sexta, 19 de abril de 2024

A crítica e o lugar de fala, por Juliana Rosas

A “polêmica” em torno do último texto de Lilia Schwarcz, publicado pela Folha de S. Paulo no início deste mês sobre o recém-lançado álbum visual da cantora americana Beyoncé, Black is King.

A maioria das críticas ao filme de Beyoncé tem sido positivas. Credito: reprodução.

do objETHOS

A crítica e o lugar de fala

por Juliana Rosas

Atenção! Em tempos polarizados e de cancelamento fácil, é bom deixar claro: o título é crítica e lugar de fala, não ao lugar de fala. Este nem sempre é considerado. De maneira geral, se refere às relações de poder presentes nos diferentes tipos de discurso de acordo com seus enunciadores, e a posição ocupada quando o discurso é enunciado. Mas Djamila Ribeiro pode explicar isto melhor do que eu. Estou aqui para falar da “polêmica” em torno do último texto de Lilia Schwarcz, publicado pela Folha de S. Paulo no início deste mês sobre o recém-lançado álbum visual da cantora americana Beyoncé, Black is King.

O texto de opinião, críticas, réplicas e tréplicas, rendeu indignações, aplausos, gifs e memes. Bem como manifestações e aplausos de fãs e posicionamentos de intelectuais, a exemplo de pesquisadores e professores de universidades federais como Wilson Gomes, da UFBA; Luiz Felipe Miguel, da UnB e Liv Sovik, da UFRJ. Por isso e por causa do último texto de Ribeiro na Folha sobre o assunto, que disse muito do que eu gostaria, achei que minha fala não cabia neste lugar. Mas na parte que me cabe nesse latifúndio, farei um esforço para acrescentar algo ao mercado de ideias. Uma vez que o debate circulou em diversas mídias, tentarei focar na cobertura dos meios jornalísticos.

Também não deveria ser necessário, mas lembro: comento os fatos enquanto pesquisadora e jornalista, não enquanto fã ou hater de qualquer das profissionais envolvidas. Conheço somente um pouco do trabalho da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz e às vezes acompanho sua coluna no Nexo Jornal. Aprecio muitas das canções e clipes de Beyoncé, mas não sou uma fanática e tenho minhas salutares críticas. A própria Djamila Ribeiro admite não ser fã de Beyoncé, contudo defende uma crítica apropriada ao trabalho da cantora.

Voltando ao texto de Schwarcz, fãs brasileiros de Beyoncé “caíram em cima”. Memes foram feitos comparando Beyoncé e Lilia. Outros artistas tampouco gostaram, a exemplo da cantora Iza. Boa parte dessas críticas era acusando a historiadora de racista, bem como o conteúdo do seu texto. A maioria dizia que ela, enquanto branca, não deveria dizer a uma mulher negra como esta deveria exercitar sua veia artística, e referências de pele de oncinha no clipe eram as mais citadas.

Críticas saídas de meios nacionais e internacionais incluem: a plataforma Disney+, onde está sendo veiculado o álbum visual, tem base nos EUA, mas não está disponível em vários outros países, incluindo o Brasil, tampouco no continente africano. Mencionou-se também, além do retrato idílico, que a África é representada de modo unidimensional, ignorando suas diversidades de povos, línguas, regiões, religiões. Foi apontado que as últimas grandes turnês de Beyoncé incluíram a América do Norte, Europa, Oceania, mas não África.

O que se viu no jornalismo estadunidense, a exemplo de reportagens de veículos americanos tradicionais como The Washington Post e The New York Times, foram igualmente críticas e elogios. E as críticas, como na matéria do Post, incluíam majoritariamente africanos e afro-americanos descontentes com essa representação pictórica da África de animais, vestimentas e pinturas provindas do imaginário do homem branco. O mesmo que Schwarcz criticou e Iza protestou sobre.

No Brasil, boa parte das críticas atacou a pessoa Lilia, não seu texto. É normal um fã ou qualquer pessoa com ligações afetivas se sentir chateado por críticas dirigidas ao seu objeto de afeição. Mas, se o intuito é realizar debate e manter a conexão racional, argumentum ad hominen, argumentos dirigidos à pessoa em bom português, não elevam a conversa.

