A falsa liberdade de expressão, por Pablo Ortellado

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Foto: Ilustração PNUD
Jornal GGN – Quando a liberdade de expressão não ocorre de maneira completa, os direitos também democráticos de criticar e protestar se sobrepõem a debates que poderiam ser construtivos, contribuindo para a polarização, os rótulos e agressividade.
 
O professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, Pablo Ortellado, identificou tais comportamentos em duas situações nos últimos dias: uma, quando um grupo de acadêmicos quis proibir a participação de Fernando Henrique Cardoso em um seminário sobre “democracia”, alegando que ele não seria democrático; e a radicalização sobre a exposição do MAM, quando uma manifestação artística virou pedofilia.
 
“Nos dois casos relatados e também em vários outros, o que vemos é uma verdadeira seletividade na defesa da liberdade de expressão. Ela é defendida com veemência quando nos afeta, mas fingimos não ver que está sendo violada quando afeta o campo adversário”, analisou Ortellado.
 
Por Pablo Ortellado
 
Esquerda e direita fazem defesa seletiva da liberdade de expressão
 
Na Folha de S. Paulo
 
A  liberdade de expressão é um valor que parece ser defendido por todos. Na prática, porém, as ameaças a esse direito fundamental têm sido defendidas com perigosa seletividade. Quando ela é atacada dos dois lados da polarização e defendida apenas quando convém, o resultado é um ambiente no qual é cada vez mais inseguro discutir temas sensíveis.

Temos visto reiteradamente o mesmo roteiro, nos dois lados, apenas com os sinais invertidos. Um adversário emite um juízo controverso e o outro lado se organiza para contestá-lo, fazendo uso de táticas autoritárias como ataques pessoais e intimidação. Mas esses recursos autoritários sempre encontram abrigo e disfarce em posições razoáveis que reivindicam apenas o direito de criticar e protestar.

Dois exemplos, a título de ilustração.

Num importante congresso de estudos latino-americanos, acadêmicos brasileiros e estrangeiros se organizaram em 2016 para impedir que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso participasse de um painel sobre “os caminhos da democracia na América Latina”.

O argumento era que Fernando Henrique tinha sido um dos artífices do que a esquerda entendia como golpe de Estado contra Dilma Rousseff e que, por isso, deveria ser “desconvidado” de uma atividade cujo tema era a democracia.

Depois de idas e vindas, de manifestos a favor e contra, os organizadores do evento terminaram retirando a expressão “democracia” do painel e, no dia da atividade, o ex-presidente cancelou a sua participação.

Uma parte dos que criticavam Fernando Henrique reivindicava apenas o direito de protestar contra a incoerência do palestrante de, simultaneamente, defender um impeachment que não tinha base legal e opinar como autoridade intelectual e política sobre os caminhos da democracia no continente.

No entanto, essas pessoas razoáveis não condenaram os outros críticos, provavelmente mais numerosos, que ao invés de reivindicarem o direito de protestar e criticar, lutaram para que o presidente fosse desconvidado ou para que ele simplesmente cancelasse a participação, temendo tumulto ou agressões.

Quando o desfecho do episódio gerou acusações de censura e de violação da liberdade de expressão –ainda por cima em ambiente acadêmico– muitos se esconderam na posição do mero direito de protesto e disseram ainda que Fernando Henrique fugiu do debate.

Coisa bastante parecida aconteceu com o caso mais recente da exposição do MAM. Grupos conservadores primeiro chamaram a atenção para um vídeo de uma performance na qual uma criança tocava um artista nu.

Em vez de propor um debate democrático sobre classificação indicativa ou sobre a responsabilidade dos pais em eventos artísticos, os grupos exploraram politicamente o caso, transformado uma performance sem conteúdo erótico em apologia da pedofilia ou, diretamente, em pedofilia e atribuíram a responsabilidade do episódio à esquerda.

Como consequência da campanha, a mãe da menina e o artista foram duramente atacados nas redes sociais, funcionários do museu foram chamados de “pedófilos” e uma assessora de imprensa foi fisicamente agredida. Por meio dessas intimidações, agressões e ataques pessoais, o que se tentou conseguir era que a mostra fosse suspensa, como tinha acontecido algumas semanas antes com a mostra “Queermuseu” no Santander Cultural em Porto Alegre.

