação da competição; privatizar 50 bilhões de dólares de ativos (inativos) que estão nas mãos do Estado (vender até mesmo os hotéis e times de futebol); cortar as asas dos oligopólios (que estão ainda nas mãos de velhos companheiros da KGB); estimular a abertura de novos investimentos diminuindo a burocracia; diminuir a dependência do setor energético, com fontes alternativas ao petróleo; proteger com tarifas e estimular, com subsídios, os setores automotivos e aeroespacial, a agricultura e diversificar a exportação de petróleo.

Para quem ainda tem dúvida de que é fundamental o respeito à dignidade da atividade industrial de bens e serviços (que nada tem a ver com os predadores financeiros), basta observar os movimentos de Barack Obama também diante da ameaça das urnas, buscando apressadamente a reaproximação com o setor real da economia americana. Seu maior erro foi a pirueta inicial para agradar os democratas: salvar os desonestos do sistema financeiro internacional que produziram a crise, sob as vistas complacentes das autoridades monetárias, à custa de 17 milhões de desempregados que ganhavam a vida honestamente. Como os EUA já deviam saber, a URNA corrige o excesso do falso tecnicismo econômico. Às vezes com algum atraso, mas antes tarde…

 Delfim Netto

Delfim Netto é economista, formado pela USP e professor de Economia, foi ministro de Estado e deputado federal.

http://www.cartacapital.com.br/politica/a-urna-sempre-corrige


Luis Nassif

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