Normativamente, deliberar seria argumentar de forma racional e livre em prol de entendimento mútuo. “Independentemente da diversidade e diferenças concretas entre os seus participantes”, como explicou o pesquisador Fernando Lattman-Weltman. Portanto, se Judicaelle Irakoze discorda da visão africana apresentada por Beyoncé, concordando assim, com o que diz Schwarcz, o que importa para a deliberação racional é o conteúdo. Para alguns identitários, apenas Irakoze, de Burundi, que se autodefine como feminista afropolítica, teria um lugar de fala mais apropriado para comentar a questão do que a antropóloga brasileira de origem judaica.

Há várias camadas na situação, diversos pontos aonde a crítica poderia apontar. O professor e pesquisador da área de comunicação, Wilson Gomes, comentou o caso discordando de que o texto de Schwarcz apresente racismo, de que apenas os identitários negros estariam “autorizados” a falar sobre o tema e afirmando se tratar de uma disputa pelo “mercado epistêmico”. O professor Luiz Felipe Miguel lamenta o reducionismo do debate. A professora Liv Sovik discorda do comentário de Miguel e responde a este, defendendo que o lugar de fala seria uma arma na mão de pessoas negras conta os consensos brancos.

O editor da revista The Economist Adrian Wooldridge pensa que, levado ao extremo, o discurso identitário é danoso à democracia. Acreditar que diferentes grupos, sejam étnicos ou de gênero, possuem discursos irreconciliáveis seria desconsiderar a empatia, criar antagonismos, minar a capacidade de diálogo e descartar a consistência lógica e validação empírica de argumentos, crê o colunista.

Globonews mudou sua atitude após receber diversas críticas quando montou uma bancada de jornalistas e intelectuais brancos para falar de racismo. Depois, uma bancada somente com negros para discorrer sobre o mesmo tópico. Outras críticas surgiram, desta vez, sobre outro foco: boa a atitude, porém, negro só é chamado para falar de racismo? Por que reduzir esta pessoa a tal unidimensionalidade? A filósofa Sueli Carneiro explicou que o branco costuma ocupar esta dimensão privilegiada: “Brancos são individualidades, são múltiplos, complexos e assim devem ser representados.(…)A branquitude é, portanto, diversa e multicromática. No entanto, a negritude padece de toda sorte de indagações”. O professor Silvio Almeida reiterou esta liberdade para tratar do assunto que lhe convier, mesmo pautado por seus valores, vivências e convicções: “Eu escrevo o que quero. Sou um homem negro, estudioso das relações raciais, mas não especialista em racismo”.

Há uma lógica intrínseca do discurso identitário, de que pessoas de um grupo e afetados por pertencer a ele teriam mais capacidade de falar sobre aquilo que sabem e vivenciam. Contudo, isso não dá direito à exclusividade, como pontua a própria Djamila Ribeiro e Miguel, entre outros. Do contrário, se levado a extremos, acabamos com exemplos parvos como “só poderíamos falar sobre morte, se morto estivéssemos”. Sem comentários. Infelizmente, este texto não tem a genialidade do defunto autor machadiano. Mas nunca é demais lembrar que o grupo identitário deve ser protagonista. Branco não deve protagonizar a luta negra nem homem protagonizar a luta feminista.

Hoje conhecida como uma artista de excelência, ativista negra e feminista, Beyoncé, nem sempre teve essa consciência de gênero ou militância de grupo. Já demonstrou ideias conservadoras, como o celibato antes do casamento. Algumas feministas criticariam este tipo de ação, pois embora defendam que o assunto é de foro íntimo e a mulher deve ter liberdade de escolha, as mulheres deveriam se libertar de amarras sociais e religiosas e se sentir livre para exercer livremente sua sexualidade. Ela perdoou uma traição. Para este mesmo grupo, uma ação que, embora também de foro íntimo, vai contra o propagado empoderamento.