Quando o MBL, que era o principal articulador da campanha, foi acusado de tentar censurar a exposição, ele também se escudou no democrático direito de protestar e boicotar. Mas em nenhum momento o grupo condenou aqueles que agrediram e intimidaram o artista, a mãe da criança ou os funcionários; o grupo também fingiu não perceber que se o boicote tivesse dado certo, o resultado seria a suspensão da exposição, ou seja, a sua censura.

Nos dois casos relatados e também em vários outros, o que vemos é uma verdadeira seletividade na defesa da liberdade de expressão. Ela é defendida com veemência quando nos afeta, mas fingimos não ver que está sendo violada quando afeta o campo adversário.

Porém, ao contrário do que parece, nossa responsabilidade moral não é denunciar os abusos contra o nosso campo, mas os abusos que acontecem no nosso campo. É a direita quem deve condenar os abusos do MBL, assim como é a esquerda quem deve condenar aqueles que querem calar um palestrante em ambiente universitário. É apenas com vigilância e controle internos que conseguiremos resguardar os valores e princípios que orientam essa arena comum que é a esfera pública.

P.S. A Folha se envolveu no fim de semana no mais recente desses casos. Um repórter entrevistou Danilo Gentili sobre seu novo filme e o humorista não gostou das perguntas, acusou o repórter de ser petista e pediu para seus seguidores nas redes sociais o atacarem (a expressão que utilizou no Twitter foi “Enquadrem”).

Para corroborar a acusação de “petista”, Gentili reuniu publicações pessoais do jornalista nas redes sociais que eram simpáticas a Dilma e a Lula.

Alegando que descumpriu diretriz que determina que seus jornalistas não devem fazer manifestações político-partidárias, a Folha demitiu o repórter. Embora a diretriz seja um recurso razoável utilizado pelo jornal para se resguardar num ambiente polarizado, a decisão de demitir o repórter logo após a entrevista passou a impressão de que os autoritários expedientes dos seguidores de Gentili foram bem sucedidos.

A decisão, equivocada, vai ter um efeito análogo ao episódio com o Santander, que cedeu às pressões dos grupos conservadores por censura.

 

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

7 Comentários

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  1. Simetrias e falsas simetrias

    Um problema sério é que há entendimentos diferentes quanto ao que seria “liberdade de expressão”. Alguns segmentos “conservadores” parecem acreditar que “liberdade de expressão” inclui o direito de não receber críticas. É o caso do citado Danilo Gentili: qualquer crítica é tratada como “censura”.

    Isso torna difícil o diálogo. Concordo que a atitude de tentar impedir o FHC de participar de um debate é autoritária (e contra-producente: muito melhor seria debater com ele e expor as suas contradições). Mas as coisas têm de ser bem explicitadas, por que senão corre-se o risco de capitular diante de falsas simetrias. E essas falsas simetrias não têm vindo “dos dois lados”; elas têm sido quase, se não sempre, esgrimidas pela direita.

  2. Bobagem!

    Não existe liberdade de expressão. Isso é só um mito liberal ingênuo.

    A democracia liberal é uma farsa.

    Só existe guerra.

    E estamos em guerra.

  3. Professor Ortellado descobriu

    Professor Ortellado descobriu a pólvora. Liberdade de expressão, livre comércio, democracia, justiça, não passam de anseios, desejos, expectativas. Elas não existem plenamente em nenhum lugar do mundo.

  4. Colunista ou equilibrista

    Fico impressionado com os malabarismos retóricos a que tem de recorrer os colunistas do PIG/PPV. Os que ‘não se enquadram’ têm o mesmo destino de Ricardo Kotscho, Nirlando Beirão, Ricardo Melo e agora deste Diego Bargas, demitido da FSP por ordem do boçal Danilo Gentilli.

    Relativizar e considerar com o mesmo peso a intolerância e a brutalidade freqüentes demonstradas pela direita nazifascistóide com esparsas manifestações de intolerância por alguns simpatizantes da esquerda é má-fé e desonestidade intelectual. Entre a sinceridade, a verdade factual e uma análise honesta, Pablo Ortellado e outros preferem manter o emprego de colunista e opinionista do PIG/PPV, desde que falando e escrevendo o que os donos dos veículos ordenam.

    Dos que costumam publicar artigos de opinião em veículos do PIG/PPV apenas Jânio de Freitas (com muita elegância e comedimento) e Aldir Blanc (rasgando o verbo e usando linguagem contundente e escrachada) ainda demonstram sinceridade e autenticidade em seus textos.