Beyoncé é uma mulher negra, mas é também americana, criada para e dentro do showbusiness desde cedo. Seu pai desistiu de seu trabalho para se dedicar à carreira da filha quando esta ainda era criança. E no showbizz e na altamente competitiva sociedade americana, muita coisa é sobre money money e win, win. Quando por um breve momento deixou o canto de lado para se dedicar à carreira de atriz, declarou firmemente ter o desejo de ser a primeira afroamericana a ganhar o Grammy e o Oscar, importantes prêmios da música e cinema americanos, respectivamente. Ambições e competições american style. Os prêmios e o pioneirismo, no entanto, foram para Jennifer Hudson, com quem Beyoncé trabalhou no filme Dreamgirls.

A artista também não é de comentar muito sobre sua vida pessoal e a única referência pública que se viu fazer sobre a briga flagrada dentro de um elevador entre sua irmã e seu marido foi acrescentar um trecho a uma existente canção em suas performances ao vivo: “Of course sometimes shit go down when it’s a billion dollars on an elevator” (claro que às vezes m**da acontece quando tem um bilhão de dólares no elevador). Uma vez que supõe-se que ela e Jay Z tenham conjuntamente este power money bilionário, Solange, pelo visto, não entrou na conta.

Há essa e várias outras referências pessoais que Beyoncé claramente ou supostamente colocou em canções. Lemonade foi todo sobre seu processo de descoberta e perdão à traição do marido. Mas ela nunca comentou diretamente sobre. Isso quer dizer que toda obra, de qualquer artista, é alter ego? Não. Do contrário qualquer cineasta que tratasse de violência grave na tela poderia ser considerado uma mente perturbada.

Beyoncé não quer desmontar o capitalismo ou abandonar a riqueza e poder que o sistema lhe proporcionou, como bem lembrou Sovik no comentário acima referido. Pode, contudo, querer usá-lo para suas plataformas, como está fazendo. Ela pode mudar? Pode. Pode se tratar de evolução pessoal e artística e não somente surfar na onda feminista e hashtag black lives matter? Pode. Mas nada impede que seu passado, presente, militâncias, estratégias, acertos e contradições sejam postos na mesa para uma saudável discussão. Isso demonstra que ao contrário do que às vezes se pensa, a esfera pública, apesar dos percalços, continua viva. E ela ganha força quando amparada pelo jornalismo fomentando debates e ideias e não a cultura do cancelamento.

Flávia Lima, ombudsman da Folha, e Luiz Felipe Miguel alertaram recentemente sobre essa nova onda digital. Lima reflete como isto tem afetado o jornalismo, mas não menciona o caso Lilia versus Beyoncé no texto em questão. No último domingo, criticou a Folha por, usando de artifícios no título e linha fina, levar leitores a crer em algo que Schwarcz não disse. Afirma que crítica e diálogo não devem ser interditados nem mesmo por boas intenções. Miguel cita o “cancelamento próprio das franjas intelectualizadas das redes”, que fez de Hannah Arendt sua nova vítima. Relata que admitir e refletir sobre o conservadorismo da filósofa alemã nos ajuda a compreender melhor sua obra, algo bem mais frutífero do que deixar de lado uma teórica da importância de Arendt.

Em texto previamente referido, Ribeiro afirma que Beyoncé acerta ao proporcionar onda de debates com Black is King. A filósofa acerta ao perceber que entre concordâncias, discordâncias e lugares de fala, é salutar o debate. A teórica Nancy Fraser já criticou Habermas, um dos mais conhecidos expoentes da democracia deliberacionista, por desconsiderar que posicionamento social e lugar de fala importam na esfera pública. Este absorveu a crítica. Em outro momento, Habermas, em vez de negar sua participação na juventude hitlerista (era jovem e foi obrigado, como muitos outros), pôs o fato em pratos limpos. Ainda jovem, criticou, em artigo para um jornal alemão, o filósofo Heidegger por seu desprezo pelo igualitarismo democrático e sua recusa à autocrítica e a possibilidade de que esse silêncio contaminasse sua filosofia.

Se a deliberação traz uma concepção normativa elevada e em prol da compreensão, empiricamente, esta pode ser desigual, cansativa, provocar desavenças e, como a democracia, requerer grandes esforços. Sobre a notícia do lançamento do álbum de Beyoncé, não houve somente polêmica. Houve discussão sobre moda, música, audiovisual. A querela ocupou um generoso espaço, mas não por completo. Teve gente que só queria curtir a música e ver a cantora ser diva. A abertura e fomento do jornalismo para diferentes matizes implica que tenhamos conhecimento sobre diversas camadas de uma temática, que só podemos desvendá-las se a elas tivermos acesso, sem cancelamentos.

Juliana Rosas – Pesquisadora do Objethos e doutoranda do PPGJOR/UFSC

Redação

3 Comentários

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  1. Então temos o espaço virtual, as mídias sociais e tal, como uma nova dimensão da ágora, dimensão esta em que a fala encontra inúmeros canais de expressão e deixa de parecer um monólogo dos “donos” da liberdade de pensamento, num contraponto às velhas formas de mídia, que por sinal e em grande medida, continuam se comportando como se donos ainda fossem. Contudo, como acontece, ou acontecia, nos espaços tradicionais do debate, temos sempre esse desafio de refletir sobre os parâmetros – sempre movediços e nunca absolutamente claros – mínimos e razoáveis para a manutenção da própria ágora, de modo abarcar o máximo possível de debatedores, do universo das ideias, experiências e lugares-de-fala sem, no processo, interditar ou embaraçar o próprio espaço do debate, o que seria o mesmo que eliminar o próprio debate. Difícil, como sempre foi! Mas concordo que a tendência do chamado “cancelamento” não contribui para essa reflexão.

  2. Não vou discutir a validade ou não de grupos oprimidos que no uso da expressão e suas consequências do que se denominou chamar “lugar de fala”. Parece que essa expressão nasceu para combater a opressão que muitos grupos minoritários. Porém como alguém que não pertenço a nenhum grupo minoritário e oprimido, posso falar da estratégia política de uma espécie de censura a todos que falam contra a opressão, porém não pertencem a algum grupo.
    Quando qualquer pessoa é alijada de uma discussão pode ter duas reações, frustração ou distanciamento. Mesmo as pessoas que não aceitam os diversos tipos de discriminação, com a virulência de alumas reações que podem ser devidas ao retirar do debate grupos não pertencentes a uma determinada minoria oprimida, deveriam ser considerados aliados estratégicos na luta contra a discriminação, porém quando qualquer coisa que falem muitas vezes são interpretadas como violação de espaços exclusivos, logo LGBTQI+, se não forem negros (ou pretos, o que menos ferir a susceptibilidade das pessoas), não poderão falar sobre racismo, mesmo que pertençam a um grupo minoritário e oprimido), da mesma forma as mulheres que não pertencerem aos dois grupos anteriores só poderão ter um discurso feminista e os membros de religiões afro-brasileiras a mesma coisa. Em resumo, um discurso do local de fala que exclui qualquer tipo de comentário fora do grupo simplesmente divide e não soma nada.
    Isso pode parecer um pouco estúpido e sem grande sentido, porém quando se vê que a perseguição as minorias cresce mesmo em grupos majoritários mas de classe social da base da pirâmide encontra nessa aparente exclusão como um pretexto para a discriminação, em resumo, a estratégia política de um discurso do “local de fala” mais exaltado é péssima em termos de resultados, pois se não gera aliados, salvo nos grupos mais intelectualizados de esquerda, e cria inimigos em grupos majoritários de baixa renda ou escolaridade.
    Da mesma forma faço uma crítica a adoção do termo raça …….. (preencha os pontinhos com o que quiser), pois a raça humana é só uma e qualquer discurso para dar dignidade de uma raça em relação a outras, cria o ambiente propício para o diferenciamento “racial” entre humanos e daí por diante tem-se todo o combustível do racismo.

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