  5. Realmente o argueiro no olho

    Realmente o argueiro no olho do outro é sempre mais visível. A democracia precisa de radicalidade, ou não é democracia. A cultura colonial, a informação seletiva ou mentirosa não serão capazes de ajudar a construir atitudes democráticas em nosso país. A esquerda, no meu entendimento, deve agir de acordo com as ideias que defende. A política não é vivida apenas no plano racional, mas os vínculos concretos, as emoções, a tradição etc., tecem essa ação humana. Assim que, se uma pessoa que está tentando ser racional, percebe que está sendo acuada, sua reação poderá ser passional. Por isso, penso que a nossa educação para a democracia só pode ocorrer através da democracia. E quem tem medo da democracia?

  6. Sensíveis: Tá Tudo Aí, Registrados e Acessíveis

    “A liberdade de expressão é um valor que parece ser defendido por todos… Quando ela é atacada dos dois lados da polarização e defendida apenas quando convém, o resultado é um ambiente no qual é cada vez mais inseguro discutir temas sensíveis.” Por que será?

    Pablo Ortellado, nesse equilibrando-se como árbitro imparcial da “intelecto bruta” que abaixo esgarça-se em tertúlias seletivas, é o autor de, “Vinte Centavos: A Luta Contra Aumento”, livro imperdível para quem tem tempo para conhecer o analista político, que um ano e meio depois, em 16/01/15, no El País, explica em artigo que:

    “Escrevemos a narrativa que constitui o cerne deste livro durante o mês de julho de 2013, poucas semanas após o auge dos protestos de junho. Embora, à época, muitos tenham julgado que não teríamos “distanciamento histórico” para um balanço fundamentado, continuo achando, dois anos depois, que fizemos um bom trabalho e que muitas das informações e percepções que recuperamos e registramos, no calor dos acontecimentos, dificilmente seriam acessíveis muito tempo depois. A nossa principal motivação para escrever o livro não era apenas analisar de uma perspectiva política a luta contra o aumento, mas intervir e disputar, desde o princípio, a historiografia sobre “as manifestações”. Como mostramos, houve uma radical reorientação do discurso dos meios de comunicação de massa que, no meio do processo, buscaram ressignificar a luta contra o aumento, apoiando a ampliação da pauta das manifestações e operando uma separação entre manifestantes pacíficos, imbuídos de valores cívicos, e vândalos oportunistas com motivação política.

    (…) Assim, na semana do dia 17 de junho, os protestos contra o aumento das passagens, que já estavam acontecendo em várias capitais, se ampliaram ainda mais e mobilizaram milhões de pessoas em todo o país. Outras pautas como o rechaço à classe política e à corrupção, críticas à Copa do mundo e a demanda por melhores serviços públicos se somaram à reivindicação por redução das tarifas de transporte, mas sem tirar dela a dominância. Se houve uma ação deliberada para inchar ainda mais as manifestações e mudar o seu foco, a ação foi mal sucedida. As manifestações cresceram e incorporaram outras pautas, mas a luta contra o aumento das tarifas permaneceu a reivindicação principal.”

    Dois meses depois de Ortellado escrever isso no El País, iniciaram-se os protestos contra Dilma Roussef, culminando com a aceitação do pedido de impeachment por Cunha, em dezembro de 2015. O processo para tomada do poder chega ao final em 31 de agosto de 2016, com Dilma deposta e mais de 54 milhões de votos de cidadãos brasileiros jogados na lata de lixo e, por ironia do destino, não é que não só por vinte centavos, que acredito hoje, até o ora isentão equilibrista Ortellado, tenha percebido.

    Interessante nisso tudo é que o então convicto antenado, como muitos à epoca, não acharam estranho, um movimento veterano como o MPL, com várias manifestações em anos anteriores, basicamente ignoradas, de repente, pela primeira vez, no primeiro ato de 2013, ser brindado logo na partida, com cobertura ao vivo pela Globo, no JN, prosseguindo nos intervalos da novela e coincidentemente ser lançado junto com o movimento, a maciça campanha institucional da Fiat (sem veículos), “Vem Pra Rua”, que embalou os protestos de junho a julho, incessantemente. Muito tempo depois, tá tudo aí, registrados e acessíveis, basta descer e conferir.

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